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Engenharia Aeroespacial

Espaço para conquistas

Brasil já possui propulsores e catalisadores, dois componentes essenciais para satellites

Sem fazer alarde, o Brasil está prestes a dar um grande passo para dominar de vez a tecnologia de fabricação de satélites artificiais. Pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, e da empresa Fibraforte Engenharia, de São José dos Campos, concluíram com sucesso uma seqüência de testes para validação de um propulsor para satélites e de um catalisador, uma substância química que participa da queima do combustível. O fato é importante porque poucos países dominam a tecnologia de fabricação desses componentes. Os propulsores, também chamados de motores, são responsáveis por fazer o posicionamento e as correções de órbita durante a vida útil dos satélites, estimada em quatro anos. O equipamento projetado e construído pela Fibraforte é do tipo monopropelente, ou seja, funciona apenas com um combustível líquido, no caso a hidrazina anidra, e não precisa de um elemento oxidante para fazer a combustão. O catalisador nacional, essencial em satélites monopropelentes, foi desenvolvido pelos pesquisadores do Laboratório Associado de Combustão e Propulsão (LCP) do Inpe.

“O Programa Espacial Brasileiro é o grande beneficiado com o desenvolvimento desses componentes. A partir de agora, somos um dos poucos países do mundo com capacidade para produzir propulsores completos com catalisador”, afirma o engenheiro mecânico Humberto Pontes Cardoso, coordenador da equipe da Fibraforte responsável pelo projeto do propulsor. O equipamento fará parte do subsistema de propulsão da Plataforma Multimissão (PMM), um moderno conceito de arquitetura de satélites que reúne em uma única estrutura todos os equipamentos necessários à sobrevivência e à operação desses artefatos no espaço. Com previsão para ficar pronta no final de 2007, a PMM encontra-se atualmente em processo de qualificação de seus equipamentos e subsistemas.

Financiados pelo Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) da FAPESP, os propulsores desenvolvidos pela Fibraforte terão a função de dar o impulso necessário para a realização de manobras orbitais da Plataforma Multimissão, após sua separação do veículo lançador. Essas manobras são necessárias porque os satélites de observação da Terra, posicionados entre 600 e 1.200 quilômetros de altitude, sofrem perturbações em sua órbita em razão de anomalias magnéticas e do campo gravitacional do nosso planeta. Os propulsores corrigem o posicionamento do satélite e a precisão de suas manobras depende em grande parte do casamento entre o propulsor e o catalisador. Isso porque o impulso para movimentação do satélite é resultado da expulsão em alta velocidade de gases derivados da decomposição da hidrazina pelo catalisador, segundo Cardoso. “Ao entrar em contato com o catalisador na câmara catalítica, a hidrazina é decomposta gerando hidrogênio, nitrogênio e amônia. Ao passar pela tubeira do sistema propulsor, os gases são acelerados gerando o empuxo necessário para as manobras do satélite.”

União perfeita
O módulo de propulsão da PMM pesará 10 quilos e será composto por seis motores, cada um com 5 Newtons (N) de empuxo. Essa força corresponde ao esforço necessário para equilibrar 500 gramas num prato de uma balança. O equipamento terá ainda um tanque de combustível esférico com 50 centímetros de diâmetro e capacidade para 45 litros de hidrazina líquida (N2H4), duas válvulas de enchimento e dreno do tanque, uma tubulação que liga os propulsores ao reservatório de combustível, também fabricados pela Fibraforte, além de um sensor de pressão e um conjunto de válvulas para isolar o tanque dos motores durante o lançamento.

“O grande segredo de um propulsor monopropelente é a perfeita união entre o catalisador utilizado e o sistema de injeção do combustível na câmera catalítica”, afirma Cardoso. O ideal, diz o pesquisador, um ex-engenheiro do Inpe, é que o injetor vaporize a hidrazina antes de ela entrar em contato com o catalisador. “Isso elimina dois problemas sérios. O primeiro é o impacto mecânico do fluido com o catalisador, que vai reduzir sua vida útil. E o segundo é evitar que ele fique encharcado, pois o acúmulo de combustível em estado líquido na câmera catalítica pode fazer com que as partículas cheguem a explodir”, explica Cardoso.

