Para realizar o sonho de ser mãe por meio de uma produção independente, a produtora de conteúdo Solange Duprat saiu em busca de clínicas de fertilização in vitro no Brasil e no exterior. Ao consultar o catálogo de doadores de esperma de um dos estabelecimentos fora do país, Duprat, personagem da novela Vale tudo interpretada pela atriz Alice Wegmann, exclama ao ler a ficha de um dos candidatos: “É loiro, tem olhos azuis”. E, em seguida, desanima: “Ah, mas é surfista”.
O diálogo, que pretendia dar um toque cômico à cena do folhetim exibido neste ano pela Rede Globo, expôs involuntariamente uma das concepções da eugenia mais enraizadas no imaginário popular: a crença na hereditariedade de conhecimentos, hábitos e gostos adquiridos socialmente. “Se substituirmos a palavra ‘surfista’ por ‘criminoso’ poderíamos estar sugerindo que quem comete um crime também terá um filho criminoso, uma forma estereotipada de classificação de gametas que está sendo usada atualmente”, observa o cientista social Robert Wegner, professor de história das ciências da Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Osvaldo Cruz (COC-Fiocruz).
O pesquisador é autor do recém-lançado Eugenia: Ontem e hoje (Editora Fiocruz), livro sobre a temática que voltou aos holofotes nos últimos anos no mundo diante dos avanços da engenharia genética e da extrema-direita pelo planeta. “A oportunidade de a personagem ser uma mãe solo é um fator extremamente positivo possibilitado pela ciência, mas, a partir do momento em que essa alternativa é lida sob uma lógica hierarquizadora de grupos, assume um viés eugenista de que existem seres humanos melhores que outros”, diz Wegner, que integra a rede de pesquisa Transnational Transdiciplinary Network on Society and Genetics.
No Brasil, não há bancos de gametas e os interessados devem procurar as clínicas especializadas em reprodução assistida. Além disso, a legislação não permite a escolha de sêmen ou de óvulos. Porém, segundo o pesquisador, essas clínicas possuem dados de religião e escolaridade de doadores, como se essas características fossem hereditárias. “Quando as pessoas, no Brasil, recorrem a gametas em bancos do exterior, como o dos Estados Unidos ou da Espanha, o que é permitido pela legislação brasileira, nota-se a preferência por gametas de pessoas brancas e escolarizadas”, constata Wegner.
“Se lembrarmos que as promessas e os esforços da comunidade acadêmica dos geneticistas no pós-Segunda Guerra Mundial foram de combater o racismo, é lamentável que os efeitos dos empregos das tecnologias advindas da genética no mercado de gametas vão na direção contrária, pois reforçam a racialização, além do determinismo genético”, prossegue o historiador. “A história nos mostra que devemos combater e condenar publicamente as práticas discriminatórias eugênicas.”
A eugenia surgiu como ciência no final do século XIX. O termo, que significa “bem-nascido” em grego, foi cunhado pelo estatístico e polímata britânico Francis Galton (1822-1911). Em diálogo com A origem das espécies (1859), livro escrito por seu primo, o naturalista Charles Darwin (1809-1882), Galton acreditava que a raça humana poderia ser aprimorada por meio da reprodução seletiva. Ele era influenciado ainda pela ideia de “hierarquia entre raças”, presente em A descendência do homem e seleção em relação ao sexo (1871), outra obra de Darwin.
A combinação de expansão do nacionalismo, de governos autocráticos e de movimentos imigratórios contribuiu para a disseminação da eugenia em nível global no início do século passado. Essas ideias originaram políticas públicas controversas, como o controle de imigração e a esterilização. O auge da eugenia ocorreu durante o regime nazista, que emergiu na Alemanha, na década de 1930.
