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Financiamento

Equilíbrio no Parlamento

Influência do Congresso na definição do orçamento de pesquisa dos Estados Unidos evita cortes drásticos no investimento científico

Perto de completar um ano, o governo do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ainda não conseguiu aprovar o orçamento para o ano fiscal que se iniciou no dia 1º de outubro. O atraso ocorre porque a proposta de Trump enviada em fevereiro ao legislativo permanece em discussão no Congresso. Um sinal de avanço foi dado no dia 19 de outubro, quando o Senado aprovou um projeto de orçamento de US$ 4 trilhões. Agora em análise na Casa dos Representantes – a Câmara dos Deputados do país –, o plano mantém os níveis do ano anterior, embora amplie os recursos para o setor de defesa. No caso do desembolso em pesquisa e desenvolvimento (P&D), a proposta de Trump previa um corte de aproximadamente 5% em relação ao orçamento anterior. O Congresso, porém, já sinalizou que não deve aceitar tamanha redução. Em outubro, a Casa dos Representantes havia proposto um orçamento de US$ 164 bilhões para P&D – cerca de US$ 15 bilhões superior ao proposto por Trump e US$ 12 bilhões a mais em relação ao montante executado em 2016.

Matthew Hourihan, diretor do Programa de Orçamento e Política em Pesquisa e Desenvolvimento da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS), explica que a distribuição dos recursos de pesquisa nos Estados Unidos apresenta uma especificidade importante. “Os investimentos públicos em ciência e tecnologia são conduzidos analisando cada departamento, como defesa, energia e saúde, e a repartição do orçamento de pesquisa é negociada em comitês setoriais no Congresso”, diz. Essa característica contribui para que o processo de definição do orçamento norte-americano restrinja o poder discricionário do Executivo, analisa Fernanda De Negri, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que atualmente faz estágio de pós-doutorado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). “O Congresso exerce um papel central na destinação dos recursos federais”, observa Fernanda, autora de um estudo sobre o orçamento científico nos Estados Unidos.

Nessa dinâmica, os orçamentos das agências federais podem ser discutidos separadamente nos comitês do Congresso. “As negociações permitem, por exemplo, que o diretor da Agência de Pesquisa Avançada de Defesa [Darpa] vá ao Congresso e defenda seu orçamento. Essa abertura ajuda a Casa dos Representantes e o Senado a ter uma visão mais realista das demandas dos órgãos federais”, explica ela. Esse modelo é diferente do adotado no Brasil, onde o orçamento é autorizativo, observa a pesquisadora. “O Congresso brasileiro autoriza o teto do que pode ser gasto pelo governo. Mas a definição referente a contingenciamentos, limites de pagamentos e divisão dos recursos fica restrita a uma discussão interna do poder Executivo.”

Aumento para poucos
Segundo Matthew Hourihan, apenas algumas grandes agências norte-americanas, como os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) e a espacial, a Nasa, deverão ter algum aumento de recursos neste ano fiscal. “Já o orçamento da maioria das outras agências e programas científicos será mantido ou declinará um pouco”, adverte. Ele observa que o reconhecimento da população e dos congressistas conquistado ao longo das décadas por instituições como os NIH e a Nasa tem sido determinante para impedir que sofram restrições orçamentárias. “A pesquisa em saúde sempre teve alcance social e a Nasa é uma agência que está no imaginário dos eleitores, servindo como fonte de prestígio nacional.” Os impasses costumam surgir, conta Hourihan, no momento de definir as verbas no âmbito das aplicações da ciência. Por exemplo, programas de pesquisa em tecnologias na área de energia algumas vezes são acusados pelos parlamentares de subaproveitar o investimento privado. Já programas de pesquisa em meio ambiente realizados pela Environmental Protection Agency (EPA) enfrentam resistências crescentes no governo Trump, que costuma minimizar o impacto das mudanças climáticas.

No caso dos NIH, um subcomitê do Senado já aprovou um aumento de US$ 2 bilhões, elevando o orçamento para US$ 36,1 bilhões no ano fiscal de 2018. Essa proposta representa um crescimento de 6% em relação ao ano anterior e contrasta com o corte de 22% que a administração Trump propusera para a agência. O projeto do Senado também bloqueou uma proposta para reduzir verbas dos NIH destinadas a cobrir custos de pesquisa nas universidades. “Nos Estados Unidos, o poder Legislativo é protagonista na definição orçamentária”, avalia Hourihan. “O país tem um sistema presidencial com divisão de poderes que confere ao Legislativo um poder substancial no processo orçamentário, em comparação com outros sistemas nos quais o Executivo tem mais controle.”

