A história do reconhecido pioneirismo brasileiro na produção de biocombustível a partir da cana-de-açúcar acaba de ganhar mais um capítulo. Ele foi concluído em 10 de dezembro de 2021, quando a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) avaliou como não transgênicas duas variedades de cana-de-açúcar editadas geneticamente por pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). As plantas encontram-se agora em testes de campo. Segundo a instituição, são as primeiras canas editadas transgene-free do mundo, ou seja, sem a inserção de DNA externos, obtidas pela tecnologia Crispr-Cas9, que permitiu o silenciamento de genes da planta sem a incorporação de nenhuma sequência gênica advinda de outros organismos. “O que fizemos foi gerar uma planta melhorada, muito semelhante ao processo que ocorre na natureza”, afirma o agrônomo Hugo Molinari, líder da pesquisa na Embrapa Agroenergia, em Brasília.
Sigla de Conjunto de Repetições Palindrômicas Regularmente Espaçadas, a tecnologia Crispr utiliza a proteína Cas9 para cortar o DNA em pontos específicos a fim de induzir mutações em regiões de interesse. O desenvolvimento dessa ferramenta rendeu o Prêmio Nobel de Química de 2020 à geneticista francesa Emmanuelle Charpentier e à bioquímica norte-americana Jennifer Doudna, que trabalharam em parceria para obter um sistema mais simples, rápido e acessível do que outros métodos de edição gênica (ver Pesquisa FAPESP nº 288).
Utilizando a nova tecnologia, Molinari obteve duas variedades de cana com características de grande interesse para o setor sucroenergético. A primeira, batizada de Flex I, apresenta maior digestibilidade (capacidade de ser digerida) da parede celular. Esse traço proporciona melhor aproveitamento da biomassa da cana-de-açúcar, tanto para a geração de energia quanto para a nutrição animal; em outras palavras, a parede celular é mais fácil de ser quebrada, permitindo acesso mais fácil às reservas energéticas da planta. A outra, Flex II, tem maior concentração de sacarose, o que lhe confere maior teto produtivo. Em ambas as variedades foi suprimida a expressão dos genes BAHD1 e BAHD5, respectivamente, envolvidos na produção de aciltransferases. Essas enzimas, objeto de estudo de Molinari há 12 anos, são responsáveis pela formação da estrutura da parede celular da planta.
“Para usar a técnica de edição genômica é necessário ter alvos bem estabelecidos”, diz o pesquisador. Ele já sabia que essas enzimas são responsáveis pela rigidez da parede celular da planta. A expectativa era que o silenciamento do gene BAHD1, que a codifica, resultasse em maior digestibilidade da biomassa. E foi o que aconteceu, dando origem à variedade Flex I. A surpresa veio quando o grupo de pesquisa começou a estudar outro gene da mesma família, o BAHD5: além de maior digestibilidade, a variedade resultante com esse gene também silenciado apresentou concentração maior de açúcares. “Houve aumento de glicose, sacarose e frutose, tanto no colmo [o caule da planta] quanto nos tecidos foliares”, informa Molinari.
A tecnologia Crispr-Cas9 de edição de genomas já havia sido empregada em cana-de-açúcar por um grupo de pesquisa liderado pelo agrônomo norte -americano Fredy Altpeter, na Universidade da Flórida. Entretanto, a metodologia utilizada por ele gerou plantas consideradas transgênicas, pois no processo de edição houve a incorporação de genes exógenos. “Foram incorporados três genes: um que codifica a proteína Cas9, outro que codifica o RNA-guia [que conduz a Cas9 até a região do genoma que se deseja editar] e um terceiro chamado de marcador seletivo, que permite identificar as células transgênicas”, explica o biólogo Marcelo Menossi Teixeira, coordenador do Laboratório de Genoma Funcional do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
O pesquisador, que não participou do trabalho da Embrapa, começou a usar a tecnologia Crispr há três anos, quando uma pós-doutoranda supervisionada por ele, Lucia Mattiello, realizou estágio na Universidade da Flórida, sob supervisão de Altpeter. Atualmente, Menossi pesquisa como a edição gênica, dentre outras ferramentas, pode ajudar na criação de uma variedade de cana mais resistente à seca. “Altpeter conseguiu resultados interessantes com a planta, mas eliminar transgenes [editar genomas sem empregar a transgenia] em cana-de-açúcar é bastante complicado”, avalia o biólogo da Unicamp, referindo-se à complexidade genética da cana – a planta tem cerca de 10 bilhões de pares de bases, três vezes mais que o genoma humano.
“O trabalho da Embrapa é um marco na ciência brasileira. O fato de Molinari já ter colocado plantas no campo mostra a viabilidade da tecnologia”, diz a bióloga Adriana Capella, diretora de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro de Tecnologia Canavieira (CTC). Localizado em Piracicaba e controlado por empresas do setor sucroenergético e pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o CTC lançou a primeira cana transgênica do mundo, aprovada em 2017 pela CTNBio (ver Pesquisa FAPESP nº 258). Agora, também investe em edição gênica por meio da unidade CTC Genomics, inaugurada em 2018, em Saint Louis, nos Estados Unidos. “Estamos validando a tecnologia com incorporação de genes exógenos e já temos plantas editadas DNA-free na casa de vegetação”, adianta a pesquisadora.