A primeira sociedade eugênica no Brasil foi fundada em 1918, em São Paulo, e cresceu de braços dados com o movimento sanitarista, surgido na mesma década. A princípio, esses médicos defendiam que o culpado pelo atraso do país eram as doenças e não a mistura de raças, como se acreditava na época. “A iniciativa dos sanitaristas em construir um aparato público de saúde foi muito positiva e importante para o Brasil”, relata o historiador. “Entretanto, eles eram influenciados pela eugenia: achavam que se melhorassem as condições de vida de uma geração, as melhorias seriam herdadas pela geração seguinte.”
De acordo com a historiadora Maria Izilda Santos de Matos, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), uma das portas de entrada do pensamento eugenista na capital paulista foi a Faculdade de Medicina e Cirurgia, criada em 1912, e mais tarde incorporada à Universidade de São Paulo (USP), em 1934. Estudiosa do tema desde a década de 1990, Matos pesquisou as teses defendidas naquela faculdade entre as décadas de 1920 e 1940. “Seja em um trabalho acadêmico de ginecologia ou de pediatria, praticamente todos eles faziam referência à eugenia”, afirma a historiadora, que publicou o levantamento no livro Corpos e emoções: História, gênero e sensibilidades (Editora e-Manuscrito, 2018).
Na década de 1920, propostas eugenistas começam a surgir no aparato estatal, como o controle de entrada de imigrantes indesejados – principalmente japoneses, o “perigo amarelo” – e a deportação daqueles que cometiam “delitos”, como participar de greves ou de movimentos operários. “Entretanto, foi na Assembleia Nacional Constituinte de 1933 que a eugenia ganhou grande destaque, com propostas que incluíam até mesmo a castração eugênica para conter a procriação de indivíduos considerados ‘indesejados’”, conta Matos. Segundo a historiadora, essas ideias acabaram encontrando espaço na Carta de 1934 por meio do artigo nº 138, que definia, entre outros itens, o estímulo à educação eugênica e à luta contra “venenos sociais”, a exemplo do alcoolismo e do casamento inter-racial.
Com a derrocada do nazismo, a eugenia foi desacreditada no período pós-Segunda Guerra Mundial. “Mas ela não desapareceu”, afirma o historiador Guilherme Roitberg, um dos coordenadores do simpósio temático Eugenia e Seus Impactos: Ciência, Saúde e Educação, que integrou o 33º Simpósio Nacional de História, realizado em julho, em Belo Horizonte.
Atualmente em estágio de pós-doutorado na COC-Fiocruz, Roitberg constatou que a rede de divulgação eugênica no interior de São Paulo, iniciada na segunda década do século XX, perdurou até os anos 1990. De acordo com o pesquisador, o médico Renato Ferraz Kehl (1889-1974) e o geneticista Salvador de Toledo Piza Júnior (1898-1988), respectivamente, criador e diretor do Boletim de Eugenia (1929-1933), por exemplo, continuaram a publicar artigos com esse cunho em revistas, jornais e periódicos de cidades como Piracicaba, Limeira e Santa Bárbara D’Oeste.
“Mesmo com as críticas à eugenia ocorridas após a Segunda Guerra Mundial, Piza Júnior, que foi professor da Esalq [Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP, em Piracicaba], deu prosseguimento à sua campanha pela ‘regeneração racial’ da população brasileira até seus últimos anos de vida”, diz Roitberg, que realiza o estudo com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “Ele publicou textos sobre miscigenação e hierarquização de seres humanos até 1987.”
Como destaca Wegner, a eugenia manifesta-se até hoje por meio de formas discriminatórias como racismo, xenofobia, capacitismo, misoginia e transfobia. “É um termo amplo, polissêmico, que precisamos compreender para, inclusive, fazer da crítica à eugenia uma ferramenta política relevante e assim combater posicionamentos antidemocráticos e todo tipo de hierarquização de pessoas”, defende o pesquisador.
Artigo científico
ROITBERG, G. P. Educação eugênica no interior de São Paulo: A circulação das ideias de Renato Kehl nos jornais de Santa Bárbara D’Oeste (1933-1981). Revista História da Educação. v. 29, 2025.
Livro
WEGNER, R. Eugenia: Ontem e hoje. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2025.
