Quando partiram para examinar com olhar botânico a vegetação da serra do Cabral, em Minas Gerais, o biólogo Rafael Oliveira, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e seus alunos estavam preparados para surpresas. Nesse ambiente em que as plantas crescem sobre rochas ou em meio a uma areia tão branca que parece sal, e por isso conhecido como campo rupestre, é surpreendente que elas encontrem maneiras de sobreviver. Conseguem graças a um arsenal de truques que os pesquisadores mal começaram a desvendar. E a variedade também surpreende: um levantamento ainda não publicado, liderado pelo biólogo Fernando Silveira, da Universidade Federal de Minas Gerais, estima que há cerca de 11 mil espécies (um terço da biodiversidade vegetal brasileira) numa área que não chega a 1% do território nacional, salpicada principalmente ao longo da serra do Espinhaço (exemplos dessa paisagem estão na galeria de imagens). “Ainda estamos longe de entender os mecanismos evolutivos que geram e mantêm essa diversidade”, afirma Oliveira, que participou do levantamento.
À primeira vista, a equipe da Unicamp reparou que apenas quatro espécies eram comuns nas áreas de areia, solo quase desprovido de água e nutrientes, e que uma delas aparecia sempre perto de uma planta diferente, entre outros achados. “Tinha que haver algo especial para possibilitar essa existência”, relembra Oliveira. Uma dessas soluções, comum nos campos rupestres, é ser carnívora. A delicada Philcoxia minensis mantém suas minúsculas folhas grudentas enterradas na areia, onde captura e digere vermes subterrâneos, conforme mostra artigo publicado em 2012 na PNAS, resultado do trabalho de iniciação científica do biólogo Caio Pereira (ver Pesquisa FAPESP nº 194). É a primeira vez que se identifica a capacidade de consumir animais numa espécie da família das plantagináceas, ampliando o alcance conhecido dessa estratégia. Mas a paisagem guardava outras novidades. Ao desenterrar cactos da espécie Discocactus placentiformis, uma esfera espinhuda que deixa apenas a parte de cima exposta, eles viram curiosas raízes revestidas da fina areia. “Mesmo quando lavamos, a areia não sai”, conta Oliveira.
Investigar que substância essas raízes estão liberando, e que função ela cumpre, foi o trabalho de mestrado de Anna Abrahão e exigiu uma solução pouco ortodoxa: cultivo hidropônico na casa de vegetação do Laboratório de Ecologia Funcional de Plantas, coordenado por Oliveira. A ideia de manter submersas em água as raízes de plantas que normalmente mal se regam foi vista com descrédito por colegas, mas era a única maneira de controlar a quantidade de nutrientes disponível. “No solo nunca sabemos quanto fica disponível para a planta, porque as substâncias formam compostos difíceis de quebrar”, explica o biólogo.Mais uma surpresa: a água em excesso não se revelou um problema, mas a quantidade de nutrientes era um fator mais crítico do que eles imaginavam. Numa tentativa anterior de cultivar plantas de campos rupestres em laboratório, Oliveira diluiu pela metade o fertilizante comercial, levando em conta a pobreza de nutrientes do ambiente natural em que vivem. Todas morreram intoxicadas pelo excesso. “Só conseguimos quando o composto de nutrientes estava com um décimo da concentração original.”
Com o artifício de manter as raízes desenterradas, foi possível enxergar a formação dos aglomerados de pelos radiculares que secretam substâncias conhecidas como carboxilatos e mantêm a areia grudada neles. Esses carboxilatos quebram os compostos de fósforo, alumínio e ferro presentes na areia, nesse formato indisponíveis para as plantas. Assim elas conseguem absorver o fósforo, essencial para diversas funções vitais (como fazer fotossíntese e construir o material genético) e escasso nesse solo formado a partir de quartzo. “Essa secreção é uma inovação impressionante”, explica Oliveira. “Ela manipula o solo quimicamente, outras plantas não conseguiriam sobreviver nessas condições.”
Com isso, as raízes conseguem mobilizar não apenas o fósforo, mas também outros micronutrientes importantes para o desenvolvimento e o crescimento. Essas substâncias são tão raras nesses solos que chega a ser difícil detectá-las pelos métodos habituais. O manganês, porém, mostrou-se mais comum nas folhas de espécies com especializações nas raízes, a ponto de ser um possível indicador desse tipo de estratégia, conforme artigo de fevereiro deste ano na Trends in Plant Science.
O experimento com os cactos, cujos resultados foram publicados em outubro de 2014 na revista Oecologia, também mostrou que quando há mais fósforo no solo as raízes respondem fabricando menos carboxilatos. “As plantas têm uma série de estratégias numa escala bem pequena, com soluções adaptativas mais diversas do que imaginamos”, diz o pesquisador da Unicamp.