Bill Ingalls / NASA Robert Lightfoot, chefe interino da Nasa, discute o orçamento da agência em evento realizado em maioBill Ingalls / NASA

Nem sempre foi assim. Até 1974, o Congresso não tinha um processo formal para estabelecer o orçamento federal. No início de seu mandato, em 1969, o presidente Richard Nixon (1969-1974) recusou-se a gastar parte dos fundos atribuídos pelos congressistas. Diante do impasse, foi criado o Escritório de Orçamento do Congresso, como forma de aumentar o controle parlamentar sobre a execução dos recursos. Desde então, os gastos são definidos por categorias, tais como saúde, educação, energia e defesa. O processo segue um fluxo que se inicia em fevereiro. “Nesse mês, o presidente apresenta uma proposta ao Congresso para o próximo ano fiscal, que começa em outubro e vai até setembro do ano seguinte”, explica Geraldo Zahran, professor do Departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos. Em seguida, o Congresso inicia as discussões sobre o orçamento. “Entre março e abril, os debates chegam aos comitês setoriais tanto da Casa dos Representantes quanto do Senado. É nesse momento que o orçamento começa a ser debatido para cada área”, pontua Zahran.

Ao final desse processo, os comitês precisam aprovar as chamadas Leis de Apropriação, cada uma correspondendo a uma ou mais áreas. No total, devem ser aprovadas 12 leis: Agricultura, Desenvolvimento Rural e Administração de Alimentos e Medicamentos; Comércio, Justiça e Ciência; Defesa; Energia e Águas; Serviços Financeiros e Governo Geral; Segurança Interna; Meio Ambiente; Trabalho, Serviços Humanos e de Saúde e Educação; Poder Legislativo; Construção Militar e Assuntos dos Veteranos; Operações Estaduais e Estrangeiras; Transporte, Habitação e Desenvolvimento Urbano.

Prorrogações
“Em tese, cada comitê deve aprovar os projetos nas suas respectivas áreas, para que eles possam ser votados e, uma vez aprovados, sigam para sanção ou veto presidencial ainda no primeiro semestre. Mas, na prática, poucas dessas leis são votadas”, diz Zahran. Quando isso acontece, os congressistas têm duas opções. A primeira é aprovar um omnibus spending bill, um projeto que incorpora várias Leis de Apropriação de uma só vez, como forma de definir um pacote antes do início do ano fiscal em outubro.

A segunda opção é o que ocorreu este ano: diante da demora em aprovar uma proposta de orçamento, os congressistas votaram um acordo provisório que mantém temporariamente o orçamento nos níveis do ano anterior. “O acordo dura até dezembro e foi necessário para que o governo pudesse começar o ano fiscal sem o risco de um apagão orçamentário”, sublinha Hourihan.

Segundo o diretor da AAAS, a polarização política nos Estados Unidos, sustentada por um sistema baseado em dois partidos – o Democrata e o Republicano –, contribui para que o processo orçamentário se torne sinuoso. Em 2011, por exemplo, um corte que prometia ser dramático acabou reduzido depois de um acordo entre o governo e os parlamentares. Mas, para chegar a esse acerto, o Congresso aprovou uma lei conhecida como Budget Control Act. “Essa lei encerrou a crise orçamentária causada pela disputa entre democratas e republicanos sobre o nível aceitável de gasto público e instituiu novos mecanismos de controle dos gastos por parte do Congresso”, recorda Fernanda De Negri, do Ipea. Entre os mecanismos, foi estabelecido um teto para os gastos em cada área do orçamento.

O acordo poupou agências de fomento à pesquisa de grandes sacrifícios. Houve uma redução de US$ 38,5 bilhões do orçamento da União de 2011 em relação ao nível de 2010. Uma proposta aprovada pelos deputados em fevereiro de 2011, mas rejeitada pelo Senado, havia previsto um corte geral bem maior, de US$ 61 bilhões, que ameaçava causar grande prejuízo, principalmente à pesquisa básica.

Um dos dispositivos criados pelo Budget Control Act, chamado de budget sequestration, ou “sequestro”, passou a permitir o contingenciamento automático dos gastos públicos. Por meio dessa ferramenta, sempre que o Congresso aprovar um orçamento que exceda o nível máximo estabelecido em determinada área, todos os departamentos e programas dessa categoria sofrem um corte linear e automático dos recursos. “A queda nos gastos do governo e a criação do budget sequestration afetou os investimentos em pesquisa em 2011”, diz Fernanda. No final, a perda de recursos das agências científicas ficou em torno de 1% – de todo modo, o maior corte já registrado nas décadas anteriores (ver Pesquisa FAPESP nº 183).

Na avaliação de Geraldo Zahran, a possibilidade do sequestro hoje é remota. A Casa dos Representantes propôs um grande aumento, por exemplo, nos gastos de defesa, cerca de US$ 72 bilhões a mais do que o orçamento anterior. Hourihan adverte, no entanto, que o Congresso teria de votar uma lei que autorizasse o aumento dos limites dos gastos. Se isso não ocorrer e a proposta da Câmara se tornar lei, um “sequestro” seria desencadeado para as despesas de defesa a fim de atender a legislação de 2011. “Mas isso não afetaria programas de pesquisa em outras áreas”, observa Hourihan.

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