GLÁUCIA RODRIGUESO pesquisador Angelo Machado tem o hábito de dar grandes saltos de tempos em tempos. Médico formado, especializou-se em neuroanatomia. Uma vez aposentado, prestou concurso em zoologia e virou um renomado entomólogo. Aos 50 anos começou a escrever livros para crianças e hoje é autor consagrado. Simultaneamente a essas atividades, trabalha como ambientalista com ênfase na preservação de espécies ameaçadas de extinção. Aos 72 anos, ele voa sobre todos esses assuntos com a leveza de um inseto. Para ser mais preciso, como se fosse uma libélula, bicho pelo qual nutre fiel paixão desde os 15 anos de idade.
Natural de Belo Horizonte, Angelo Machado passou toda sua vida de pesquisador na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – com a exceção de dois anos e meio vividos em Chicago, Estados Unidos, na Universidade de Northwestern, onde fez pós-doutorado. Escreveu mais de cem artigos científicos sobre neurobiologia e entomologia e descreveu 48 novas espécies e quatro gêneros de libélulas. Ao mesmo tempo, seu nome foi incorporado a 27 seres vivos, entre libélulas, borboletas, besouros, aranhas e até um fungo, como homenagem de outros pesquisadores ao seu trabalho.
Hoje a produção científica exuberante parece interessá-lo menos que seu hobby atual, escrever para crianças. Embora ainda esteja ativo como pesquisador e professor emérito da UFMG, Machado descobriu o universo fantástico da literatura infantil há 20 anos. Ao mesmo tempo que conta histórias ensina um pouco de biologia em seus livros, o que no início rendeu diversas críticas dos que não acham ser possível conciliar literatura com ciência.
Pai de quatro filhos – Lúcia, Flávia, Paulo Augusto e Eduardo – e avô de seis netos, Machado é casado com Conceição, pesquisadora em biologia celular. No início da carreira, ela realizou e publicou trabalhos com o marido e ambos criaram o Laboratório de Neurobiologia da UFMG. Há cerca de 25 anos Machado foi para o Departamento de Zoologia e Conceição continuou na mesma linha de pesquisa onde está até hoje. Juntos, são o único casal da Academia Brasileira de Ciências.
De neurobiólogo, o senhor tornou-se entomologista. Mas diz que sua paixão sempre foi estudar insetos. Por que não foi direto para a entomologia em vez de fazer medicina?
Naquela época, em 1953, o curso de história natural estava começando e só tinha um bom professor e pesquisador de área que não me atraía. Pensei em fazer agronomia para poder estudar entomologia, mas olhei o programa e notei que tinha um monte de coisas que não me interessavam. Aí acabei na medicina porque o curso básico era muito bom tanto na teoria como na prática. Se fosse hoje, eu teria feito ciências biológicas e doutorado em entomologia.
O senhor chegou a atuar como médico?
Depois de formado, não. Mas no sexto ano, quando era estagiário da Maternidade Odete Valadares, em Belo Horizonte, fiz muitos partos. Mas graças a Deus não inventei de fazer obstetrícia, que é a coisa mais chata do mundo.
E o interesse pelos insetos?
Meu gosto pelas ciências naturais foi despertado pelo professor Henrique Marques Lisboa. Ele era catedrático da Faculdade de Medicina e gostava de dar aulas práticas em nossa escola primária. Levava a gente para ver as coisas da mata e mostrava como pegar, criar girinos e larvas de insetos aquáticos. Comecei a colecionar insetos que pegava na fazenda. Naquela época eu era sacristão e um dia me falaram sobre um padre que entendia tudo de insetos. Levei uns besouros dentro de uma caixinha para que ele identificasse. O padre olhou e falou, “Este, este e este eu dou o nome amanhã. Os outros eu não sei”. Pensei, “Que padre ignorante”. Depois fiquei sabendo que ele era o maior especialista do mundo em uma família de besouros que tinha 20 mil espécies. Fiquei amigo do padre Francisco Pereira e aprendi entomologia com ele. Juntos fizemos oito expedições à Amazônia e conhecemos várias tribos de índios que são ótimos coletores de insetos. Essa experiência foi importante quando me tornei escritor. Os índios estão em cinco de meus livros.
