No fim de janeiro, dois artigos foram publicados quase simultaneamente por membros da colaboração internacional Delve no periódico The Astrophysical Journal. Ambos os estudos tinham brasileiros que participam do Delve como coautores e reportavam a descoberta de duas galáxias extremamente pequenas e muito pouco luminosas ou, como dizem os astrofísicos, ultrafracas. A menor, com cerca de 2 mil estrelas, foi batizada de Aquarius III e a outra, com mais ou menos o dobro de estrelas, de Leo VI. Os nomes fazem referência às constelações em que as galáxias se inserem, respectivamente, Aquário e Leão.
Aquarius III e Leo VI são duas galáxias anãs satélites da Via Láctea. Como a Lua em relação à Terra, elas orbitam em torno da Via Láctea, que é formada por uma população estimada entre 100 bilhões e 400 bilhões de estrelas. A força gravitacional decorrente da enorme massa de nossa galáxia atrai e as mantém ao seu redor. Até o início deste século, os astrofísicos conheciam 11 galáxias anãs consideradas satélites da Via Láctea. Nas duas últimas décadas, a entrada em operação de telescópios e instrumentos de observação mais potentes e sensíveis tem permitido a identificação de galáxias menores e mais tênues ao redor da Via Láctea. Com a descoberta de Aquarius III e Leo VI, esse número chega a 65, das quais 51 tiveram esse status confirmado (veja na figura acima a localização dessas galáxias em relação ao plano da Via Láctea).
“Estudar as galáxias anãs é uma forma de tentar entender a formação e a evolução da Via Láctea”, diz o astrofísico Guilherme Limberg, um dos autores dos dois artigos. “A Aquarius III é a menor galáxia satélite conhecida da Via Láctea e uma das menores galáxias descobertas.” Em outubro de 2024, quando era bolsista da FAPESP, ele defendeu tese de doutorado sobre o tema no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP) e agora faz estágio de pós-doutorado no Instituto Kavli de Cosmologia Física da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos.
A interação da Via Láctea com essas galáxias anãs satélites é um dos pontos que mais interessam aos pesquisadores. “Por exemplo, sabemos que a galáxia anã Esferoidal de Sagitário está sendo, aos poucos, engolida pela nossa”, comenta o astrofísico Clécio De Bom, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), outro participante da colaboração Delve e coautor dos dois artigos. No caso da Aquarius III, há sinais de que ela será um dia destruída em razão das forças de maré da Via Láctea, um efeito secundário da grande força gravitacional de nossa galáxia que pode despedaçar corpos celestes. Por ora, os dados disponíveis ainda não permitem predizer se a Leo VI terá esse mesmo fim.
Qualquer galáxia de porte razoável entre as bilhões que existem em todo o Universo pode ser circundada por galáxias anãs satélites. As três maiores galáxias do chamado Universo Local (Andrômeda, a Via Láctea e a do Triângulo) são rodeadas por congêneres menores. O Universo Local é a vizinhança cósmica da Terra, região do espaço com um raio de aproximadamente 1 bilhão de anos-luz, 20 mil vezes maior do que o da Via Láctea. Apesar de o nome remeter a formações estelares pequenas, as galáxias anãs satélites surgem em uma diversidade de tamanhos. Algumas apresentam dimensão considerável.

Estrelas relativamente esparsas formam a Galáxia Anã do Escultor, um satélite da Via LácteaESO
Esse é o caso das duas Nuvens de Magalhães, a Grande e a Pequena. Como a Aquarius III e a Leo VI, são classificadas como galáxias satélites anãs da Via Láctea, embora sejam muito maiores do que as duas estruturas descobertas neste ano. A massa estimada da Grande Nuvem de Magalhães, que abriga cerca de 10 vezes mais estrelas que sua irmã menor, representa entre 10% e 20% a da Via Láctea. As duas nuvens são tão grandes que, a exemplo da Via Láctea, podem ser vistas a olho nu no hemisfério Sul. São conhecidas pelos povos originários da América do Sul desde tempos imemoriais e pelos europeus após a época dos Descobrimentos.
A maior parte das galáxias anãs satélites tem um formato difuso, não muito definido. Elas quase nem parecem ser uma concentração de estrelas. Em suas manifestações mais evidentes, exibem um leve halo de cor mais densa em seu centro, pontuado por algumas estrelas mais brilhantes. De muitas galáxias anãs, como as duas galáxias satélites recém-descobertas da Via Láctea, não há imagens nítidas. Geralmente, em nada se assemelham à beleza das grandes espirais, como a Via Láctea, com um bojo central mais denso e dois braços estelares.
Galáxia ou aglomerado estelar?