A Fibraforte adquiriu nos últimos anos larga experiência no desenvolvimento de tecnologia para fabricação de motores para satélite. No final dos anos 1990, a empresa foi co-responsável pelo desenvolvimento de propulsores monopropelentes de 2N de empuxo e de um tanque cilíndrico de combustível para uma plataforma suborbital do Inpe. “Esse foi o primeiro sistema de propulsão projetado pela empresa. Foi um bom aprendizado, mas era um projeto bem mais simples, porque os requisitos não eram tão rigorosos”, afirma o engenheiro aeronáutico Jadir Nogueira Gonçalves, sócio-diretor da Fibraforte. Em seguida, a empresa trabalhou no projeto de um propulsor bipropelente de 200N, que não voou. “Fizemos três protótipos para o Inpe, que eram modelos de engenharia para teste”, conta Gonçalves.

Assim como os propulsores da Fibraforte, o catalisador desenvolvido pelo Inpe também representa uma conquista importante para a independência tecnológica do Brasil na área espacial. “É muito difícil importar esse material. As duas últimas vezes que tentamos adquiri-lo de uma empresa norte-americana nem sequer tivemos resposta. Até onde temos conhecimento, apenas os Estados Unidos e a França, e, provavelmente, a Rússia e a China, dominam a tecnologia de fabricação desse tipo de catalisador”, diz o pesquisador Demétrio Bastos Netto, chefe do LCP do Inpe.

Entre os catalisadores mais utilizados em satélites monopropelentes está o Shell-405 – uma referência à companhia petrolífera anglo-holandesa Shell que integrou um consórcio, juntamente com a Reynolds Metal Company, encarregado de desenvolvê-lo para a agência espacial norte-americana, a Nasa, nos anos 1950. Desde 2003, o S-405 passou a ser comercializado pela empresa norte-americana Aerojet General Corporation, que só pode vendê-lo com a aprovação do governo dos Estados Unidos. A última vez que o Inpe conseguiu comprar o produto foi em 1984. Naquele ano, meio quilo do material custou o equivalente a US$ 7 mil e serviu apenas para testes em solo. Até agora os satélites que o Brasil desenvolveu, como os Satélites de Coleta de Dados (SCD1 e SCD2) e o Satélite de Aplicações Científicas (Saci), não possuem propulsores. A correção de posição no espaço é feita por meio de um sistema que usa o campo magnético da Terra. Nos dois Satélites Sino-Brasileiros de Recursos Terrestres (Cbers), maiores em tamanho e peso, foram usados propulsores e catalisadores chineses. “A produção de um catalisador nacional abre a perspectiva de o Brasil competir nesse restrito mercado com a Aerojet e outros produtores, fornecendo o material para outros países, como Argentina, Chile e Peru”, afirma Bastos Netto.

Com a aparência de grãos esferóides, de cor preta, o catalisador é formado por uma substância que funciona como suporte, no caso uma alumina especial altamente porosa (Al2O3), e um metal, o irídio (Ir), que é o elemento ativo na reação de decomposição da hidrazina, combustível obtido a partir da desidratação do hidrato de hidrazina, uma substância líquida incolor e altamente tóxica que é produzida em laboratório. “A alumina é extremamente difícil de ser obtida com as propriedades adequadas para dar suporte ao catalisador e ao irídio porque elas podem otimizar ou mesmo impedir o processo de catálise da hidrazina”, afirma o engenheiro químico José Augusto Jorge Rodrigues, pesquisador do Inpe. Uma propriedade importante da alumina é sua elevada resistência térmica e mecânica e a alta cristalinidade que garantem a macroporosidade do material. A resistência ao calor é imprescindível porque a temperatura da câmara catalítica, durante a decomposição da hidrazina, é muito alta, em torno de 900°C, e a resistência mecânica se faz necessária porque o catalisador trabalha sob alta pressão, de até 22 atmosferas, equivalente à pressão do fundo do mar em uma profundidade de 220 metros.

A escolha do irídio como metal ativo se dá porque ele é o único elemento químico capaz de decompor espontaneamente a hidrazina em baixa temperatura – condição encontrada no espaço. “O irídio é um metal caro, subproduto da extração do ouro. Um grama custa em torno de US$ 200”, diz o químico David dos Santos Cunha, pesquisador do Inpe. O teor de irídio no catalisador é de 30% a 36%, bem acima da maior parte dos catalisadores industriais, cujo teor metálico não ultrapassa 5%. “A dificuldade maior é fazer a correta impregnação do irídio na alumina, melhorando sua distribuição de forma a obter partículas de irídio de 2 nanômetros”, afirma Cunha. Os pesquisadores do Inpe também tiveram no projeto contribuições do Instituto Militar de Engenharia, Centro de Pesquisas da Petrobras e Universidade Pierre e Marie Curie, de Paris, na França. Além do catalisador para uso espacial, o LCP também pesquisa catalisadores para emprego na indústria química e de refino de petróleo.