GLÁUCIA RODRIGUESEntre todos os insetos o senhor é fascinado por libélulas. Por quê?
Tenho uma tia, Lúcia Machado de Almeida, que foi escritora de literatura infantil. Em dois de seus livros os insetos são importantes: O escaravelho do diabo e O caso da borboleta Atíria. Um dia ela me disse, “Tem um professor chamado Newton Dias dos Santos que está dando um curso no Instituto de Educação e entende muito de libélulas. Leve suas libélulas lá que ele pode dar os nomes científicos”. Eu tinha 16 anos, fui até ele com uma caixinha com cinco libélulas e disse, “Professor, a tia Lúcia falou que o senhor poderia dar o nome dessas libélulas para mim”. Ele me olhou e falou assim, “Não vou dar nome de libélula nenhuma”. Eu me apavorei. Mas ele continuou, “Você mesmo vai achar os nomes”. E me deu o manuscrito da tese dele sobre libélulas de Lagoa Santa com a recomendação de ir para casa, estudar e descobrir sozinho. Fiz isso. No dia seguinte voltei lá, acertei alguns nomes, errei outros e ele me mostrou por que eu tinha errado. Aquilo foi decisivo. Em vez de simplesmente dar a solução, me mostrou o caminho. Aquelas libélulas eram banais. Se ele tivesse dado o que pedi eu teria apenas cinco nomes. Como não deu, mexo com libélulas até hoje. Passei as férias no Rio na casa do meu tio, o escritor Aníbal Machado, e ia diariamente ao laboratório do Newton Santos no Museu Nacional estudar libélulas. Voltei no ano seguinte. Assim me tornei especialista em libélulas
Quantos escritores havia na família?
Além de tia Lúcia, tinha minha prima Maria Clara Machado e meu tio Aníbal Machado, um nome importante na literatura brasileira. Meu pai, Paulo Machado, também escreveu um livro que foi premiado. O que não se sabe é como apareceu um cientista numa família como essa…
Deixe-me fazer uma pergunta inevitável: qual é a graça de estudar libélula?
São dois motivos básicos. Um é estético. A libélula é o animal mais bonito do mundo. As asas transparentes, os olhos grandes, a leveza, a rapidez do vôo, elas são lindas. O outro motivo é a biologia, que é muito interessante, porque ela passa parte de sua vida dentro d’água onde bota os ovos. Para estudos taxonômicos, que é o que eu faço hoje, o grupo das libélulas (odonatos) é muito bom. Está razoavelmente bem conhecido, mas ainda se encontram novas espécies. Isso é muito mais difícil, por exemplo, em aves e borboletas, já muito estudadas. Mas não é como em certas famílias de besouros, que têm tantas espécies novas que até se perde a graça de descrever.
O senhor publicou ainda muito novo o primeiro trabalho sobre libélula, não é?
Foi em 1953. Eu estava no primeiro ano da Faculdade de Medicina. O Newton me orientou e publiquei a descrição de uma fêmea desconhecida de libélula. Tinha 18 anos. Um ano depois descobri a primeira espécie nova. Hoje eu tenho cem trabalhos científicos publicados e, destes, 60 são sobre libélulas.
Mas os outros 40 artigos são sobre neurobiologia. Por que o senhor escolheu essa área?
Um dia, o professor Liberato João Afonso DiDio, catedrático de anatomia, me convidou para ser bolsista e, depois, seu assistente. Eu gostava de dissecar, mas não via muito futuro naquilo porque eu era mais da área microscópica. Então comecei a estudar e lecionar neuroanatomia porque me levava diretamente à histologia, à célula, e era disso que eu gostava. Estudei e publiquei um livro que até hoje se usa, o Neuroanatomia funcional.
O senhor também trabalhou nos Estados Unidos com microscopia eletrônica. Como foi esse período?
