Se tudo correr como os pesquisadores da empresa paulista Nanocore Biotecnologia esperam, a companhia deverá colocar no mercado, no prazo de três anos, o primeiro medicamento imunoterápico feito de DNA recombinante inteiramente desenvolvido no Brasil. Para que esse objetivo se concretize, a empresa, com sede em Campinas, precisa construir uma área certificada ultralimpa para a fabricação do produto e torcer para que os testes clínicos com a droga, já em andamento, atinjam os resultados almejados. “Estamos bastante otimistas,” diz o farmacêutico mineiro José Maciel Rodrigues Júnior, diretor-executivo da Nanocore. “Já fomos bem sucedidos tecnologicamente nas etapas de produção, purificação e controle de qualidade. O imunoterápico de DNA está sendo usado em um estudo clínico com pacientes acometidos de câncer de cabeça e de pescoço e já conseguimos uma formulação em dose única.”
Medicamentos de DNA recombinante, também conhecidos como vacinas gênicas ou de DNA plasmidial, são uma nova esperança para várias doenças que não apresentam tratamento ou métodos profiláticos mais eficazes. Ao contrário da maioria das vacinas tradicionais, que são desenvolvidas a partir de microorganismos – vírus ou bactérias – causadores da doença em sua forma atenuada ou inativa, portanto sem atividade patogênica, os imunoterápicos de DNA baseiam-se apenas no fragmento – normalmente uma proteína – do microorganismo que desencadeia no organismo humano a resposta imunológica protetora contra a tal enfermidade. Outra diferença é que, no caso das vacinas gênicas, o indivíduo não recebe a vacina pronta mas apenas a mensagem de produção. Assim o próprio DNA passa a produzir a vacina no organismo. Esses medicamentos apresentam potencial para melhorar a resposta do organismo contra determinadas infecções e alguns tipos de tumores.
Para o sucesso dessa terapia, é essencial a produção de material gênico e proteína recombinante com grau de pureza que atenda às exigências dos órgãos reguladores, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no Brasil e o Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos, responsável pela análise e liberação de medicamentos naquele país. No mundo todo, vários grupos de pesquisa se esforçam para viabilizar esses tratamentos. “Existem, pelo menos, 300 estudos clínicos em andamento,” informa Maciel. Mas, segundo o pesquisador, exceto uma vacina de DNA de uso animal para proteger eqüinos do vírus da febre do Oeste do Nilo, nenhuma outra vacina foi lançada comercialmente.
Além dos riscos que envolvem os tratamentos que utilizam drogas formuladas a partir da manipulação genética – no passado, alguns pacientes submetidos a tratamentos experimentais com diferentes modalidades de terapia gênica morreram ou desenvolveram câncer – , a dificuldade em tornar realidade esse tratamento reside na complexidade de seu desenvolvimento. O primeiro passo consiste na identificação de uma proteína do microorganismo causador da doença ou de um tumor, que possa servir como alvo contra o qual a vacinação induzirá proteção imunológica. Essa proteína é conhecida como antígeno, uma molécula que aciona as respostas do sistema imunológico. Em seguida, os pesquisadores precisam encontrar, por meio de um processo de seqüenciamento genético, o gene que codifica essa proteína.
“Uma vez identificado o gene, precisamos cloná-lo para multiplicar o número de suas cópias. Para isso, inserimos o gene num plasmídeo, um fragmento de DNA em forma de anel. Esse plasmídeo é colocado numa bactéria não patogênica que, por sua vez, é inserida num meio de cultura. Por um processo de fermentação, essas bactérias se multiplicam e o mesmo ocorre com os plasmídeos, gerando, assim, uma grande quantidade de cópias do gene que será usado na vacina,” explica a biomédica Sandra Aparecida dos Santos, responsável pela Divisão de Biotecnologia da Nanocore. A última etapa do processo é a purificação, que se dá com o rompimento das bactérias e o isolamento do plasmídeo. Ele, então, é colocado em microesferas, com diâmetro superior a 1 micrômetro (1 milímetro dividido por mil vezes), formadas por um biopolímero que se degrada lentamente no organismo humano. Essas microesferas, também fabricadas pela Nanocore, são constituídas de um sistema matricial, no qual o DNA se encontra disperso internamente, e apresentam grande aplicação no campo da imunização e da liberação controlada de fármacos no organismo.
Negócios clínicos
Localizada no Techno Park Campinas, um condomínio empresarial às margens da rodovia Anhangüera, a cem quilômetros da capital paulista, a Nanocore, criada há três anos, recebe financiamento do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) e já fez depósito de patente da formulação do medicamento. A empresa espera agora fechar negócios com investidores para dar seqüência aos estudos clínicos em humanos e iniciar a produção da vacina em larga escala. Ela precisa ampliar suas instalações e construir uma área certificada com as chamadas condições GMP, good manufacturing practices ou boas práticas de fabricação. O local precisa ser um ambiente extremamente asséptico, com menos partículas no ar do que uma sala de cirurgia, possuir rígido controle de fluxo de produção e ser dotado de um sistema de destinação adequada de efluentes. Segundo Maciel, já existe uma negociação avançada com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para obtenção de financiamento para o projeto, orçado em alguns milhões de reais.