Rápida e econômica
A busca de uma nova variedade de planta melhorada geneticamente, mas sem a adição de genes exógenos, justifica-se economicamente. O processo de aprovação de uma variedade transgênica pela CTNBio requer uma série de testes de biossegurança que tornam o processo lento e oneroso. De acordo com Molinari, o custo estimado para o desenvolvimento de uma planta transgênica é de cerca de US$ 130 milhões, sendo que até 60% do custo final se destina às demandas das normas para liberação comercial.
“Grandes multinacionais têm recursos para arcar com os custos de aprovação de um transgênico. Por isso, a regulamentação excessiva transforma-se numa espécie de seleção natural de grandes empresas”, critica Menossi. Para Molinari, a edição genômica chegou para revolucionar o setor, democratizando o uso da biotecnologia. “Startups, institutos e universidades, agora todos podem jogar o jogo”, declara.
O agrônomo Alexandre Nepomuceno, chefe-geral da Embrapa Soja, destaca outra vantagem da Crispr: a simplicidade. “É uma tecnologia muito mais rápida, barata e precisa.” Ele conta que soube da novidade em 2011, quando coordenava o Laboratório Virtual da Embrapa no Exterior (Labex). O pesquisador passava uma temporada no Plant Gene Expression Center, associado à Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, onde pesquisava Jennifer Doudna.
“Eu estava trabalhando com a técnica de edição genônica Talen, que era a tecnologia de ponta na época, junto com Molinari”, lembra Nepomuceno. “Um dia, no intervalo do café, comentamos com alguns pesquisadores do centro norte-americano que estávamos editando gene de soja e nos falaram da Crispr, que acabava de ser descoberta. Utilizando a nova ferramenta, conseguimos em apenas uma semana e ao custo de US$ 500 resultado semelhante ao trabalho de quase quatro meses e que havia custado cerca de US$ 10 mil”, compara o pesquisador.
Nepomuceno relata essa história como exemplo da importância das viagens de intercâmbio e das parcerias com pesquisadores de outros países para o avanço da ciência no Brasil. Para a Embrapa, parcerias também são fundamentais para levar a inovação do laboratório para o campo. Atualmente, enquanto aguarda as patentes das novas variedades de cana-de-açúcar, a instituição busca parceiros comerciais que tenham interesse em inseri-las no mercado.
Nas prateleiras
No exterior, alimentos editados geneticamente começam a chegar às prateleiras. Segundo o livro Tecnologia Crispr na edição genômica de plantas –
Biotecnologia aplicada à agricultura (Embrapa, 2020), iniciou-se em 2019 a comercialização, nos Estados Unidos, de um óleo de soja com alto teor oleico produzido por meio do sistema Talen pela empresa de biotecnologia Calyxt.
Em setembro do ano passado, um tomate com cinco vezes mais ácido gama-aminobutírico (Gaba) foi o primeiro alimento geneticamente editado por Crispr a ser comercializado no mundo. O tomate está sendo vendido no Japão. Segundo a empresa que o comercializa, a Sanatech Seed, seus altos níveis do aminoácido Gaba contribuem para a redução da pressão arterial e dos níveis de estresse.
No Brasil, a primeira planta editada com Crispr foi uma variedade de milho produzida pela Corteva Agriscience, aprovada pela CTNBio como não transgênica em 2018. É uma variedade que produz apenas um tipo de amido, a amilopectina, graças ao silenciamento do gene responsável pela produção da amilose. Com a alteração, o alimento torna-se mais facilmente digerido pelo organismo. A variedade ainda não está sendo comercializada e segue em fase de pesquisa.
Desde 2017, a Embrapa vem investindo em edição genômica para quatro culturas: cana-de açúcar, soja, milho e feijoeiro. Maior tolerância à seca e resistência a pragas, inativação de fatores antinutricionais e maior durabilidade são algumas características que o programa de melhoramento genético da instituição busca atingir. “A edição genômica permite uma abertura de possibilidades que a gente nunca viu antes”, diz Molinari. “Os transgênicos têm potencial gigantesco de uso, mas, no contexto brasileiro, a incorporação da tecnologia Crispr-Cas9 nos programas de melhoramento genético, seja ele vegetal, animal ou com microrganismos, será um divisor de águas.”
Projeto
Edição do genoma de cana-de-açúcar utilizando Crispr-Cas9 para mutagênese específica da biossíntese de etileno (nº 17/09817-0); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Marcelo Menossi Teixeira (Unicamp); Beneficiária Lucia Mattiello; Investimento R$ 235.195,05.
Artigo científico
OZ, M.T. et al. Crispr-Cas9-mediated multi-allelic gene targeting in sugarcane confers herbicide tolerance. Frontiers in Genome Editing Journal. v. 3. jul 2021.