Estivemos lá durante dois anos e meio, eu e a Conceição, minha mulher. Antes deixe-me contar uma história. Quando já era professor veio uma aluna trabalhar comigo. Nessa época eu estudava uma glândula do cérebro, a pineal, e ela começou fazer o mesmo. Depois de algum tempo notamos que estávamos mais interessados um no outro do que na pineal. Fizemos um trabalho de namoro, um trabalho de noivado e trabalhos de casamento, que foram os quatro filhos. Quando alguém me pergunta, “O que você descobriu de mais importante na ciência?”, digo sempre, “Foi a Conceição”.
E como surgiu o interesse pela glândula pineal?
O professor DiDio tinha que escolher um tema de pesquisa para mim e disse, “Esse aluno gosta de coisas estranhas então vou arrumar algo muito estranho para ele estudar. Você vai estudar… a pineal”. Eu concordei. Aí ele imaginou um bicho bem maluco e disse, “Vai estudar a pineal do tatu”. Fiz essa pesquisa e logo descobri que tatu não tem pineal. Esse fato serviu, pelo menos, para despertar meu interesse pela glândula. Nessa época, a Conceição já trabalhava comigo e a Fundação Rockefeller me deu uma bolsa de pós-doutorado na Universidade de Northwestern, em Chicago. Casamos e fomos para lá, em 1965. A Conceição também arrumou para trabalhar com um professor que pesquisava a pineal. Eu fazia microscopia eletrônica e ela técnicas avançadas de histoquímica. Fizemos alguns trabalhos juntos e publicamos bastante naquela época, inclusive na Science. Aí veio aquele dilema que todo mundo tem quando está fora: ficamos ou voltamos para o Brasil? Apesar de termos convite para ficar, decidimos voltar.
Os filhos nasceram depois?
Levamos a Lúcia daqui e a Flávia nasceu lá. Já no Brasil nasceram Paulo Augusto e Eduardo. Como nunca perdi o vínculo com a UFMG, juntamente com a Conceição criamos o Laboratório de Neurobiologia. Ela se tornou professora de histologia e continuamos a trabalhar juntos. Em Chicago, ela aprendeu técnicas novas de histoquímica de fluorescência, para detectar catecolaminas [neurotransmissores]. Era algo muito avançado na época. Unindo a histoquímica com a microscopia eletrônica foi possível descobrir coisas muito interessantes.
GLÁUCIA RODRIGUESNa época seu interesse era voltado para a microscopia eletrônica?
Sim. Eu fui a Chicago aprender microscopia eletrônica para usar em minhas pesquisas. Quando cheguei lá já tinha assunto, que era o estudo da pineal e sua inervação simpática durante o desenvolvimento. Descobri uma função nova para o retículo endoplasmático liso. Naquela época achava-se que as vesículas sinápticas da noradrenalina eram produzidas somente no aparelho de Golgi, no corpo dos neurônios, e daí migravam para a periferia. Eu consegui demonstrar que elas podem ser produzidas também nos terminais simpáticos pelo retículo endoplasmático liso. Apresentei esse trabalho em um simpósio na Finlândia e ele foi muito bem recebido e muito citado. Depois, já na UFMG, iniciamos uma nova linha de pesquisas sobre as lesões do sistema nervoso autônomo na doença de Chagas e fizemos algumas descobertas interessantes. Nesse ponto eu me aposentei e fui para a zoologia. Conceição continuou ativíssima nessa mesma linha de pesquisa onde está até hoje.
O senhor também montou o laboratório de microscopia eletrônica, não é?
Coordenei um projeto para montar o Centro de Microscopia Eletrônica do Departamento de Morfologia do ICB. Mas isso foi exceção. Eu sempre usei todo o meu prestígio na universidade para não ser nada.
Como assim?
Eu nunca quis concorrer para chefe de departamento, reitor, diretor, nem nada, com medo de ganhar. Nunca quis cargos burocráticos. Mas aceitei o desafio de montar o Centro de Microscopia Eletrônica porque tinha um bom currículo e era o mais qualificado para isso.
Por que decidiu, depois da aposentadoria, fazer um novo concurso?
Eu era neurobiólogo e tinha um hobby, que era estudar libélulas. Quando me aposentei decidi fazer concurso de novo, para zoologia. Assim, o que era hobby virou profissão. Como um homem não deve viver sem hobby, comecei um novo, que foi escrever livros infantis e peças de teatro.
