Estamos vivendo no Brasil um momento muito interessante em que os investimentos na pesquisa científica em biotecnologia começam a dar resultados que estimulam a discussão sobre quais as melhores opções para o país nas áreas de meio ambiente e energia. Esse debate ilustra o papel crucial da ciência na determinação das estratégias de um país. Afinal, não é para isso que pagamos nossos impostos? Paralelamente, a sociedade brasileira parece estar amadurecendo a ponto de conseguir intensificar a comunicação entre os setores tomadores de decisão e os produtores de conhecimento, um diálogo que aumenta a velocidade de produção de tecnologia e melhora o posicionamento estratégico de um país frente à comunidade internacional.
A decisão sobre o que deve ser financiado é tomada quando o governo federal e os estaduais determinam suas políticas públicas. As agências financiadoras brasileiras, controladas pelos governos, além de várias empresas, parecem estar interessadas em financiar projetos em praticamente qualquer área que proponha novas soluções para a produção de biocombustíveis. Ao mesmo tempo, a trajetória da pesquisa é determinada pela comunidade científica, que, ao fazer novas descobertas, altera constantemente o cenário de prós e contras para as diferentes rotas estratégicas a serem seguidas.
Nesse contexto, cabe uma pergunta: qual a melhor espécie para produzir álcool no Brasil? Cana, milho ou mandioca? No momento, é obviamente a cana, única das três plantas que dispõe de quantidade suficiente de um carboidrato (a sacarose) em seu tecido que pode ser diretamente fermentado para a produção de álcool e do açúcar que consumimos. Milho e mandioca têm amido, um tipo de carboidrato mais complexo que precisa passar por mais transformações do que a sacarose para gerar etanol. Ainda assim, será que o milho e a mandioca teriam chances de se firmar no mercado de biocombustíveis no futuro próximo? Aparentemente sim, mas não há como responder a essas perguntas no momento por falta de mais pesquisas. Por ora, vamos examinar, em poucas linhas, o que sabemos sobre cada uma dessas plantas e seu potencial de produção de etanol.
A história mostra que, enquanto as populações da América Central e do Sul selecionaram o milho para aumentar a produção de amido em suas sementes, a cana foi modificada para aumentar a concentração de sacarose no colmo, nome botânico para o “caule” das gramíneas. Isso porque a cana era inicialmente usada como um remédio, por conter um pouco mais de açúcar. O melhoramento da cana começou logo após o descobrimento do Brasil. Muitos anos depois, o intento deu certo tornando o país um dos maiores produtores de açúcar do planeta. Mais recentemente, nos tornamos também os líderes mundiais na tecnologia de produção de biocombustíveis.
Em termos energéticos, da quantidade de carboidratos que produzem, podemos comparar um colmo de cana e uma espiga de milho a, respectivamente, um CD com capacidade de 700 Mb e um pen drive de 2Gb. Enquanto o milho empacota o carboidrato de reserva nas sementes em forma de amido, a cana armazena sacarose no colmo na forma solúvel. Além disso, há a questão da eficiência energética de cada planta em chegar ao produto final do armazenamento. Como os processos que levam à produção de amido passam pela produção da sacarose, o milho acaba gastando mais energia que a cana para armazenar energia na forma de açúcar.
A cana produz sacarose nas folhas e a transporta para o colmo, onde ficará armazenada até a colheita. Quando cresce no campo, a cana investe inicialmente em todo o seu corpo até obter um bom número de folhas. Depois de um curto período de seca, ocorre o armazenamento de grandes quantidades de sacarose. A cana acumula a sacarose para usar em sua própria floração e na produção de sementes. Porém, o agricultor interrompe esse processo e não deixa que as plantas floresçam. Dessa maneira, parte da sacarose que seria consumida para a reprodução acaba sendo utilizada para aumentar o seu teor no colmo que nós, humanos, iremos utilizar para produzir açúcar e álcool. No caso da cana, basta espremer o colmo e consegue-se uma solução de sacarose, que é usada diretamente para fermentação e produção de etanol.
O milho faz tudo quase igualzinho à cana, mas há uma diferença fundamental. Do ponto de vista agrícola, o objetivo do milho é deixar a planta florescer e produzir sementes com o maior teor de amido possível. Esse carboidrato é constituído de cadeias de glicose que interagem entre si e formam pacotes compactados de açúcar com baixa solubilidade na água. Por isso, é preciso usar enzimas para degradar o amido e transformá-lo em açúcares solúveis (maltose e glicose) que serão então utilizados na fermentação para gerar o etanol. Esse processo é caro e mais trabalhoso do que no caso da cana.
Por fim, podemos pensar se também seria válido produzir álcool a partir do amido das raízes da mandioca. Mas, antes de irmos por esse caminho, teríamos que tornar viável um processo enzimático de hidrólise do amido. Para tanto, pesquisas básicas e de processos terão que ser intensificadas para aprendermos os caminhos necessários para viabilizar essa opção do ponto de vista econômico. Outra opção, ainda com a mandioca, é recorrer à engenharia genética e fazer com que, em vez de amido, as raízes da planta acumulem sacarose, como ocorre no colmo da cana. Uma desvantagem, nesse caso, é que perderíamos o efeito da compactação, que é uma forma de armazenar mais energia em um mesmo espaço. Em outras palavras, armazenando sacarose se dilui a capacidade de guardar energia, pois ela, a sacarose, precisa de muito mais água para se manter na forma solúvel. Já o amido existe na forma de grânulos com suas moléculas extremamente compactadas e com pouca água, exigindo bem menos espaço dentro células. Com base nisso, pode-se especular que o farelo de mandioca, que tem um teor de açúcares (amido) equivalente ao teor de sacarose da cana (140 gramas por quilo), teria uma menor capacidade total de armazenamento de energia se fosse produzido a partir de uma planta de mandioca capaz de armazenar somente sacarose. Nesse caso, o tecido da raiz necessitaria de mais água para manter a sacarose. Mas, em relação ao milho (embora não em relação à cana), a mandioca gastaria menos energia metabólica para gerar etanol, pois não precisaria florescer.
Aqui chegamos a algumas questões cruciais: afinal, qual a melhor espécie para produzir álcool? Como se disse, a cana apresenta amplas vantagens no momento, mas essa supremacia pode não se sustentar no longo prazo. Precisamos continuar pesquisando. Precisamos obter informações estratégicas, como o nível de resposta de cada uma dessas três espécies às mudanças climáticas previstas para este século, como o aumento da concentração de CO2 e a elevação da temperatura. Já sabemos que a cana responde melhor do que o milho a essas alterações climáticas e será provavelmente mais produtiva nos próximos 20 ou 30 anos, mas falta conhecer as respostas da mandioca. Se começarmos a pensar no que mais falta saber, a pilha de perguntas vai aumentando. Por exemplo, em quais regiões e climas cada espécie se adapta melhor? Qual será o limite de eficiência de processos que usem a hidrólise do amido? Até onde podemos melhorar geneticamente as plantas para facilitar a digestão enzimática do amido? Que impactos sociais e ambientais cada planta provocará se aumentarmos suas escalas de plantio?
Precisamos trabalhar de forma interdisciplinar para responder o mais rapidamente possível a essas e a outras questões. Dessas respostas, dependem questões importantes, que terão efeitos sobre o meio ambiente, a posição do Brasil em mercados internacionais e até o investimento de grupos estrangeiros no país.
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