O catalisador espacial do Inpe já foi qualificado e está pronto para ser embarcado na PMM ou em outros satélites. Durante o processo de qualificação, o material foi submetido a uma campanha de 39 seqüências de acionamentos, acumulando um total de 11 mil segundos ou cerca de três horas, o dobro do tempo que funcionará no espaço ao longo dos quatro anos de vida do satélite. A qualificação do conjunto propulsor-catalisador foi feita no Banco de Testes com Simulação de Altitude (BTSA) do Inpe, na cidade de Cachoeira Paulista (SP). “O primeiro passo da campanha foi usar o catalisador comercial S-405 para qualificar o propulsor da Fibraforte e escolher o melhor injetor, peça responsável pela injeção da hidrazina na câmara catalítica. Definido o injetor, passamos a testar o nosso catalisador. Fizemos uma comparação do desempenho dos dois sistemas, em condições idênticas de operação, e concluímos que o catalisador cumpre os requisitos exigidos pela Plataforma Multimissão”, afirma o físico Carlos Eduardo Rolfsen Salles, pesquisador do LCP e responsável pelo Banco de Testes, único desse porte na América Latina. “Uma campanha de testes como esta custa em torno de US$ 80 mil no Brasil. Sem o nosso Banco de Testes, qualquer projeto de desenvolvimento ficaria inviável porque teria que ser realizado no exterior a um preço maior”, diz Salles.

Até o momento já foram construídos quatro protótipos dos propulsores e outros seis estão sendo fabricados pela Fibraforte. Eles passarão por novas baterias de testes até que, em junho do próximo ano, deverá ficar pronto o modelo de qualificação do módulo de propulsão da PMM. “O módulo final, também chamado de modelo de vôo, será uma cópia fiel ao modelo de qualificação, etapa em que todos os equipamentos estarão integrados”, diz Humberto Cardoso. Segundo o pesquisador, para que os propulsores e o catalisador ganhem credibilidade internacional, ele terá que ter um histórico de vôo bem-sucedido. “Isso significa voar, com sucesso, pelo menos duas vezes. A primeira deve ocorrer em 2007 e a segunda está prevista para antes de 2012, sempre com a PMM”, diz o pesquisador. A partir daí, o Brasil estará credenciado para fornecer essa sofisticada tecnologia para clientes em outros países.

Uma plataforma versatil

Considerado um dos principais projetos desenvolvidos atualmente pelo Inpe, a Plataforma Multimissão (PMM) está prevista para ficar pronta em dezembro de 2007. O Satélite de Sensoriamento Remoto 1 (SSR-1) deverá ser o primeiro a ser montado nessa estrutura. Segundo o engenheiro aeronáutico Mário Marcos Quintino, gerente responsável pelo desenvolvimento da PMM, nesse tipo de arquitetura existe uma separação física entre os vários módulos da plataforma como suprimento de energia, propulsão, comunicações, supervisão de bordo, controle térmico e de atitude, e a carga útil (radar imageador, por exemplo), que podem ser desenvolvidos, construídos e testados separadamente, antes da integração dos módulos e dos testes finais. Além disso, existe também a vantagem de reutilização do projeto, com a conseqüente redução dos custos dos novos satélites, já que a PMM poderá levar ao espaço vários tipos de missão.

“O primeiro modelo da PMM terá um custo da ordem de US$ 25 milhões, mas esse valor pode cair para algo em torno de US$ 10 milhões a US$ 15 milhões, dependendo da configuração, nos modelos seguintes”, afirma Quintino. Idealizada totalmente no Inpe, a PMM tem um índice de nacionalização de cerca de 80%. Quase todos os seus subsistemas são projetados e desenvolvidos por empresas brasileiras.
“Acreditamos que a plataforma é um produto interessante a ser oferecido no mercado espacial, graças a seu alto potencial comercial. Na PMM cabem vários tipos de cargas úteis, principalmente satélites de porte médio, de até 600 quilos, usados para observação da Terra.” A adoção de plataformas multimissão é uma tendência mundial porque alia vantagens técnicas e comerciais.

O Projeto
Desenvolvimento e qualificação de propulsor monopropelente de 5N para satélite (nº 03/07755-5); Modalidade Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE); Coordenador Humberto Pontes Cardoso – Fibraforte; Investimento R$ 400.000,00 (FAPESP)

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