Quando o senhor escreveu o primeiro?
Foi há 20 anos, O menino e o rio. Fui de férias para a praia, comecei a escrever e saiu uma porcaria. Sem querer, eu usava linguagem científica. Resolvi então contar a história para uma criança imaginária no gravador e o texto melhorou muito. Hoje não preciso mais do gravador. Agora vou lhe fazer uma pergunta: você acha que o fato de ser cientista me ajudou ou atrapalhou?
Eu acho que uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Estou de acordo, mas muitas pessoas acham que tem. Existe um preconceito que cientista não sabe escrever livro para criança. Mandei O menino e o rio para a Editora Ática. Depois de um ano me devolveram. Disseram que como literatura não servia porque ensinava coisas e como ecologia também não, porque tem bicho que fala, o que não é verdade. Fiquei muito chateado e desanimado e percebi que escritor iniciante, principalmente se for cientista, não tem vez. Nessa época quem leu O menino e o rio, gostou e me animou muito foi meu grande amigo Oswaldo Frota-Pessoa. Foi então que o André Carvalho, da Editora Lê, soube do livro e me pediu os originais. Ele foi publicado, está com 25 edições e ainda é um dos livros infantis de maior sucesso da Editora Lê.
É o que mais vende?
Hoje não, mas mantém uma boa vendagem. No ano passado, a Secretaria de Educação de Belo Horizonte comprou 10 mil exemplares para distribuir nas escolas. Houve outras dificuldades. Uma crítica de literatura infantil escreveu que aquilo não era literatura, porque ensinava ciência e a mistura não dava certo.
Essa discussão foi superada?
Não. Até hoje ainda existe a postura de que cientista não sabe escrever literatura. Guimarães Rosa e Pedro Nava, que eram médicos, sabiam. Mas cientista não. Ainda há uma corrente na literatura infantil para a qual ela tem de ser só ficção. Uma vez tive uma discussão cordial sobre isso com a professora e crítica de literatura Marisa Lajolo. Na ocasião, eu disse a ela, “Veja se é verdade ou ficção: o que você acha de uma abelha que tenta copular com uma flor?”. Ela brincou, “Vai nascer uma florbelha”. Eu insisti, “É ou não é verdade?”. E expliquei que é verdade, sim. A flor libera uma substância que atrai a abelha para a cópula e ao tentar copular ela se lambuza de pólen e vai polinizar outra flor. Para conseguir se reproduzir, a flor engana a abelha que quer copular com ela. Isso não pode ser usado num livro? E, se for, não é literatura? Ora, a realidade, às vezes, é mais fantástica do que qualquer ficção. Bem, hoje meus livros já são bem aceitos pela crítica, pelos colegas e principalmente pelas crianças.
GLÁUCIA RODRIGUESNa verdade, o senhor tem uma vantagem sobre os outros escritores porque conhece assuntos ignorados por eles.
A desvantagem inicialmente apontada pelos críticos virou vantagem. Uso em minhas histórias fatos que um escritor comum não conhece.
Dê um exemplo disso.
– Veja o livro O Chapeuzinho Vermelho e o lobo-guará. Os zoólogos descobriram que o lobo-guará se alimenta mais de fruta que de carne. Então bolei uma nova versão para a história de Chapeuzinho Vermelho. O lobo-guará entra na casa da vovozinha e vai devorar Chapeuzinho quando vê uma melancia na fruteira e pergunta, “Chapeuzinho Vermelho, para que essa melancia tão grande?”. Ela responde, “É para você comer”. Aí, em vez de comer a menina, ele come a melancia e outras frutas e o lobo, que era terrível, acaba avacalhado. A descoberta dos zoólogos foi a base do livro, que ganhou o Prêmio Adolfo Aizen de Literatura Infantil, da União Brasileira de Escritores, em 1995.
Quantos livros o senhor escreveu?
