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Resenha

Escritos do filósofo da arte

Liev S. Vigotski: Escritos sobre arte | Priscila Marques (organização, tradução e notas) | Mireveja | 320 páginas | R$ 72,00

Raras vezes uma obra da área das ciências humanas favorece experiência de leitura tão múltipla e densa como a pesquisa de Priscila Marques sobre escritos de arte de Liev S. Vigotski (1896-1934). Fruto de mais de 10 anos de trabalho na coleta, tradução e análise de textos que até 2015 permaneceram inéditos, mesmo na Rússia, o livro oferece material de imenso vigor na esfera da arte e da ciência.

Reunidas em quatro partes – letras, palcos, artes plásticas, psicologia da arte –, as resenhas revelam um Vigotski incógnito, como diz Marques. Publicadas em jornais e revistas de Gomel, entre 1912 e 1928, antes e depois da revolução de 1917, pois elas mostram, na efervescência cultural do contexto, a formação e a atuação de Vigotski, observador atento da vida cultural, intelectual inquieto, crítico de arte que se tornava cientista.

No texto de abertura, sobre o antissemitismo na obra de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), Vigotski traz a injúria, a ofensa e o escárnio ao judeu, presentes nos personagens, e indaga se essa é ou não uma caricatura. A arte e a complexidade das relações entre judeus e russos estão no centro da cena, em Gomel, cidade com mais de 100 mil habitantes, a metade de origem judaica.

Em “Vigotski e os palcos”, vê-se o jovem crítico, espectador da vida no teatro, a escrever resenhas que falam de peças, atores, turnês, temporadas, cenários, direção, interpretação, criação. E pode-se ler, nos elogios e críticas, a prospecção e o incentivo a atores, companhias, bailarinos. As resenhas sobre teatro ídiche, encenadas num momento em que se produziam peças sucessivas para um público amante do teatro, revelam que Vigotski conhecia bem o ídiche, língua formada pela fusão do alemão, hebraico e línguas eslavas.

O texto e as imagens de “Vigotski e as artes plásticas” dão o gosto poético da “língua das linhas”, como escreve o autor, seu material, pintura, estilo, musicalidade. Uma lindeza.

Na parte que fecha o livro, dedicada à psicologia da arte, a pergunta central: o que configura a verdadeira natureza da arte? Vigotski refuta a visão de Liev Tolstói (1828-1910), de que a arte estaria na capacidade de contagiar os sentimentos de outra pessoa, e nos convoca a compreender que, ao contrário, a verdadeira natureza da arte carrega algo que supera o sentimento comum, e dessa forma realiza o seu mais importante objetivo.

Corpo e mente, conhecimentos espontâneos e científicos, desenvolvimento e aprendizado, fantasia e realidade, afeto e cognição, arte e ciência, o papel do outro. Na construção de uma psicologia histórico-cultural já se conhecia a contribuição de Vigotski para compreender o ser humano na sua inteireza, sem binarismos ou dicotomias. Mas o livro e a pesquisa que chegam agora às mãos de leitoras e leitores trazem um Vigotski que comenta a produção artística e se pergunta sobre a natureza da arte.

Assim, o Vigotski que escreveu o tratado de defectologia arguiu a teoria de Jean Piaget (1896–1980), questionou a noção de estágios, favoreceu entender as marcas culturais do humano, analisou o papel das interações sociais e da mediação, afirmou a relevância da experiência de cultura, do brinquedo e da linguagem, possibilitando, com a psicologia histórico-cultural, uma concepção outra de infância, emerge como filósofo da arte. Qual a natureza constitutiva da arte? Como se dá o processo de criação? Como o ser humano cria? Essas são, entre outras, perguntas que os escritos de Vigotski nos convidam a fazer.

Enfim, um parágrafo de agradecimento a Priscila Marques pela grandeza da pesquisa, que pega os tesouros do campo empírico nas mãos, os traduz e entrega generosamente a pesquisadores, estudantes, leitores dos mais variados campos das ciências humanas e sociais. É exemplar o cuidado com informações sobre a transliteração do russo (trabalho que sabemos árduo quando se trata de línguas com alfabetos diferentes), sobre a origem dos textos onde foram encontrados, com quem dialogava Vigotski e sobre as lacunas das palavras não compreensíveis no original.

O livro abre trilhas de temas que leitores de Vigotski podiam apenas intuir no estudo de seus livros e textos, em especial sobre arte e imaginação na infância e psicologia da arte. E provoca muitas perguntas, essa que é a ação fundamental do fazer investigativo e artístico.

Sonia Kramer é professora da Pontifícia Universidade Católica doRio de Janeiro, onde coordena o Núcleo Viver com Yiddish, do Instituto de Altos Estudos em Humanidades.

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