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GENOMA HUMANO

É hora de rever princípios morais e políticos

A sociedade civil foi a vencedora na disputa entre empresa privada e governos

O anúncio do seqüenciamento do genoma humano, no dia 26 de junho, não trouxe nenhuma novidade do ponto de vista científico. Os administradores dos dois projetos de seqüenciamento do genoma humano – o da Celera e o Projeto Genoma Humano – fizeram, sem muita convicção, um acordo de publicação simultânea de seus resultados. A questão de saber se os resultados dos dois grupos serão totalmente públicos e gratuitos não foi levantada, pelo menos publicamente.

Não há dúvidas de que a Celera, uma empresa privada, leva vantagem sobre o Projeto Genoma Humano, financiado pelo governo dos Estados Unidos e instituições internacionais. Há duas razões para isso. A Celera está de posse dos resultados do Projeto Genoma Humano enquanto o inverso não é verdadeiro. Além do mais, a Celera tem uma infra-estrutura de informática mais poderosa para o agrupamento das seqüências. E, por fim, foi a Celera que impôs ao governo norte-americano e às instituições internacionais sua estratégia de acelerar o seqüenciamento do genoma humano.

Mas, nesta disputa entre empresa privada, governo e instituições envolvidas, o verdadeiro vencedor é a sociedade civil, formada pela comunidade de cientistas “públicos” que fizeram pressão do ponto de vista moral, político e econômico – via manipulação do stock exchange rate – para impedir que mais de 3 bilhões de anos de evolução humana fossem monopolizados por alguma companhia de biotecnologia, produto típico da cultura dominante contemporânea, governada apenas pelo lucro a curto prazo.

Um dos fatores que criaram essa situação, na qual por pouco não se chegou a monopolizar conhecimentos cruciais para o progresso das ciências biológicas, foi a legislação das patentes que, tanto nos Estados Unidos como na Europa, autoriza o patenteamento não apenas de espécies vivas modificadas geneticamente, como também de genes isolados.

Mas, e agora, depois que foi anunciado o seqüenciamento do genoma humano? Ainda falta terminar muitas outras tarefas importantes, entre elas o estudo do genoma dos grandes parasitas que se multiplicam nas populações pobres e que não interessam às empresas farmacêuticas; a análise do genoma dos camundongos e o estudo de seus mutantes; as variações individuais do genoma humano; e o genoma das plantas cultivadas e de seus patógenos, área onde, aliás, a FAPESP criou um nicho que deve explorar energicamente.

O fundamental é que não se pode iludir o público. Há dez anos que se busca o seqüenciamento do genoma humano. A fase atual, de deciframento do código genético, levou dois anos. Serão necessários mais dez anos até que esses novos conhecimentos se traduzam em novos medicamentos ou curas que, certamente, serão caros e privilégio dos ricos. Os demais continuarão a sofrer de desnutrição e de infecções diversas ainda por várias décadas.

Somente uma revisão dos princípiosmorais e políticos que conduziram a que o conhecimento científico fosse adquirido e utilizado em algumas regiões do planeta, para benefícios de poucos, poderá acelerar o aparecimento de uma sociedade igualitária, solidária e fraterna. De resto, nos cabe esperar que o conhecimento do genoma humano e de suas fracas variações entre etnias dê um golpe mortal em certos argumentos racistas.

André Goffeau é pesquisador do Instituto Curie, de Paris, coordenador do projeto de seqüenciamento da levedura e membro do Steering Committe do Projeto Genoma Xylella

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