Podcast: Ewerton Moura da Silva
Era quase impossível andar pelas ruas do Rio de Janeiro no início da década de 1830 sem se deparar com alienados vagando por becos e vielas. Em geral, eram recolhidos às enfermarias da Santa Casa de Misericórdia ou à cadeia pública, de onde não saíam senão mortos. Encarcerados em cubículos fétidos e estreitos, muitos passavam os dias acorrentados. Já os submetidos à tutela de instituições religiosas, não raro, sofriam sanções físicas punitivas. O estado de abandono em que se encontravam os doentes mentais chamou a atenção de alguns membros da Academia Imperial de Medicina e da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que se engajaram em campanhas pela criação de um estabelecimento para o tratamento dos alienados. O argumento era de que a Santa Casa não estava organizada para promover a cura desses indivíduos. O apelo foi atendido pelo Império com a construção do Hospício de Alienados Pedro II, primeiro asilo brasileiro para essa categoria de doentes. O tratamento de pacientes com problemas mentais por médicos especializados, no entanto, só começaria nos primeiros anos do século XX.
O decreto autorizando a construção do hospício foi aprovado pelo imperador Pedro II (1825-1891) em julho de 1841, com base no projeto do político José Clemente Pereira (1787-1854), administrador da Santa Casa do Rio de Janeiro. O imperador contribuiu com boa parte da verba para a construção do edifício – o restante veio da Irmandade da Misericórdia e de abastadas famílias cariocas. O Hospício Pedro II, também chamado de “Palácio dos Loucos”, abriu suas portas em dezembro de 1852. Funcionava em um terreno próximo à baía de Botafogo, “em um bairro salubre, amplamente aberto para o mar e dominado por montanhas arborizadas, localizado em uma distância conveniente do rico subúrbio de Botafogo e do terminal das linhas de bondes que atendem essa área”, descreveu o médico Philippe-Marius Rey, do Asilo de Alienados de Saint-Anne, em Paris, França, em L’hospice Pedro II et les aliénés au Brésil.
O hospital funcionava com base nas ideias dos alienistas franceses Philippe Pinel (1745-1826) e Jean-Étienne Esquirol (1772-1840), que recomendavam o isolamento, o controle e a vigilância para afastar o indivíduo das causas de sua loucura. “A alienação era para os psiquiatras da época a manifestação das afeições morais, sendo as paixões da alma consideradas a causa da loucura. Desse modo, os excessos relativos ao amor e à ordem social deveriam ser regulados pela razão”, explica o historiador Ewerton Moura da Silva, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). “Diante desses excessos, buscava-se restaurar o domínio racional dos indivíduos por meios morais e físicos, que variavam desde métodos persuasivos às tradicionais camisas de força e duchas de água fria.”O Pedro II foi projetado para comportar até 140 pacientes, segundo levantamento feito no Arquivo Nacional pelos historiadores Monique de Siqueira Gonçalves, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Flávio Coelho Edler, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Ao analisar relatórios produzidos pela Santa Casa do Rio, constataram que a fama do hospital se espalhou rapidamente pelo país. Era frequente o envio de alienados em paquetes rumo ao Rio. “Chegando à Corte, eram deixados perambulando pela cidade na esperança de que fossem recolhidos pela polícia e levados ao hospício, onde eram recebidos como indigentes”, escreveram Monique e Edler em artigo publicado na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. Outro problema é que no início os policiais desconheciam o papel que o hospício cumpria e o tipo de população que deveria ser enviado para lá. Assim, eram recolhidos todos aqueles que, na visão das autoridades da época, perturbassem a ordem da cidade, o que incluía epiléticos e bêbados.
Com a conclusão das obras, em 1854, a capacidade do hospício subiu para 300. A crescente demanda por vagas foi um problema para a administração do hospital durante os seus anos de existência. A situação alcançou o ápice em 1862. Em carta enviada ao provedor do hospício, o médico Manoel José Barbosa se queixava que o estabelecimento já abrigava 400 pacientes e as remessas de alienados eram abusivas. Diante disso, pedia que a administração fechasse o hospício para novos pacientes, reiterando a necessidade de se criar um asilo exclusivo para inválidos, que ocupavam boa parte das instalações.
O Pedro II manteve-se vinculado à Santa Casa até 1890, quando passou à administração federal, sob a jurisdição do Ministério da Justiça e Negócios Interiores. A partir de então, teve o nome mudado para Hospital Nacional dos Alienados e o trabalho das irmãs de caridade nas enfermarias foi suspenso. Em 1903, a instituição começou a ser dirigida pelo médico baiano Juliano Moreira (1873-1933), um dos primeiros a divulgar, no Brasil, as ideias de Sigmund Freud (1856-1939), médico austríaco criador da psicanálise. Durante os 27 anos em que esteve à frente da instituição, Moreira construiu a psiquiatria como especialidade médica no país, com ideias e práticas novas. Inspirado na Clínica de Munique, Alemanha, dirigida por Emil Kraepelin (1856-1926), aboliu as camisas de força e retirou as grades de ferro das janelas (ver Pesquisa FAPESP nº 124).
