Entre os principais avanços promovidos pela Constituição, o artigo 196 é um dos mais celebrados: “A saúde é direito de todos e dever do Estado”. Antes da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), apenas os trabalhadores com carteira assinada e sem dívidas com a Previdência Social tinham direito à assistência médica pública. Com a entrada em vigor do novo texto constitucional, a saúde passou a ser um direito garantido pelo Estado a todos os cidadãos – hoje mais de 160 milhões de brasileiros dependem unicamente do sistema.
Olhando em retrospecto, na análise do funcionamento do SUS, algumas particularidades se sobressaem, destaca a cientista política Marta Arretche, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Uma delas está na associação entre o setor público e o privado. Durante a Assembleia Nacional Constituinte, as resistências à implementação do SUS foram superadas a partir de uma aliança entre o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB), que liderou a campanha pelo acesso universal à saúde, e com o setor privado. “Ao contrário do que ocorreu na maioria dos países que criaram um sistema público de saúde, no Brasil o SUS não compete com o setor privado: o sistema público tornou-se comprador dos serviços particulares, e os médicos podem ser contratados tanto pelo SUS quanto pelas seguradoras privadas”, explica Arretche.
Outra singularidade trazida pela Constituição foi a descentralização da gestão das ações e serviços de saúde. Ao Ministério da Saúde, gestor nacional do sistema, cabe atuar como indutor de políticas públicas e transferir recursos para que estados e municípios executem as diretrizes pactuadas. Cercada de incertezas à época de sua instalação, a arquitetura desse arranjo inovador consolidou-se lentamente. “O sistema de saúde tornou-se mesmo universal somente no final dos anos 1990, a partir da Norma Operacional Básica 98, que define melhor a responsabilidade dos municípios, o que permitiu a adesão daqueles que ainda não haviam ingressado no sistema”, diz a pesquisadora.
O financiamento, por sua vez, segue sendo uma das principais preocupações para a sustentabilidade do sistema. As regras constitucionais para transferência de recursos à saúde sofreram modificações nos anos 1990 até a introdução da Emenda Constitucional nº 29, em 2000, que regulamentou as obrigações financeiras da União, estados e municípios para o setor. Em 2018, com um orçamento de aproximadamente R$ 131 bilhões, o Ministério da Saúde continua enfrentando dificuldades para gerir aquele que, na avaliação da Organização Mundial da Saúde (OMS), constitui o maior sistema de saúde universal e gratuito do mundo. “Uma coisa é você criar um texto constitucional dizendo que o cidadão tem direito à saúde”, observa Arretche. “Outra, muito diferente, é o Estado produzir políticas públicas para garantir esses direitos. Por isso, ainda tem sido um enorme desafio viabilizar a promessa de que os brasileiros possam ter acesso a um pacote básico de saúde.”
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