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Ana Mello
Paulo Mendes da Rocha em seu escritório, no prédio do IAB, em março de 2018Ana MelloO arquiteto Paulo Mendes da Rocha, morto em 23 de maio, teve uma trajetória acadêmica peculiar. Em 1969 foi cassado pela ditadura militar (1964-1985), com outros 65 professores da Universidade de São Paulo (USP). Com a abertura política, em 1980 voltou à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) daquela instituição como auxiliar de ensino – condição na qual permaneceu até tornar-se professor titular em 1998, quando então foi aposentado de forma compulsória, ao completar 70 anos. Em 2010, recebeu o título de professor emérito. “Paulo não fez mestrado e doutorado, mas mesmo sem uma carreira acadêmica formal ajudou a formar gerações de arquitetos. Mais tarde, inclusive, trabalharia em parceria com alguns desses ex-alunos”, conta Helena Ayoub, professora do Departamento de Projeto da FAU-USP. “Ele mostrou que o projeto de uma obra também pode ser uma instância de pesquisa.”
Com ela concorda Ana Maria de Moraes Belluzzo, também professora da FAU-USP. “Paulo foi um grande pensador e defensor implacável da função social da arquitetura e do urbanismo no mundo contemporâneo. Não por acaso, a obra dele inspira teses, dissertações e artigos acadêmicos no Brasil e mundo afora.” O jeito eloquente e sagaz do professor, conhecido pelo temperamento forte e ácido, também costumava inspirar os estudantes de arquitetura. “Ele era um excelente contador de histórias e não falava apenas de arquitetura, mas de assuntos como artes visuais e política. Quando parava para conversar nas rampas ou nos espaços coletivos da FAU, logo se formava um grupo enorme para ouvir suas tiradas. É difícil algum aluno passar pela FAU sem visitar suas obras ou ler seus ensaios e entrevistas publicados em jornais e revistas”, conta o ex-aluno Leandro Medrano, hoje docente na mesma instituição. “Paulo tinha um olhar único sobre o mundo e inspirador sobre a realidade. Era capaz de encontrar novos ângulos em qualquer assunto”, diz Luiz Eugenio Mello, atual diretor científico da FAPESP, que em 2010 contratou com Rocha o projeto arquitetônico do Instituto Tecnológico Vale.
Paulo Archias Mendes da Rocha nasceu em Vitória (ES), em 25 de outubro de 1928. Por volta dos 6 anos, mudou-se com a família para São Paulo. O apreço pelo ato de construir estava presente na família. O pai, o engenheiro Paulo de Menezes Mendes da Rocha (1887-1967), dirigiu a Escola Politécnica da USP entre 1943 e 1947; o avô materno, Serafim Derenzi (1863-1941), trabalhou como empreiteiro no Espírito Santo.
Rocha formou-se em 1954 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie (FAU-UPM). Quatro anos mais tarde, aos 29 anos, venceu em parceria com o então sócio, o arquiteto João Eduardo de Gennaro (1928-2013), o concurso para projetar o ginásio do Clube Athletico Paulistano. “É uma obra que contém os elementos fundamentais do jeito de projetar do Paulo. Ali ele já disse tudo”, afirma o arquiteto Ciro Pirondi, um dos fundadores da Escola da Cidade, faculdade de arquitetura situada no centro paulistano, onde, segundo ele, cerca de 90% dos professores foram alunos de Rocha. “Ele era extremamente rigoroso com a técnica, mas não abria mão da poesia.”
Em 1961, a estrutura circular, de laterais abertas, coberta com madeira e telhas metálicas e sustentada por seis pilastras recebeu o grande prêmio internacional de arquitetura na 6ª Bienal de São Paulo. O feito projetou na cena paulistana o nome do jovem discípulo da chamada escola paulista de arquitetura, conhecida pelos espaços abertos, a valorização da estrutura e o uso do concreto aparente. “Paulo fazia uma arquitetura de formas elementares e muito lógica, em que nada era por acaso. Todos os elementos construtivos estavam ali por uma razão de ser”, observa Edson Mahfuz, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FAU-UFRGS).
Naquele mesmo ano foi convidado a lecionar na FAU-USP pelo arquiteto João Batista Vilanova Artigas (1915-1985), apontado como mentor da escola paulista de arquitetura e um de seus grandes mestres. São dessa época projetos como o da Casa Butantan (1964), onde viveu com a primeira mulher, Virginia Ferraz Navarro, e os filhos. Pouco depois veio a perseguição a Rocha e Artigas. “Na época, meu pai era um arquiteto em ascensão e a retirada de seus direitos civis atrapalhou a carreira dele dentro e fora da universidade”, afirma o filho, o também arquiteto Pedro Mendes da Rocha.
Ao ser cassado pelo regime militar, Rocha foi proibido de trabalhar para órgãos do governo, mas, por ironia, venceu o concurso para desenhar o Pavilhão de Osaka, que abrigaria a sede do Brasil na Exposição Internacional do Japão, em 1970. “Ele precisou ir ao Japão para desenvolver o trabalho e viajou com muito medo de sofrer um atentado por parte do regime brasileiro”, prossegue o filho. “Após a feira, o pavilhão seria demolido, mas ele dizia ter recebido proposta de uma universidade interessada em transformar aquele espaço em escola de música, coisa que adorava. No entanto, os militares recusaram a oferta e o pavilhão acabou sendo mesmo derrubado. Ele costumava falar que essa foi sua segunda cassação.”