O antigo Pedro II encontrava-se em ruínas em 1944, sem condições de oferecer tratamento adequado aos alienados, que foram transferidos, entre março e setembro daquele ano, para a colônia de Jacarepaguá. As instalações do antigo hospício foram doadas à Universidade do Brasil (atual UFRJ), que restaurou o conjunto arquitetônico. Suas instalações atualmente abrigam o Instituto de Psiquiatria da universidade.
O Hospício Pedro II abriu caminho para a criação de espaços semelhantes para o tratamento de doentes mentais pelas províncias do país, segundo a psiquiatra e historiadora da medicina Ana Maria Galdini Raimundo Oda, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp). Ao lado do psiquiatra Paulo Dalgalarrondo, também da FCM-Unicamp, ela estudou a história dos primeiros hospícios do Brasil. Verificaram que a institucionalização dos alienados durante o Segundo Reinado, entre 1840 e 1889, foi marcada pela atuação de políticos, intelectuais e filantropos, além da consolidação de uma opinião pública consensual quanto à necessidade da reclusão, mesmo que compulsória, dos doentes mentais.
É o caso do Hospício de Alienados de Olinda, em Pernambuco, em 1864, o Hospício Provisório de Alienados de Belém, no Pará, em 1873, o Asilo de Alienados São João de Deus, em Salvador, na Bahia, em 1874, e o Hospício de Alienados São Pedro, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Em São Paulo, o Hospício Provisório de Alienados foi fundado em 1852, no mesmo ano de inauguração do Pedro II. “Diferentemente dos outros hospícios do país, o de São Paulo não era administrado pela Santa Casa, que se recusava a receber os loucos”, explica Ana Oda. Segundo ela, coube ao presidente da província José Tomás Nabuco de Araújo (1813-1878) arcar com os custos da assistência aos alienados e nomear uma administração a cargo do alferes Tomé de Alvarenga.
O asilo funcionava em um prédio alugado na rua São João, na região central da cidade. Como na maioria dos hospícios, contava com um ou dois médicos. “A psiquiatria ainda estava se consolidando como especialidade médica àquela época no Brasil, e a formação de especialistas só se tornou mais frequente na virada do século XX”, esclarece a psiquiatra. No início, o hospício paulista tinha nove internos. Depois de alguns anos, diante das críticas em relação às condições precárias do prédio, determinou-se a compra de uma nova edificação em uma chácara na ladeira da Tabatinguera, na Várzea do Carmo, e a transferência dos alienados para o novo local. A administração do hospício continuou a cargo de Tomé de Alvarenga, substituído somente após sua morte, em 1868, por seu filho Frederico Antônio de Alvarenga. Com a morte deste, em 1896, a direção do asilo passou para as mãos de Francisco Franco da Rocha.
Formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Franco da Rocha (1864-1933) foi um dos primeiros a se especializar em psiquiatria no Brasil, ao lado de Juliano Moreira. Foi nomeado para o hospício paulista em 1891 e protagonizou uma campanha para a construção de um moderno asilo de alienados na cidade. A empreitada vinha na esteira de recomendações apresentadas e discutidas durante o Congresso Internacional de Alienistas de 1889 em Paris, França, acerca da criação de colônias agrícolas anexas aos manicômios. A ideia, segundo o historiador Ewerton Moura da Silva, era que o trabalho agrícola fosse aplicado como ação terapêutica, distraindo os pacientes e melhorando seu comportamento.
A Colônia Agrícola de Alienados do Juquery foi inaugurada em maio de 1898. Foi erguida em um terreno de 170 hectares localizado a menos de 50 quilômetros da cidade, com edificações projetadas pelo arquiteto Francisco Ramos de Azevedo (1851-1928). O asilo cresceu em ritmo acelerado. Construído para abrigar 300 pacientes, passou por sucessivas ampliações para atender à demanda. Em 1901, o Juquery abrigava 590 pacientes. Em 1912, eram 1.250 internados. Em 1928, eram pouco mais de 2 mil distribuídos em cinco pavilhões femininos, quatro masculinos e um para crianças. Havia ainda uma lista de espera de milhares de pessoas do estado aguardando uma vaga.
Muitos internos eram imigrantes portugueses, segundo Silva. Autor do livro Do sonho à loucura: Hospitais psiquiátricos e imigração portuguesa em São Paulo (1929-1939), ele encontrou 483 registros de portugueses internados no Juquery. O diagnóstico mais comum era esquizofrenia. Havia também indivíduos internados por melancolia, provavelmente associada à saudade do país de origem, segundo ele. “Era comum os imigrantes serem internados por querer voltar para Portugal”, conta.
A situação começou a mudar nos anos 1980, com a redefinição das normas de tratamento psiquiátrico. Hoje, parte do terreno do hospital colônia é ocupada pelo Parque Estadual do Juquery, na cidade que ganhou o nome de Franco da Rocha. Em seis pavilhões moram 123 pacientes. A maioria dos 60 prédios está fechada e desocupada, com destino ainda incerto.
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