Trinta e cinco livros para crianças e adolescentes, incluindo-se aí três textos de teatro, um livro de esquetes de teatro humorístico, um livro de humor para adultos e sete livros científicos. Esses de ciência incluem os que participei como um dos editores ou autores, como o Livro vermelho das espécies ameaçadas de extinção em Minas Gerais, A lista vermelha da fauna brasileira ameaçada de extinção e Áreas prioritárias para conservação em Minas. Todos destacam espécies ameaçadas de extinção.
Qual livro ganhou o Prêmio Jabuti?
O velho da montanha, uma aventura amazônica, da Editora Melhoramentos. Foi uma das maiores emoções da minha vida. Era meu terceiro livro e receber esse prêmio me fez acreditar que realmente eu era um escritor. A narrativa se passa na tribo Tirió, no Pará, onde estive um mês coletando inseto. Os heróis são os meninos índios que andavam na mata comigo e eu dedico o livro a eles. A parte antropológica está toda correta. No fim do livro há uma nota explicativa do que é verdade e do que é ficção. Outro livro de destaque foi O tesouro do quilombo, que recebeu o selo de Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Ele é o segundo de uma linha de livros de fundo histórico que eu iniciei.
Qual foi o primeiro?
Foi Os fugitivos da esquadra de Cabral. A Nova Fronteira havia me encomendado um livro no cenário do descobrimento para adolescentes. Eu não sabia o que escrever até que um dia, lendo a Carta de Pero Vaz de Caminha, me chamou a atenção uma frase. Sabe aquela história sempre repetida de que Cabral deixou dois degredados aqui? Na Carta tem uma frase assim: “… ficaram também dois grumetes que fugiram do navio esta noite”. Os grumetes são adolescentes e eu descobri a minha história. Por que fugiram, o que aconteceu com eles, como viveram entre os índios, tudo isso está em Os fugitivos… Foi um sucesso e considero meu livro mais bem elaborado.
O senhor conseguiria viver só de literatura hoje?
Não. Mas os direitos autorais de livros e de teatro ajudam bastante. O problema é que o mercado oscila muito. Por exemplo, no ano retrasado todos compraram livros: o governo federal, as prefeituras de São Paulo e de Belo Horizonte e o governo de Minas. Até o governo do México comprou. Já no ano passado as vendas caíram muito.
O senhor chegou a alguma conclusão sobre como a literatura infantil deve ser feita?
Eu acho que têm de ter histórias. Você pode entrar com poesia, onomatopéia, metáfora, a linguagem que quiser. As crianças, principalmente as que têm por volta de 10 anos, só vão gostar se tiver aventura. Outro componente importante que as crianças gostam é o humor. Eu costumo dizer que o escritor de literatura infantil é mais importante que o de literatura para adultos. Se os meninos não aprenderem a gostar de ler livros infantis, nunca lerão os livros de literatura para adultos. Se um adulto lê um livro e não gosta, ele deixa de lado e procura outro. O menino fecha o livro e não lê nunca mais.
GLÁUCIA RODRIGUESTodos os seus livros infantis têm base científica?
Não.
Então o senhor não faz literatura apenas para fazer divulgação científica.
Quando faço literatura infantil meu principal objetivo é desenvolver na criança o hábito e o gosto pela leitura. Esse é o meu compromisso. Se, além disso, ela aprender alguma coisa de ciências, tanto melhor.
Qual livro infantil não tem nada de ciência?
Um deles é O rei careca. Com ele aceitei o desafio de fazer um livro imitando os contos clássicos de Perrault e Grimm. Mas a coisa mais importante que fiz na minha vida foi a coleção Que Bicho Será?
Por quê?
Porque milhares de crianças já se divertiram com as histórias. A coleção tem cinco livros, foi lançada há dez anos e até hoje vende muito! Ela tem como objetivo desenvolver na criança a curiosidade, que considero a principal motivadora da pesquisa científica. Na coleção, os bichos são detetives. Aparece um mistério. Um ovo, por exemplo. A libélula acha o ovo, chama os outros bichos e surge a pergunta, “Que bicho será que botou o ovo?”, “Que bicho será que a cobra comeu?” etc. Depois dessa série a Nova Fronteira me pediu que eu fizesse outra coleção e eu fiz livros com o objetivo explícito de ensinar. Saiu a série de cinco livros da coleção Gente Tem, Bicho Também, que falam de nariz, garganta, olho, língua e dente. A coleção deu certo.