Outro desafio para a concretização da primeira vacina de DNA recombinante nacional é exatamente o sucesso dos testes clínicos. A vacina foi usada em um estudo clínico para avaliação de segurança em 22 pacientes terminais acometidos de câncer de cabeça e pescoço. O teste, concluído em outubro do ano passado, foi conduzido por pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). “Por causa de um acordo de confidencialidade, os resultados não podem, por enquanto, ser divulgados, mas posso adiantar que foram promissores,” diz Maciel, ex-professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador da Coordenadoria de Transferência e Inovação Tecnológica daquela universidade, entre 1998 e 2001.
Contra carrapato
Além da vacina gênica para tratamento imunoterápico, a Nanocore trabalha em outras linhas de pesquisa biotecnológica. “Já que dominamos a tecnologia de engenharia de proteína recombinante, decidimos nos dedicar ao desenvolvimento de outros bioprodutos, como o hormônio folículo estimulante (FSH) para uso humano e animal, um kit de diagnóstico para hantavírus, a produção de análogos de amilina – substância secretada pelas mesmas glândulas que produzem a insulina no pâncreas -, usados no tratamento de diabetes, e uma vacina para controlar carrapatos. Essa última está em estágio mais avançado e, se tudo der certo, deve estar no mercado no próximo ano,” diz Maciel. Esses projetos são desenvolvidos em colaboração com os professores Mari Sogayar e Luiz Tadeu Figueiredo, ambos da USP.
Já existem no mercado vacinas similares para controle do carrapato Boophilus microplus, mas, segundo Maciel, elas são problemáticas porque precisam ser administradas em três a cinco doses no primeiro ano da vacinação com reforço a cada seis meses, acarretando um sério problema de manejo. A vacina da Nanocore será aplicada em dose única. “Outro problema é que as vacinas existentes não conferem proteção efetiva ao rebanho nacional, uma vez que existem diferentes cepas de carrapato no mundo e as vacinas comerciais são produzidas a partir de cepas de carrapatos não predominantes no Brasil,” ressalta a farmacêutica Karla de Melo Lima, responsável pela Divisão de Desenvolvimento Analítico da Nanocore. “Trabalhamos na produção da mesma proteína usada nas vacinas de DNA estrangeiras, mas clonada a partir de cepas brasileiras,” diz ela.
As vacinas comercialmente disponíveis contra o carrapato são baseadas numa proteína recombinante, a Bm86 – um antígeno encontrado na membrana intestinal do carrapato -, que permanece inacessível ao sistema imune do bovino, não permitindo, de maneira natural, o desenvolvimento da imunidade. Os anticorpos contra esse antígeno nos animais vacinados, junto com outros componentes do plasma, são ingeridos pelo carrapato com o sangue, possibilitando que os anticorpos específicos formados se unam à proteína intestinal, provocando dano no intestino do carrapato. O objetivo final da vacinação não é a morte direta desse aracnídeo, mas o controle progressivo do número desses pequenos animais em gerações sucessivas, por meio da redução de sua capacidade reprodutiva. “Não queremos exterminar o carrapato porque, indiretamente, ele é responsável por conferir ao gado imunidade a outras doenças. O ideal é manter um nível mínimo de infestação que não cause perdas econômicas,” afirma Karla.
A conclusão do estudo de eficácia da vacina, que está sendo desenvolvida em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) unidade Gado de Corte e com a UFMG, deve acontecer até o final deste ano. Os testes no campo são realizados com cerca de cem animais de diferentes fazendas. “Essa é a última etapa para fins de registro da vacina no Ministério da Agricultura. Nossa idéia é começar a produzi-la no próximo ano,” diz Maciel. O desenvolvimento do produto vai obedecer a três fases. Num primeiro momento, a vacina de dose única será formulada com as cepas estrangeiras. A partir do próximo ano, a intenção da Nanocore é passar a usar as cepas brasileiras. “Em um terceiro momento, queremos associar um segundo antígeno à vacina, que seja eficaz também na fase larval do carrapato. O antígeno atual só atua na fase adulta,” esclarece Karla. “Queremos que a vacina impeça a fixação da larva, não permitindo que o carrapato complete seu ciclo de vida e se reproduza, gerando outros descendentes.” Caso as pesquisas da Nanocore sejam bem-sucedidas, os pecuaristas brasileiros ganharão um forte aliado no combate a uma infestação que, estima-se, causa perdas econômicas de US$ 1 bilhão ao país.
Os Projetos
1. Produção de DNA plasmidial purificado e proteínas recombinantes, em grande escala, para uso em vacinas e diagnósticos (nº 01/08334-8); Modalidade Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe); Coordenador José Maciel Rodrigues Júnior – Nanocore; Investimento R$ 363.454,41 e US$ 21.000,00 (FAPESP)
2. Vacina de dose única contra carrapato bovino (nº 03/13390-0); Modalidade Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe); Coordenador José Maciel Rodrigues Júnior – Nanocore; Investimento R$ 469.080,00 e US$ 12.000,00 (FAPESP)