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Pesquisa na quarentena

“Escolhi ‘resiliência’ como a palavra de 2020: foi o ano da resistência pessoal e psicológica, em todos os sentidos”

No Instituto Tecnológico Vale o geólogo Roberto Dall’Agnol vive restrições ao trabalho de campo para pesquisa voltada para o desenvolvimento territorial sustentável

Em sala de reunião do Instituto Tecnológico Vale, em 2013: atividades presenciais foram interrompidas com a pandemia

ITV

Com a pandemia, a Vale determinou home office para todos os que não eram da área de operação da mineradora. Em termos de pesquisa, a principal dificuldade foi a restrição a viagens de campo. A amostragem geoquímica para monitoramento ambiental é feita por empresas contratadas, mas precisamos acompanhar – isso é muito importante para o sucesso do projeto. No primeiro semestre do ano passado, ninguém viajou. No segundo conseguimos algumas vezes, o que garantiu a manutenção das atividades. Mas nossas metas para 2020 foram afetadas, o que é complicado em uma empresa. A ameaça permanece em 2021 devido ao recrudescimento da pandemia.

No ITV [Instituto Tecnológico Vale] Desenvolvimento Sustentável, temos uma rede com oito estações instaladas para monitoramento relacionado a clima e recursos hídricos em toda a bacia do rio Itacaiúnas, que tem cerca de 40 mil quilômetros quadrados, aproximadamente um quinto da área de São Paulo. Abrange grande parte da Província Mineral de Carajás, onde estão os principais projetos de extração da Vale: minas ativas de cobre, ferro, níquel, manganês. É uma área muito relevante, com algumas cidades expressivas da região, como Marabá e Parauapebas.

Os dados são transmitidos por satélite de hora em hora, mas é preciso periodicamente conferir se está tudo funcionando. Temos que coletar águas superficiais duas vezes por ano, solo e sedimento uma vez por ano, para avaliar a segurança química em solos, sedimentos e águas correntes. Também monitoramos as vazões dos rios, fazendo quatro medições por ano para entender como se dá a dinâmica.

Sempre fiz questão de ir a campo com meus alunos. No início da carreira na Universidade Federal do Pará [UFPA], cheguei a me hospedar naqueles hotéis ao lado de postos de gasolina na beira da estrada, em cubículos tenebrosos nos quais eu tinha de dar um jeito para tomar banho. Sou cadeirante, então nem sempre é simples. É possível quando se tem muita força mental e física, mas, aos 71 anos, fico mais sujeito a uma queda. Ao longo dos anos as condições de hospedagem foram melhorando, mas hoje preciso de quarto adaptado.

Na universidade eu tinha por princípio que nenhum aluno meu faria mestrado ou doutorado sem que eu o acompanhasse a campo por pelo menos uma semana. Eu fazia isso regularmente, conheço bem a região. Quando entrei no ITV em 2011, um ano depois da criação do instituto, viajei bastante para Carajás, ao Rio de Janeiro, para reuniões com a diretoria da Vale, e a Minas Gerais. Como tive minha mobilidade reduzida com a idade, defensivamente passei a diminuir as viagens. Tenho participado menos de eventos, por exemplo.

Com o trabalho remoto surgiram novas maneiras de fazer reuniões e seminários. Até com certo exagero, por necessidade de ver pessoas, mas ficou claro que havia um potencial subutilizado e houve avanços nítidos nas trocas entre diferentes grupos. Não é fácil para a minha geração assimilar todas as novidades, comecei a trabalhar com computador muito tarde e até hoje isso me exige bastante.

No último ano saí de casa meia dúzia de vezes, para ver meu filho e por questões médicas. Ficar em casa o tempo todo é um pouco pesado, mas por outro lado me aliviou do deslocamento diário. Eu dirijo, mas preciso de ajuda para guardar a cadeira e tirá-la do carro. Desde os 21 anos uso cadeira de rodas, estou acostumado, mas antigamente eu subia e descia do carro com uma facilidade enorme e hoje preciso tomar cuidado para não me machucar.

Nos últimos 10 anos, desde que estou no ITV, fiz uma mudança radical na minha área de pesquisa: na universidade eu trabalhava com evolução crustal do cráton amazônico, estudando petrologia ígnea de rochas pré-cambrianas, de idade arqueana ou paleoproterozoica, que são períodos muito antigos de formação da Terra. No ITV, passei a liderar o grupo de geologia ambiental e recursos hídricos, algo bem diferente. Os estudos são focados em um ambiente muito mais recente, do Cenozoico. Passei do ambiente profundo da Terra ao ambiente superficial. Foi um grande esforço e continuo aprendendo muito, adquirindo uma visão mais ampla.