Os seus livros acabam sendo 2 em 1, literatura com ciência.
Na maioria, sim. No corpo do livro eu misturo ciência e ficção. No final tem sempre um anexo no qual o leitor descobre o que é real na história. Por isso, acho que a minha obra literária é também de divulgação científica.
O senhor escreveu um livro de humor. Como é ele?
Fiz o Manual de sobrevivência em recepções e coquetéis com bufê escasso, da Editora Lê, baseado no manual de sobrevivência na selva, das Forças Armadas. Qual é o principal problema de sobrevivência na selva? Arranjar comida e bebida. Numa festa com bufê escasso o problema é o mesmo. Veja a situação: você vai a um casamento e não janta porque vai ter coquetel. Chega lá e tem aquele mundão de gente e você, morto de fome, sai em perseguição aos garçons para conseguir um pastel ou uma empada. O que fazer? Explico isso no Manual, feito com base científica. Esse livro surgiu com uma brincadeira: a manobra da dupla pinça. Imagine que você está procurando uma empada há meia hora e um garçom pára com a bandeja na sua frente. A etiqueta diz que você só pode pegar uma. É o momento de usar a técnica da dupla pinça. Com o dedo indicador e o polegar você forma a pinça nº 1, que usa para pegar a primeira empada. Com o dedo mínimo e a parte interna da mão você forma a pinça nº 2, que usa para pegar a segunda empada. Assim consegue pegar duas de uma só vez como se tivesse pegando apenas uma, porque a segunda fica escondida. Não é magia, é tecnologia!
O senhor mesmo adaptou esse livro para o teatro?
Sim. A pedido do humorista Carlos Nunes eu fiz a adaptação com o nome Como sobreviver em recepções e coquetéis com bufê escasso. Já adaptei cinco livros infantis, todos encenados, três dos quais foram publicados também como teatro. A comédia sobre o bufê escasso ficou seis anos entrando e saindo de cartaz em Belo Horizonte e já esteve também no Rio. Cerca de 200 mil pessoas assistiram à peça, considerada um dos maiores sucessos da história do teatro em Minas.
Em maio haverá o lançamento de mais um livro científico do qual o senhor participa. Do que se trata?
Ele será lançado pela Fundação Biodiversitas e sou um dos quatro editores. É o Livro vermelho das espécies ameaçadas de extinção da fauna brasileira. São 627 espécies ameaçadas e cada uma terá um capítulo. Serão dois volumes com cerca de 800 páginas cada um e 282 autores.
Esse é parte de seu trabalho como ambientalista?
É. Entrei para o movimento ambientalista por puro egoísmo. Ia à fazenda do meu pai, no Vale do Rio Doce, e gostava de coletar insetos, andar na mata e ouvir o canto do macuco ou do jaó. A cada ano tinha menos mata e menos bicho. Como eu gostava daquilo me filiei ao Centro para a Conservação da Natureza em Minas Gerais. Depois de uns 15 anos, percebemos que a luta ambientalista devia ser mais científica. Então o Centro criou a Fundação Biodiversitas, que é uma ONG técnica, da qual eu fui fundador e presidente por vários anos.
O senhor também é presidente da Conservação Internacional – Brasil.
Sim. A CI-Brasil é uma ONG muito grande. Temos um corpo de 50 técnicos com nível superior, cinco escritórios com atividades no Brasil todo, principalmente na área de conservação de ecossistemas e criação de corredores ecológicos. A equipe técnica é muito boa, de modo que meu trabalho é mais de representação. Já na Biodiversitas eu sou presidente do Conselho Curador, mas trabalho também como técnico voluntário em projetos sobre espécies ameaçadas de extinção. Estou no movimento ambientalista há 30 anos. Nesse período a situação ambiental do Brasil mudou muito. O maior avanço foi a institucionalização das variáveis ambientais nos órgãos do governo e das grandes empresas. Nossa legislação é muito boa e houve um grande aumento na conscientização das pessoas sobre o meio ambiente. Mas ainda estamos longe de chegar à situação ideal.