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Pesquisa na quarentena

“Eu fico cutucando os alunos. Tento passar uma mensagem positiva e manter o grupo ativo”

A bioquímica Fernanda de Felice, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conta o que faz para mobilizar os 28 estudantes, técnicos e pesquisadores de seu laboratório após a suspensão das atividades presenciais

Fernanda de Felice em vídeo de 2018 feito pela Sociedade de Alzheimer canadense

Reprodução

Coordeno um laboratório no Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ que faz pesquisas sobre o sistema nervoso, particularmente relacionadas ao mal de Alzheimer e a disfunções neuronais ligadas ao diabetes e à obesidade. Somos ao todo 28 pessoas: 5 pós-doutorandos, 6 alunos de doutorado, 8 de mestrado, além do corpo técnico e 6 alunos de iniciação científica. Foi um baque para um laboratório grande como o nosso quando a UFRJ recomendou que as atividades fossem reduzidas ao essencial. Como não trabalhamos com pesquisas diretamente relacionadas com a Covid-19, suspendemos as atividades presenciais. O perigo de contaminação era real. Muitas pessoas do grupo dependem de transporte público para se deslocar até a Ilha do Fundão, e, claro, todos estão com medo. Conversei com eles sobre o que era razoável fazer. Conseguimos, na maior parte dos casos, manter projetos que estavam em andamento e preservar as coisas mais importantes. Estamos trabalhando de forma remota, mas dois alunos precisam ir ao laboratório uma vez por semana para concluir trabalhos: se há um experimento em que é preciso manter um animal com uma dieta específica durante 16 semanas, perdemos tudo se interrompermos o estudo. O corpo técnico também segue trabalhando para manter cuidados com os animais e com os equipamentos do laboratório e dar suporte ao que segue funcionando.

Não dá para começar um experimento novo. Foi preciso tomar decisões difíceis e sacrificar alguns animais de laboratório. Os alunos ficaram tristes, mas entenderam e concordaram. O trabalho nos biotérios está funcionando em esquema de rodízio, para reduzir a circulação de pessoas e o risco de contágio dos funcionários. Por isso, todos os pesquisadores da UFRJ tiveram de reduzir o número de experimentos e a quantidade de animais preservados nessas instalações.

Cada pessoa do grupo tem uma história diferente – um vive em casa onde tem uma pessoa em grupo de risco para Covid-19, outro pertence a uma família em que há situação de perda de emprego e de salário. É difícil e noto que alguns alunos estão tristes. Abri uma conta no Zoom e estou tentando manter todo mundo ativo. Fazemos discussões sobre os artigos em andamento uma vez por semana; o grupo se organiza para cantar parabéns para quem faz aniversário. Eu fico cutucando os alunos, mando artigos, tento envolvê-los na preparação de projetos. Não dá para falar com 28 pessoas todo dia, mas dividi em grupos menores e tento monitorar todos o tempo todo. Consigo mobilizar uns 85% a 90% dos membros de grupo. Tento passar uma mensagem positiva e mostrar que estamos todos no mesmo barco. Mas me preocupo porque alguns nem estão respondendo aos meus e-mails.

A UFRJ recomendou aos professores que não ministrassem aulas on-line a cursos que não usavam essa abordagem anteriormente, até mesmo porque alguns docentes tentaram e não conseguiram a adesão da turma toda. O jeito é tentar colocar a cabeça dos alunos para funcionar, não deixar ninguém ocioso. A restrição às aulas não me afetou até agora porque minhas aulas ocorreriam mais tarde no semestre letivo. Mas pelo visto a situação ainda deve perdurar por algum tempo.

Existem várias evidências de que processos inflamatórios desencadeados pelo vírus Sars-CoV-2 podem causar complicações neurológicas e comecei a pensar no impacto disso daqui a 20 ou 30 anos. Será que vamos ter um boom de doenças neurodegenerativas causado pela pandemia? Me juntei a outros neurocientistas e escrevemos um artigo de perspectiva, que foi publicado on-line no dia 21 de abril na revista Trends in Neurosciences e teve uma repercussão muito boa ao propor um roteiro para pesquisas sobre o impacto do novo coronavírus no sistema nervoso central. Não estamos na linha de frente de combate à Covid-19, mas podemos usar nossa expertise e tentar ajudar de alguma forma. Como a doença desperta interesse em todos, penso que dá para trazer essa linha nova de pesquisa para o laboratório e ajudar a motivar a garotada do grupo. De fato, estamos planejando o início dos primeiros experimentos nessa área para os próximos dias e espero que esse seja mais um motivo de estímulo aos integrantes do meu grupo de pesquisa.

Em casa, a situação é desafiadora, mas estamos em harmonia. Tenho três filhas. As duas mais velhas estão trabalhando em casa, mas acompanhar a caçula, de 11 anos, que está estudando on-line, com uma rotina completamente diferente da que estava acostumada, exige atenção. Tenho que dedicar umas boas horas da manhã para a rotina doméstica, ver se tem comida. É uma correria. Eu confesso que, para ter um pouco de sossego, de um mês para cá eu venho acordando de madrugada para trabalhar um pouco. Tenho conseguido umas boas horas de produção dessa forma. Quando amanhece, dou um cochilo, e aí vamos em frente. Não reclamo. Tem gente trabalhando como um condenado em hospital, colegas perdendo familiares. Estamos com a vida mais tranquila comparada aos profissionais que estão na linha de frente nos hospitais. Os obstáculos são pequenos perto dos de muitas pessoas nessa pandemia.

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