A descoberta de que os Discocactus usam esse artifício para obter nutrientes também foi surpreendente porque os cactos são uma família conhecida por fazer associações com fungos em suas raízes, as chamadas micorrizas, que transferem fósforo para a planta e ganham carbono dela. “O editor do artigo achou que fosse impossível, já que é uma família micorrízica”, lembra Oliveira. Para ele, trata-se de um indício de como o arsenal diverso das plantas é ignorado em grande escala, sobretudo nas condições extremas dos campos rupestres, cuja fama ainda não se espalhou pelo mundo.
A investigação dessa região permitiu a Oliveira pôr à prova um modelo teórico desenvolvido pelo biólogo holandês Hans Lambers, radicado na Universidade da Austrália Ocidental. Em artigo publicado em 2008 na revista Trends in Ecology and Evolution, ele mostrou que nos solos antigos, pobres em nitrogênio e fósforo, as micorrizas não são a estratégia mais comum. Nesses ambientes o fósforo é uma limitação mais forte que o nitrogênio, ao contrário do que acontece em solos mais jovens. Em seu lugar, surgiriam as modificações de raízes como aglomerados de pelos e secreção de carboxilatos. A sugestão se baseou em estudos feitos em duas regiões com características muito semelhantes às dos campos rupestres: os fynbos, na África do Sul, e o kwongan, no sudoeste da Austrália. Fascinado com o artigo, Oliveira, que estava no início de um projeto para avaliar as estratégias de obtenção de água pelas plantas dos campos rupestres, aproveitou para incluir os nutrientes nos estudos.
Com isso conseguiu fazer o primeiro teste da teoria de Lambers – que nesse processo se apaixonou pelos campos rupestres e iniciou uma parceria de pesquisa com o grupo da Unicamp, onde dará cursos em visitas de um mês ao longo dos próximos três anos. Uma análise do solo da serra do Cabral e de 50 das espécies de plantas mais importantes por ali indica que o campo rupestre é de fato semelhante aos fynbos e ao kwongan no que diz respeito à escassez de nutrientes, sobretudo do fósforo. Também na obtenção de nutrientes mais por meio de especializações das raízes do que de associação com micorrizas, conforme mostra artigo que resultou do mestrado de Hugo Galvão e foi publicado na New Phytologist de fevereiro deste ano.
Uma das observações feitas pela estagiária Ana Luíza Muler em viagens à serra mineira também rendeu um teste independente. Num período que passou na Austrália, ela estudou duas plantas que costumam viver próximas uma da outra, como é o caso de uma espécie da família das iridáceas que costuma estar associada a uma sempre-viva na serra do Cabral. No caso australiano era uma Banksia attenuata, cujas raízes formam aglomerados que liberam carboxilatos e extraem o fósforo do solo, e uma Scholtzia involucrata, que não tem a especialização. Num experimento relatado em artigo de 2014 na Oecologia, ela mostrou que esta segunda planta cresce melhor na presença da outra espécie, sugerindo que ela aproveita os nutrientes que se tornam disponíveis pela alteração química do solo. Resta estudar o quanto isso acontece e como essas plantas distintas convivem entre si.
Os paralelos entre os continentes é um resquício de um passado muito distante em que eles estiveram próximos, no supercontinente Gondwana. As famílias vegetais que protagonizam essas descobertas são, em grande parte, representantes de famílias que já existiam nesse período remoto: as proteáceas, cujas raízes especializadas conhecidas nos outros continentes levaram o grupo de Oliveira a procurar semelhanças por aqui, e as veloziáceas (canelas-de-ema) e eriocauláceas (sempre-vivas), ambas com uma diversificação maior no Brasil do que nos outros países. Os segredos que elas escondem na areia prometem mostrar que os mecanismos conhecidos em florestas tropicais não são a regra, além de pôr os campos rupestres na linha de frente dessa nova compreensão de como plantas podem lidar com situações extremas.
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Projeto
Mudanças climáticas em montanhas brasileiras: respostas funcionais de plantas nativas de campos rupestres e campos de altitude a secas extremas (n. 12/07271-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Rafael Silva Oliveira (Unicamp); Investimento R$ 569.639,14 (FAPESP).
Artigos científicos
ABRAHÃO, A. et al. Convergence of a specialized root trait in plants from nutrient-impoverished soils: phosphorus-acquisition strategy in a nonmycorrhizal cactus. Oecologia. v. 176, n. 2, p. 345-55. out. 2014.
LAMBERS, H. et al. Leaf manganese accumulation and phosphorus-aquisition efficiency. Trends in Plant Science. v. 20, n. 2, p. 83-90. fev. 2015.
MULER, A. L. et al. Does cluster-root activity benefit nutrient uptake and growth of co-existing species? Oecologia. v. 174, n. 1, p. 23-31. jan. 2014.
OLIVEIRA, R. S. et al. Mineral nutrition of campos rupestres plant species on contrasting nutrient-impoverished soil types. New Phytologist. v. 205, n. 3, p. 1183-94. fev. 2015.
PEREIRA, C. G. et al. Underground leaves of Philcoxia trap and digest nematodes. PNAS. v. 109, n. 4, p. 1154-8. 24 jan. 2012.