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Botânica

Entre cipós e algas

A partir de levantamentos de flora, pesquisadores investigam processos de diversificação das espécies

Enredadas: lianas têm ajudado a desvendar origens da biodiversidade amazônica

Léo RamosEnredadas: lianas têm ajudado a desvendar origens da biodiversidade amazônicaLéo Ramos

Nas últimas décadas, a abordagem tradicional de levantamentos de flora e fauna feitos no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) recebeu um reforço importante com o uso de material genético na reconstrução de filogenias, diagramas em forma de árvore que representam as relações de parentesco evolutivo entre as espécies. Mas, na medida em que o conhecimento avançou, ficou claro que para explicar a origem da biodiversidade era necessário dar um novo passo, elaborando uma narrativa completa que incluísse as transformações ecológicas e geográficas que levaram à formação dos grandes ecossistemas, ou biomas.

No caso da Amazônia, o local de maior biodiversidade do planeta, detalhes importantes sobre essa narrativa começam a ser revelados. “Dados obtidos com cipós indicam que a diversificação de espécies na Amazônia ocorreu há cerca de 3 milhões de anos, bem mais recentemente do que se imaginava”, conta a botânica Lúcia Lohmann, especialista na família Bignoniaceae (que inclui cipós, ipês e jacarandás). “Estudos com aves, primatas e borboletas também confirmam essa data.”

Dados geológicos, por sua vez, indicam que a formação da bacia hídrica da Amazônia ocorreu na mesma época. A Amazônia foi recortada por rios que separaram populações, interrompendo o fluxo gênico e dando origem a espécies diferentes em cada lado, num exemplo do clássico mecanismo de especiação por isolamento geográfico proposto por Charles Darwin. “No caso das aves, temos alguns exemplos de grupos terrestres cuja distribuição atual se encaixa perfeitamente nos recortes da bacia hidrográfica”, conta Lúcia.

Astolpho de Souza Grotta examina amostra de planta desidratada no herbário, na década de 1970

Arquivos Departamento de BotânicaAstolpho de Souza Grotta examina amostra de planta desidratada no herbário, na década de 1970Arquivos Departamento de Botânica

Os cipós são um bom modelo de estudo porque eles são típicos das florestas tropicais e as diferenciam das temperadas. No entanto, só foi possível utilizá-los como um grupo-modelo no projeto integrado de pesquisa porque Lúcia já havia se debruçado sobre a sistemática, ou classificação, das Bignoniaceae, até então uma grande dor de cabeça para os botânicos. A pesquisadora refez toda a classificação para refletir o parentesco entre as espécies. Esse trabalho, cruzado com informações de fósseis e dados sobre a distribuição geográfica das espécies atuais, permitiu identificar locais de origem para as diversas linhagens e a história biogeográfica do grupo.

A origem dos cipós, também conhecidos como lianas, deve ter ocorrido há cerca de 50 milhões de anos na região da mata atlântica. Há pouco mais de 40 milhões de anos essas plantas chegaram à Amazônia, onde se diversificaram enormemente. Dez milhões de anos mais tarde, uma linhagem de cipós ocupou as regiões dos campos rupestres e o cerrado, com grandes transformações de hábito e adaptações ao fogo. Algumas espécies viraram arbustos e perderam as gavinhas, outras ganharam um caule enterrado que, como um bulbo, permite o rebrotamento em caso de fogo. Posteriormente, algumas espécies voltaram a ocupar a mata atlântica, chegando ao número atual de cerca de 400 espécies.

Oceanos
O conhecimento sobre a biodiversidade, porém, não aumenta apenas em terra. A pesquisa com algas marinhas, também apoiada pelas técnicas de filogenética, estão multiplicando o número de espécies conhecidas em nossos mares. “Nossa diversidade foi bem estudada, porém ainda está subestimada”, conta Mariana Cabral de Oliveira, especialista em algas e chefe do Departamento de Botânica. “Em alguns grupos de algas o número de espécies dobrou, e descobrimos até novos gêneros.” Os pesquisadores estão usando marcadores moleculares, que funcionam como um código de barras, para separar espécies indistinguíveis do ponto de vista morfológico, ou para unificar outras que assumem variações morfológicas em ambientes diferentes. Entre outros achados, o grupo encontrou no litoral brasileiro uma alga com poucos milímetros coletada apenas na Somália e no Quênia nas décadas de 1970 e 1980 por um pesquisador italiano. Essa alga diminuta já era conhecida no registro fóssil e tem um papel importante para explicar a evolução de algas calcárias (Corallinales).

Apesar das novas abordagens, os levantamentos de flora ainda são a base fundamental do estudo da biodiversidade. O departamento já listou as floras completas da serra do Cipó e de Grão Mogol, região de campos rupestres e ambas na cadeia do Espinhaço em Minas Gerais, e colaborou na flora de São Paulo, um projeto que conta com a coordenação do Instituto de Botânica de São Paulo. Publicou também a flora de algas marinhas bentônicas (aquelas fixas ao fundo do mar) do Brasil e a flora de algas de Abrolhos, na Bahia. “O levantamento florístico é a base de toda pesquisa sobre evolução das plantas, pois é necessário conhecer a morfologia das plantas para relacionar com os aspectos ecológicos e filogenéticos”, explica José Rubens Pirani, professor do departamento. “Além disso, se presta bem à formação acadêmica, já que cada aluno pode se debruçar sobre uma família ou grupo quando inicia seus estudos.”

Apesar da tradição de estudos no departamento, diversidade de algas marinhas ainda é subestimada

Eurico C. de oliveira / ib-uspApesar da tradição de estudos no departamento, diversidade de algas marinhas ainda é subestimadaEurico C. de oliveira / ib-usp

Os levantamentos também têm desempenhado papel importante em conservação. As floras da serra do Cipó e de Grão Mogol foram argumentos decisivos para convencer as autoridades a fundar parques nessas regiões, e os estudos de Eurico Cabral de Oliveira com algas contribuíram para a criação do Parque Nacional Marinho de Abrolhos e da Reserva Biológica Marinha de Atol das Rocas.

Tradição
O foco na biodiversidade nativa remonta ao trabalho da anatomista vegetal Nanuza Luiza de Menezes, a primeira a abraçar uma família exclusivamente brasileira, a Velloziaceae, grupo da canela-de-ema e típica dos campos rupestres. Nanuza, que comemorou seus 80 anos junto com a USP, foi aluna de Aylthon Brandão Joly, que nos anos 1940 iniciou no departamento os estudos em biodiversidade. Foi ele quem insistiu para que ela abandonasse o estudo do abacate – era prática comum da época usar espécies introduzidas – e focasse nas plantas brasileiras. Nanuza foi a primeira pesquisadora a visitar os campos rupestres. “Fiquei apaixonada pela paisagem e pelas Velloziaceae, e levei meus orientandos para lá”, conta ela. Seus estudos anatômicos são uma das peças que ajudam a entender o quebra-cabeça da história evolutiva das plantas.

A nova abordagem integrativa segue a trilha dessa tradição florística e de conservação. “Com o conhecimento que estamos adquirindo, a conservação deixará de ser um discurso para ter embasamento científico de fato”, diz Lúcia. “Será possível definir áreas e espécies prioritárias para conservação.” O projeto coordenado por ela é uma parceria entre a USP e o American Museum of Natural History, de Nova York, e inclui 17 outras instituições do Brasil, Estados Unidos, Argentina, Inglaterra e Canadá. O projeto temático está no terceiro ano e promete estabelecer uma metodologia que servirá de padrão para estudar outros biomas brasileiros.

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