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Resenha

Encadeamento filosófico

A cadeia secreta – Diderot e o romance filosófico | Franklin de Mattos | Editora Unesp | 162 páginas | R$ 34,00

Uma das maiores ilustrações do Iluminismo francês do século XVIII encarnou-se na Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios, escrita entre 1747 e 1766 no intuito de “reunir”, numa única obra, “os conhecimentos espalhados sobre a superfície da Terra”, como resumiu no verbete “Enciclopédia”, redigido em 1755, Denis Diderot (1713-1784). Com Jean d’Alembert (1717-1783), ele concebeu e coordenou o ambicioso projeto.

Diderot descobriu, contudo, que a reunião de especialistas, artistas e homens de letras não garantia uma obra perfeitamente acabada, que restituísse um universo inequívoco, desde então disponível para todos, até porque, no limite, cada um dos colaboradores “tinha sua maneira de sentir e de ver”. E, mais do que isso, o filósofo passava a intuir que o grande obstáculo ao projeto não residia tanto nas diferenças de visão dos colaboradores quanto na própria natureza da linguagem. Em vez de mediar a aproximação de um real supostamente inteligível por meio do estabelecimento de conceitos e representações estáveis e claramente remissíveis a outros conceitos e representações, a linguagem parecia adiar a aquisição de certezas filosóficas ou práticas. Estas, de fato, não cessavam de se perder no redemoinho dos verbetes e das pranchas da Enciclopédia: “Vimos, à medida que trabalhávamos, a matéria estender-se, a nomenclatura obscurecer-se, substâncias reduzidas a uma infinidade de nomes diferentes, os instrumentos, as máquinas, e as manobras multiplicando-se desmesuradamente, e os numerosos desvios de um labirinto inextricável se complicando cada vez mais”.

Nesse sentido, o trabalho do filósofo, longe de iluminar plenamente o sentido do mundo, vinha revelar sua irredutibilidade à linguagem, permanecendo sempre, de certa forma, assombrado pelo não senso. E “uma verdadeira Enciclopédia”, em última instância, não poderia ser senão um texto por se escrever.

Creio que essa suspeita em relação à linguagem foi uma das principais razões pelas quais o romance adquiriu tanta importância na obra mais tardia de Diderot, numa articulação entre filosofia e literatura que, desde então, se imporia de maneira cada vez mais consistente e incisiva como domínio e prática do pensamento.

E é especialmente à tal articulação que se dedica Franklin de Mattos em A cadeia secreta, seu segundo livro dedicado a Diderot, em que vai muito além de uma arguta e necessária reconstituição da contribuição do escritor para o “lento processo de habilitação do romance no século XVIII”. Mattos mostra ao longo de sete ensaios como, nos romances do “inquieto experimentador”, redesenham-se suas “duas grandes vocações”: “o materialismo e a conversação”, mas sem por isso deixarem de manter uma secreta consonância, ou cadeia, com as obras filosóficas e dramatúrgicas do escritor.

Conciliando capacidade de síntese com erudição crítica, Mattos retrama os elos dessa cadeia a partir especialmente da apresentação e da leitura de três obras primordiais: As joias indiscretas, A religiosa e Jacques, o fatalista. Cabe destacar dois aspectos fundamentais no que tange ao confronto incontornável entre a ordem da natureza e as convenções morais que a obra de Diderot expõe e que as análises de Mattos exploram.

O primeiro aspecto diz respeito à atenção de Diderot à dimensão material do desejo, que, na leitura de Mattos, aparece especialmente na perspectiva do feminino: seja ao fazer “ouvir” a “voz impertinente” das joias femininas, seja com a descrição de “cenas de prazer sáfico” entre religiosas, seja no teatralizado embate entre “maquiavelismo feminino” e “despotismo masculino”.

O segundo aspecto concerne à dimensão labiríntica da linguagem. A trama de A religiosa se configura como uma “falsa história verdadeira”, produzida a partir da manipulação de cartas trocadas entre personagens ficcionais e reais. Jacques, o fatalista, por sua vez, constitui-se como uma longa conversa em que se cruzam e recruzam vozes, reabrindo indefinidamente “os anéis da vasta cadeia que nos determina”.

Ao longo do livro, Mattos retoma e revitaliza o debate em torno do espinozismo de Diderot: “Embora fatalistas, continuamos a falar, pensar e escrever como se fôssemos livres”. Ironicamente, faz ressoar um impasse que, desde o Iluminismo do século XVIII, continua sendo nosso.

Marcelo Jacques de Moraes é professor de literatura francesa na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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