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Obituário

Estudioso da urbe

Flávio Villaça foi responsável por interpretação apurada das cidades brasileiras

Em palestra na Universidade Federal de Santa Catarina, em 2012, arquiteto discutiu projetos urbanos em Florianópolis

PGAU/UFSC

Reconhecido entre seus pares como um dos mais influentes pensadores do planejamento urbano no Brasil, o arquiteto e urbanista Flávio José Magalhães Villaça morreu no dia 29 de março, aos 91 anos. Embora com o passar dos anos tenha questionado a efetividade de planos diretores na transformação das cidades, em sua trajetória o professor emérito da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) participou da discussão e elaboração desses documentos em diversos municípios, atuando também como consultor em órgãos públicos ligados às áreas de planejamento e habitação.

“Ele foi um dos pesquisadores fundamentais para o entendimento da estrutura urbana das cidades brasileiras, especialmente de São Paulo”, afirma o também arquiteto e professor da FAU-USP Nabil Bonduki, seu aluno na graduação e orientando no doutorado, concluído na mesma instituição. “Sua dedicação era fabulosa. Sempre atento e crítico, contribuía de forma substantiva para os trabalhos que orientava. Seus alunos e orientandos formam uma legião de admiradores”, diz.

Autor de uma produção intelectual que influenciou gerações de profissionais, Villaça buscou examinar a complexidade das cidades conjugando fatores relacionados não apenas ao urbanismo e às construções, mas às desigualdades e segregações que ocorrem no espaço urbano. Foi um defensor da participação popular na elaboração dos instrumentos reguladores. “Debatemos muito sobre a efetividade dos planos diretores, pois ele, com seu pensamento afiado e questionador, fruto da experiência de décadas trabalhando com o planejamento urbano, era cético sobre a possibilidade de esses documentos alterarem o caráter excludente das cidades”, recorda Bonduki.

Nascido em 1929 na cidade paulista de Cruzeiro, no Vale do Paraíba, Villaça iniciou a graduação em arquitetura e urbanismo na USP em 1948. Concluiu seu mestrado em City Planning pelo Georgia Institute of Technology em 1958, nos Estados Unidos, e, 21 anos depois, doutorou-se em geografia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP). Em 1985 desenvolveu pesquisa de pós-doutorado na Universidade da Califórnia em Berkeley, também nos Estados Unidos. Por diversos anos foi consultor de planejamento urbano e assessor de órgãos públicos municipais, estaduais e federais, como as prefeituras de São Paulo, São Bernardo do Campo (SP) e Belo Horizonte (MG). Trabalhou na Secretaria de Planejamento do Estado de São Paulo, na Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa), nos já extintos Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal (Cepam) e Serviço Federal de Habitação e Urbanismo, dentre outros.

Ao final da década de 1960, foi agraciado com o prêmio anual do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) pelo conjunto de artigos publicados sobre planejamento urbano. “Ele tinha uma grande visão para temas estratégicos no campo dos estudos urbanos, além de articular a reflexão teórica a uma extensa prática profissional”, afirma Maria Cristina da Silva Leme, professora da FAU-USP que também teve Villaça como orientador de seu doutorado, concluído em 1990. “Destaco ainda seu talento, dedicação e generosidade na formação de pesquisadores”, completa.

Como professor de planejamento urbano da FAU-USP, trabalho que iniciou em 1974, discutia com os alunos a necessidade de articular urbanismo com a participação política. Também gostava de reunir seus orientandos e ex-orientandos para a realização de leituras críticas de textos, leis e projetos de lei, debatendo questões relacionadas ao espaço urbano. “Eram reuniões maravilhosas que ele promovia em sua própria casa”, lembra Silvana Zioni, professora da Universidade Federal do ABC (UFABC) e orientanda de Villaça durante o doutorado. “Criticando os fundamentos teóricos de sua formação em sociologia e geografia urbana, ele adere ao materialismo histórico e dialético em suas reflexões sobre a estruturação do espaço intraurbano”, observa.

Villaça é autor de diversos livros, dentre eles Espaço intra-urbano no Brasil (Studio Nobel, 1998), obra originada a partir de sua tese de doutorado e que trata dos processos de estruturação da cidade, sobretudo aqueles que, em sua visão, geram segregação e criação de áreas privilegiadas, ocupadas por populações de classe média alta e alta em contraposição às regiões periféricas como espaços precarizados. O trabalho analisa metrópoles como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Salvador. Publicou também O que todo cidadão precisa saber sobre habitação (Global, 1986), Reflexões sobre as cidades brasileiras (Studio Nobel, 2012) e As ilusões do plano diretor (Edição do autor, 2005).

“Villaça participou de um processo de renovação do planejamento urbano no momento de redemocratização do país. Deixa um longo período de contribuição crítica e uma obra que se tornou central para os estudos da cidade”, considera a também urbanista Raquel Rolnik, da FAU-USP, que teve Villaça em sua banca de mestrado, defendido em 1981. “Homem gentil e generoso, reconhecido como uma mente aberta e receptiva, sem preconceitos em relação às ideias diferentes das dele”, finaliza Rolnik.

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