Montamos inicialmente dois grandes projetos: o de monitoramento dos recursos hídricos da bacia do rio Itacaiúnas, que não abrange apenas a área de interesse da Vale, e outro de paleoclima em lagoas de Carajás. Elas são testemunhos da evolução do clima na região. O coordenador do projeto, um colega especialista em pólens, associou isso à vegetação: como ela e o clima evoluíram, como se deu a sedimentação dessas lagoas. É uma conjunção muito interessante de informações. Foi o projeto que gerou mais produção científica em nosso grupo – terminou em 2019, mas ainda estão saindo publicações interessantes.

O projeto de recursos hídricos conduziu a trabalhos de modelamento: o que acontece se a vegetação remanescente for retirada? Como afetaria a vazão dos rios, o clima? Com sensoriamento remoto, fizemos uma análise de uso e ocupação do solo, mostrando como isso evoluiu desde 1973, a cada 10 anos. Foi um projeto muito rico que deu uma base segura e importante para todos os grupos do ITV.

Em uma segunda fase, iniciamos um estudo sistemático sobre a composição química de águas e sedimentos de rios e solos da bacia do Itacaiúnas. Coletamos e analisamos em torno de 5 mil amostras e verificamos que concentrações anômalas de elementos são, em geral, ligadas à geologia local e que a bacia não se mostra contaminada de modo expressivo pela ação humana.

Nosso propósito é criar informação científica sobre desenvolvimento territorial sustentável que seja de utilidade para a empresa que nos mantém e para a sociedade. Com o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] e o ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade], a Vale criou zonas protegidas, que se somaram às reservas indígenas. Consequentemente, a área de mineração hoje tem floresta, e a que não tem mineração foi desmatada, essencialmente para pastagens e alguma atividade agrícola.

Continuei atuando na pós-graduação da UFPA, embora tenha me aposentado em 2014, orientando sempre dois ou três alunos. É um curso consolidado com qualidade reconhecida, classificado pela Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] como nível 6, mas a universidade está afetada pela crise no sistema de ciência e tecnologia no país. Há limitações de recursos, de oportunidades. Tenho doutores formados que não encontram colocação no mercado de trabalho, isso nunca tinha acontecido na minha vida profissional. Vejo pesquisas não concluídas porque os laboratórios foram fechados por causa da pandemia ou ficaram sem recursos financeiros. O resultado é uma frustração geral, uma desmotivação extremamente ruim para a pesquisa. Se há algo que precisamos reverter, é esse quadro de falta de financiamento na pesquisa e educação, que leva o país a um futuro com limitações muito sérias. Instituições privadas que financiam pesquisa são ainda raras no Brasil.

Do ponto de vista pessoal, tive um 2020 particularmente atípico. Fui hospitalizado no início de fevereiro e precisei fazer algumas cirurgias por causa de uma escara, consequência de ferimentos que podem acontecer quando me desloco. Em um mês eu estava recuperado, mas regras da empresa exigiram que pedisse uma licença médica. Fiquei oficialmente quatro meses afastado, fora da atividade administrativa que caracteriza minha função como líder de grupo de pesquisa. Nesse período aproveitei para atualizar minhas pesquisas, afinal não estava completamente incapacitado.

Em outubro, minha esposa faleceu. Ela estava doente desde 2016, com um câncer que se agravou no ano passado. Passava a maior parte do tempo em São Paulo, onde fazia o tratamento e vivia com nossa filha caçula, que é médica, e nosso genro. Ainda tinha o cachorrinho da família, que ela adorava. Até chegar a Covid-19, alternava períodos entre São Paulo e Belém. Com a pandemia se tornou muito arriscado viajarmos, então ficamos cada um em uma cidade. Não pudemos mais nos encontrar.

Tive de dar licença por três meses à pessoa que faz os serviços domésticos aqui em casa, porque ela teve sintomas de Covid, e contratar outra pessoa. Fiquei administrando a casa praticamente sozinho, mas tenho muito apoio dos filhos. O mais velho mora em Belém, com minha nora e meu neto, e me ajuda com compras e outros apoios. Tenho também um filho, uma nora e uma netinha em São Luís, eles são professores na Universidade Federal do Maranhão. Estamos sempre em contato.

Moro em um conjunto de casas, então os vizinhos dão apoio. Posso sair, ir à praça, tomar ar sem correr riscos. Faço uma pequena transgressão com dois amigos: de vez em quando nos reunimos na sexta-feira para tomar um vinho e conversar.

Escolhi “resiliência” como a palavra de 2020. Foi o ano da resistência pessoal e psicológica, em todos os sentidos. É a palavra que precisamos guardar para não desistir, não nos entregar e percebermos que é preciso continuar brigando por nossos objetivos e propósitos. Este ano começou na mesma direção, as perspectivas não são muito diferentes. A palavra continua forte, na moda: não vamos nos entregar e buscaremos saída para essas coisas negativas – seja a pandemia, sejam os problemas até mais duradouros como os que afetam o financiamento à ciência.

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