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História

Duro de matar

Autoritarismo ainda rege serviço de informação brasileiro

“Dos tempos bíblicos – quando Moisés enviou os representantes de cada uma das tribos sob seu comando para espionar a terra de Canaã – até os dias de hoje, temos um vasto acervo de referências às atividades de espionagem, ligadas de início ao campo militar e depois também ao político e finalmente englobando o poder de forma integrada”, pregava um manual do Curso de Informações da Escola Superior de Guerra em 1967, lembrando ainda que até mesmo “Noé enviou uma pomba para ver se as águas haviam se retirado da face da terra”. A justificativa bíblica não dissimulava o pecado capital da má formação dada aos agentes de informação: vigiar é preciso e, ao contrário do passado, o foco não é a guerra, mas o controle do poder.

“O inimigo ‘externo’, considerado o alvo dos serviços de inteligência dos países democráticos significou, no Brasil, no Chile e na Argentina, qualquer um que fosse ‘externo’ ao centro do poder. Foi desses ‘excluídos do poder’ que se procurou proteger o Estado, por meio da banalização da violência e de uma cultura de segredos governamentais”, afirma Priscila Antunes, autora da pesquisa Serviços de inteligência do Cone Sul, apoiada pela FAPESP, um estudo comparativo sobre os legados das transições para a democracia nesses três países. O resultado assusta: pouco mudou com o fim das ditaduras e a “ameaça” ainda é “interna”.

“A democracia necessita de controle civil sobre o poder militar e, o mais complexo, de um efetivo controle político sobre as agências de inteligência civis e militares”, avisa a pesquisadora. Em Ministério do silêncio, recém-lançado pela Editora Record, o jornalista Lucas Figueiredo revela que, em outubro de 2003, em pleno governo Lula, a Agência Brasileira de Informações (Abin), criada em 1999, numa reunião para discutir as possibilidades de cooperação entre os serviços de inteligência da América do Sul, no relatório final, incluiu entre as “ameaças” atuais “os movimentos sociais, em especial as organizações que lidavam com a questão da pobreza”.

A Doutrina de Segurança Nacional, idealizada pelos regimes militares, pode ter saído de moda, mas o “monstro” – apelido dado pelo general Golbery do Couto e Silva à sua criação, o Serviço Nacional de Informações (SNI) -, ainda que em nova forma, permanece ativo. “O órgão procurava os inimigos do Estado dentro das fronteiras do país e não via que a ameaça maior sempre fora ele próprio. Mas a existência do serviço secreto, tal qual ele se encontra em 2005, é um sinal de que o Brasil saiu da ditadura, mas ainda não chegou à democracia plena”, avalia Figueiredo. Vigiar é mesmo preciso?

Ameaças
“A inteligência é extremamente útil para a democracia, desde que atue de forma eficiente na avaliação de ameaças, hoje cada vez mais diversificadas. É uma realidade a ser absorvida pelos políticos e pelos cidadãos comuns”, explica Priscila. “Mas é fundamental o controle democrático, pois apenas por meio do desenvolvimento de mecanismos de controle eficazes podemos evitar que democracia e inteligência se tornem termos antagônicos”, avalia.

Os riscos são grandes, tanto da manipulação dos governantes, interessados na maximização do poder, como na autonomização dos órgãos de inteligência (o que ocorreu durante a ditadura), pois eles têm uma notável capacidade de se transformar em poder paralelo dentro do Estado. Infelizmente, a história recente mostrou que tanto o Executivo quanto o Legislativo não têm interesse em mexer nessa “criatura”: “A elaboração dos pactos que condicionaram a transição no Brasil permitiram a autonomia militar na definição de suas missões e áreas de atuação. A inércia civil não apenas permite que os militares definam de forma autônoma os seus focos de atenção, como corrobora com suas perspectivas”, nota a pesquisadora. “No Brasil, além de termos uma lei de inteligência mal elaborada, não se nota no Congresso um interesse real em legislar sobre o assunto. A ação ilegal dessas instituições, para alcançar objetivos políticos ou privados, é de responsabilidade tanto de quem pratica a ação quanto de quem não controla esses organismos. Serviços de inteligência sem controle ameaçam a democracia.” É preciso vigiar quem nos vigia.

O Estado, porém, tem se esquivado dessa responsabilidade desde os primórdios: o primeiro serviço secreto brasileiro foi criado em 1927, por Washington Luís, para investigar os adversários políticos do presidente e espionar operários em greve. “Ele nascia com um vício que o órgão carregaria para sempre: um mandato excessivamente amplo, feito sob medida para que o governo pudesse usá-lo contra quem quisesse. Na maioria das vezes, contra o povo”, afirma Figueiredo. O “monstro” só piorou na adolescência: Vargas e, depois, Dutra, ele constata, militarizaram a instituição e a moldaram segundo os parâmetros norte-americanos da Guerra Fria e a luta contra o comunismo. Assim, nos manuais da Escola Superior de Guerra, o povo brasileiro passou a ser descrito como potencial inimigo da pátria, base da Doutrina de Segurança Nacional, o país visto pelas lentes verde-oliva.

Mas tampouco o civil Juscelino Kubitschek resistiu às pressões externas e, deixando o seu lado bossa-nova de lado, deu forma oficial ao chamado Serviço Federal de Informação e Contra-informação (Sfuci), o “pai” do SNI e “escola” de Golbery e do general Figueiredo. “Nas entranhas do governo JK, considerado o mais democrático da nossa história, estava sendo gerado o ‘monstro'”,  lembra Figueiredo.