As duas novas galáxias anãs satélites foram identificadas inicialmente pela Dark Energy Camera (DECam), uma potente câmera instalada no telescópio Blanco, em Cerro Tololo, nos Andes chilenos. Desde 2012, a DECam tem sido usada em mapeamentos do céu austral, como o Dark Energy Survey (DES), e mais recentemente na colaboração Delve. Uma vez observada uma estrutura com potencial para ser classificada como uma galáxia anã satélite da Via Láctea, os astrofísicos têm de eliminar uma dúvida incômoda. Conjuntos de uns poucos milhares de estrelas podem formar um pequeno aglomerado (cluster) estelar, uma estrutura mais simples, ou uma diminuta galáxia anã, uma formação mais complexa.
A maneira de diferenciar um tipo de estrutura de outro é olhar para características de sua população de astros. “As estrelas dos aglomerados foram formadas simultaneamente, a partir de um evento único ocorrido em uma nuvem de gás e poeira”, explica Limberg. “Elas têm a mesma composição química e história evolutiva.” Em uma galáxia, as estrelas tendem a ser mais diversas, provenientes de mais de um episódio formativo, com idade e composição mais variadas.
Para descobrir se há mais de uma geração de estrelas, os pesquisadores precisam determinar o grau de metalicidade de alguns corpos celestes da candidata a galáxia. Grosso modo, quando há estrelas com diferentes níveis de conteúdo metálico, isso quer dizer que se trata de uma galáxia, formada por distintas populações de astros. Em um aglomerado de estrelas, a metalicidade é a mesma entre seus astros. Afinal, nesse caso, todas as estrelas surgiram ao mesmo tempo.

Grande (à esq.) e Pequena Nuvem de MagalhãesESA / Gaia / DPAC
A metalicidade de seis estrelas da galáxia Aquarius III e de nove da Leo VI foi determinada a partir de medições feitas pelo espectrógrafo do Observatório Keck, no Havaí. Esse instrumento decompõe a luz de estrelas em seus diferentes comprimentos de onda, o que permite deduzir sua composição química. A estrela mais brilhante de Aquarius III apresentou características químicas similares às de estrelas raras encontradas no halo da Via Láctea.
“Isso é bem interessante”, comenta o astrofísico brasileiro Vinicius Placco, do NOIRLab, centro de pesquisa mantido pela agência norte-americana National Science Foundation (NSF). “Mas precisamos de medidas em alta resolução para confirmar essas abundâncias químicas e, assim, poder especular sobre a origem da estrela.” Placco é um dos autores do artigo sobre a Aquarius III e também participa do mapeamento Delve. Nos estudos, os astrofísicos ainda fornecem dados sobre o movimento e a localização de cerca de 10 estrelas de cada galáxia anã a partir de observações com o telescópio espacial europeu Gaia.
A descoberta de mais de 50 galáxias anãs satélites da Via Láctea nos últimos 20 anos reduz um ponto de atrito entre a teoria e as observações astronômicas. Segundo os modelos cosmológicos, a Via Láctea e outras galáxias similares deveriam ter muitas galáxias anãs em sua órbita, da ordem de centenas desses satélites. Essas previsões derivam da constatação de que 85% da matéria do Universo é composta pela misteriosa matéria escura fria, invisível e de natureza desconhecida. Os outros 15% são feitos de matéria bariônica, normal, que dá forma às estruturas visíveis do Cosmo.
A existência da matéria escura é deduzida a partir de seu efeito gravitacional sobre a conformação dos objetos celestes. A gravidade produzida pela matéria normal é incapaz de explicar a interação entre as estruturas visíveis do Cosmo e sua distribuição. Logo, em comparação com a matéria normal, é preciso haver uma quantidade quase seis vezes maior de um tipo desconhecido de matéria, a escura, para explicar o Universo conhecido.
A teoria prevê a existência de sub-halos de matéria escura no entorno de grandes galáxias, como a Via Láctea, que levariam à formação de estrelas e ao surgimento de muitas galáxias anãs satélites. É verdade que essas pequenas estruturas são difíceis de serem observadas, obstáculo que apenas recentemente começa a ser vencido. “Nos últimos seis anos, o projeto Delve descobriu seis galáxias anãs orbitando a nossa galáxia”, diz De Bom. “Mas o problema da falta de galáxias satélites ainda não foi totalmente resolvido por nós nem por qualquer outra iniciativa.”
A reportagem acima foi publicada com o título “Vizinhas de órbita” na edição impressa nº 350, de abril de 2025.
Projeto
A estrutura quimiodinâmica do halo galáctico (nº 21/10429-0); Modalidade Bolsa de Doutorado Direto; Pesquisadora responsável Silvia Cristina Fernandes Rossi (USP); Bolsista Guilherme Limberg; Investimento R$ 243.432,29.
Artigos científicos
CERNY, W. et al. Discovery and spectroscopic confirmation of aquarius III: A low-mass milky way satellite galaxy. The Astrophysical Journal. 23 jan. 2025.
TAN, C. Y. et al A pride of satellites in the constellation Leo? Discovery of the Leo VI milky way satellite ultra-faint dwarf galaxy with DELVE early data release 3. The Astrophysical Journal. 24 jan. 2025.