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Ana Mello
Sesc 24 de Maio, projeto que desenvolveu em parceria com o escritório MMBB, formado por ex-alunosAna MelloA partir da década de 1980, com o enfraquecimento da ditadura, o arquiteto realizaria uma série de projetos que se tornaram emblemáticos em sua trajetória, como o do Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE), em São Paulo, finalizado em 1988. Nos anos 1990, ao ser contratado para fazer a reforma da Pinacoteca do estado, situada em um edifício neoclássico desenhado pelo engenheiro-arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-1928), Rocha decidiu desenvolver o projeto no próprio canteiro de obras em parceria com o também arquiteto Eduardo Colonelli. Mas nunca abandonou o escritório que funciona desde 1973 no mesmo endereço: um prédio comercial na Vila Buarque, região central da cidade, onde também fica a seção paulista do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB).
“Naquele momento muitos escritórios de arquitetura trocavam a prancheta pelo computador, mas ele gostava de desenvolver suas ideias em desenhos feitos à mão livre, sobre papel manteiga ou em maquetes de papel”, relata Catherine Otondo, professora da FAU-UPM e autora da tese “Desenho e espaço construído: Relações entre pensar e fazer na obra de Paulo Mendes da Rocha”, defendida em 2013, na FAU-USP. “Como o computador não fazia parte de seu processo criativo, ele decidiu não trazer equipamentos tecnológicos para seu escritório. Na mesma época, dispensou sua equipe e passou a desenvolver seus projetos em parceria com escritórios formados por ex-alunos ou colaboradores antigos”, informa.
O reconhecimento internacional veio na segunda metade da década de 1990. É curioso observar que o primeiro livro publicado sobre a obra do arquiteto, Mendes da Rocha (1996), tenha saído por uma editora estrangeira, a espanhola Gustavo Gigli. A publicação é assinada pelo crítico de arquitetura catalão Josep Maria Montaner e pela arquiteta brasileira Maria Isabel Villac, que na época fazia doutorado sobre a obra de Rocha na Universitat Politecnica de Catalunya, em Barcelona. Segundo a pesquisadora, o trabalho do arquiteto era então praticamente desconhecido na Europa. “Quando apresentei a obra do Paulo aos meus professores, a exemplo de Montaner, eles ficaram muito surpresos com a qualidade dos projetos”, diz Villac, hoje professora da FAU-UPM, para completar: “No Brasil, Paulo era conhecido no meio da arquitetura, mas vale lembrar que as obras desses arquitetos, que, como ele, fizeram parte da escola paulista de arquitetura, perderam espaço para a arquitetura pós-moderna e sumiram das revistas especializadas a partir do início dos anos 1980”.
Pouco depois do lançamento do livro, o arquiteto foi homenageado em 1997 com a Sala Especial Mendes da Rocha na 10ª Documenta de Kassel, maior mostra de arte contemporânea do mundo, na Alemanha. No ano 2000, recebeu o Prêmio Mies van der Rohe para Arquitetura Latino-americana pelo projeto de reforma da Pinacoteca. “Ele conferiu nobreza aos projetos de reforma, vistos como trabalhos menores”, diz Belluzzo. Em 2006 tornou-se o segundo arquiteto brasileiro a vencer o Pritzker, apontado como o Nobel da Arquitetura – o primeiro foi Oscar Niemeyer, que dividiu o prêmio com o arquiteto norte-americano Gordon Bunshaft, em 1988. Em 2015 recebeu o título doutor honoris causa da Universidade de Lisboa, em Portugal. Seguiram-se, entre outros, o Leão de Ouro da Bienal de Veneza (2016), o Praemium Imperiale (2016), concedido pela Japan Art Association, e as medalhas de ouro do Real Instituto de Arquitetos Britânicos (2017) e da União Internacional de Arquitetos (2021).
A conquista dessas honrarias não afetou sua rotina, de acordo com o filho Pedro. “Ele continuou a realizar poucos projetos, o que lhe permitia estabelecer uma relação próxima com a produção de cada um deles, e manter-se firme à sua ideia de só fazer o que de fato acreditava e de forma artesanal”, conta. “Além disso, prezava um estilo de vida austero, sem celular, site e carro. Era um grande defensor do transporte público, adorava andar a pé, gostava muito de rua.”
Reflexo disso está em um de seus últimos projetos, o Sesc 24 de Maio (2017), que assina em parceria com o escritório MMBB Arquitetos, dos ex-alunos Fernando de Mello Franco, Marta Moreira e Milton Braga. Situado no burburinho do centro paulistano, o edifício antes ocupado por uma loja de departamentos foi adaptado para abrigar 13 andares, conectados por uma rampa, que conduzem a uma piscina aberta, na cobertura. “O térreo é uma continuidade da rua e se constitui numa espécie de praça, que convida a cidade para dentro do prédio”, analisa a arquiteta Raquel Rolnik, professora da FAU-USP. “Paulo acreditava que usufruir da arquitetura era um direito de todos e que ela precisava participar da paisagem urbana de forma aberta e fraterna.”
Paulo Mendes da Rocha morreu aos 92 anos, vítima de um câncer de pulmão. Deixa a mulher, a arquiteta e designer de joias Helene Afanasieff, e os filhos Renata, Guilherme, Paulo, Pedro, Joana e a caçula Nadezhda.
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