Após servir a Jânio Quadros e ajudar a derrubar Jango, o Sfuci foi extinto por Castello Branco, que colocou o SNI em seu lugar, baseado num documento de três páginas redigido por Golbery. Com autonomia financeira e sua chefia dotada de status de ministro de Estado, o serviço era o único órgão do Executivo que não sofria nenhum tipo de controle externo. Então, como hoje, nota Priscila, o Legislativo não se interessou em controlar a instituição, que estava sendo criada para mandar muito e não ser cobrada de nada. Mais: na contramão do que ocorria nos Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha, que não permitiam que seus serviços secretos tivessem uma ação interna e externa, o SNI reunia as duas funções. “Ele era parecido com a KGB da URSS e chegou mesmo a ter mais poder do que a organização comunista”, diz a pesquisadora.

Golbery foi ainda além e deu ao SNI uma nova prerrogativa: intervir diretamente nas políticas do governo. O Estado, aos poucos, foi sendo engolido pelo “monstro”. Que não ficou muito tempo sozinho. Durante os governos de Costa e Silva e Médici (que foi chefe do SNI), juntaram-se a ele o Centro de Informações do Exército (CIE), o Centro de Informações da Marinha (Cenimar), o Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (Cisa) e os DOI e Codi, formando a chamada comunidade de informações, responsável pela repressão sangrenta do regime militar.

O problema inesperado é que a comunidade se tornara um Estado paralelo. Assim, no governo Geisel, quando Golbery percebeu que chegara a hora de desmontar o aparato, o “monstro” reagiu. Mesmo com a “ameaça” comunista extinta, o serviço engendrava perigos inexistentes para se manter vivo e, mais importante, livre de julgamentos sobre suas atividades na possibilidade da democratização do país. O medo não procedia. José Sarney, o primeiro presidente civil após o fim da ditadura, adorava a eficiência do SNI e o usou, sem cerimônias, para monitorar os movimentos grevistas. “O órgão ainda concentrava a maioria de seus recursos na vigilância de grupos capazes de mudar os rumos da política nacional”, nota Priscila. Curiosamente foi uma vendeta pessoal que pôs fim ao serviço.

O então governador Collor foi impedido de visitar Sarney no Planalto pelo chefe do SNI, Ivan de Souza Mendes (que ficara furioso com as críticas feitas pelo “caçador de marajás” ao presidente), e prometeu acabar com o órgão se eleito. Cumpriu a promessa e, em 1990, o “monstro” deixou de existir. Ao menos na aparência. O novo Departamento de Inteligência manteve boa parte dos quadros do falecido, continuou sem controle algum, apesar das promessas colloridas de uma comissão de supervisão do Congresso, e ainda vigiava a oposição.

Abin
O interregno Itamar Franco serviu apenas para trazer de volta os militares para o serviço, e o mineiro soube usá-lo para manter sob controle sindicatos, movimentos religiosos e, em especial, o Partido dos Trabalhadores. A eleição de Fernando Henrique Cardoso deu outro rumo ao serviço, pois o novo presidente, apesar de seu desejo de fortalecer o órgão, tentou, pela primeira vez, dotá-lo de mecanismos de supervisão externa. Rebatizado de Abin, o serviço de informações, sob a chefia do general Alberto Cardoso, prometia “agir com irrestrita observância dos direitos e garantias individuais, fidelidade às instituições e aos princípios éticos”.

Mas o militar insistia, com a anuência do presidente, que ainda era preciso vigiar “grupos nacionais que podem ser uma ameaça à continuidade do Estado e aos interesses da nação brasileira”. Apesar da criação do Ministério da Defesa, a Abin servia ao presidente e à política de defesa nacional instituída por ele, segundo Priscila, por ser estabelecida em termos vagos e reafirmando a capacidade dos militares de exercerem funções ligadas à política interna do país, “e não causou nenhum tipo de mudança significativa na atuação do sistema de inteligência”. “Os militares mantiveram poder para decidir de forma autônoma e assegurar vários de seus interesses”, avalia a pesquisadora. Mais uma vez, o Legislativo se calou.

Espião
O governo Lula não alterou a estrutura desenhada por FHC e chegou mesmo a retomar uma antiga prática do SNI: a legalização do grampo telefônico pelo serviço, que ainda continua a operar internamente. O presidente, aliás, tem hoje como segurança uma antiga agente do “monstro”, que, em 1993, dizendo-se jornalista, infiltrou-se num encontro fechado do PT em Vitória para espionar Lula. “Foi recentemente que o governo fez mudanças na direção da Abin, apenas depois do escândalo Waldomiro Diniz, filmado pedindo propina e cuja gravação evidencia a participação de agentes da Abin”, acredita Priscila. Esse movimento pode ser resultante da guerra fratricida por que passava o órgão, em que se digladiavam a velha guarda do SNI, lutando para se manter nos cargos, e os novos civis, contratados por concurso público (a partir de 1996), que se ressentiam da falta de oportunidades de ascensão e da segregação pelos “antigos”.

A disputa, avalia o jornalista, alimentou os muitos vazamentos de informações secretas para a mídia, incluindo-se a gravação da corrupção de Diniz. “Somente nesse momento o governo se deu conta do perigo da opção de entregar a gestão dos setores às próprias corporações e de como ele poderia se transformar em vítima dessa política de descaso”, diz Priscila. “Por incrível que pareça, passado um ano e meio do seu mandato, o presidente não havia nomeado alguém de sua confiança para a coordenação da inteligência nacional. Mesmo a nomeação do general Félix parece subordinada a uma política de ‘paz e amor’ com as áreas militares mais do que pautada por critérios profissionais ou políticos. Se os responsáveis pela condução do sistema de inteligência continuarem a se omitir de suas funções, isso pode conduzir a uma crise do sistema político, pouco desejável para o Brasil.”

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