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Memória

Exatidão e razão na arte

Há 590 anos, Brunelleschi redescobria a perspectiva linear

O arquiteto italiano Filippo Brunelleschi (1377-1446) era um escultor de talento, mas isso não significava exatamente uma raridade na Florença dos séculos 14 e 15. Naquele tempo, o Renascimento desabrochava em todas as direções e as atividades artísticas da época ganharam grande relevo. Conta a lenda criada em torno de Brunelleschi que ele optou decisivamente pela arquitetura depois de participar de um concurso para esculpir uma das portas do batistério florentino, entre 1402 e 1403. Os responsáveis optaram por dar o trabalho para Lorenzo Ghiberti e Brunelleschi, que se recusou a dividir a obra. A partir daí, ele teria viajado para Roma com outro escultor, Donatello, onde mergulhou profundamente nos estudos sobre arquitetura e escultura clássicas.

Disso resultou a redescoberta da perspectiva linear, já usada por gregos e romanos na Antigüidade e esquecida por longos séculos. O florentino deu aos seus estudos um caráter mais científico do que propriamente artístico – teria sido o primeiro a medir os monumentos de arquitetura antiga procurando sempre entender e passar para o papel a precisão do que analisava. O próprio Brunelleschi explicou o conceito da seguinte forma: “A perspectiva consiste em dar com exatidão e racionalmente a diminuição e o aumento das coisas que resulta para o olho humano no seu afastamento ou na proximidade: casas, planos, montanhas, paisagens de todas as espécies, figuras e outras coisas”.

Em outras palavras, a perspectiva é o método que permite a representação tridimensional em superfícies bidimensionais por meio de regras geométricas de projeção. A sua característica principal é o ponto de fuga, para o qual cada série de linhas paralelas parece convergir. Embora baseada em geometria e óptica, essas técnicas tiveram enorme importância para os artistas renascentistas por ser objetiva e racional – algo bem diferente dos conceitos usados durante a Idade Média. Foi entre 1413 e 1415 que Brunelleschi tornou suas idéias claras ao pintar o batistério da cidade exatamente como era visto da porta principal da catedral de Florença.

A experiência impressionou seus amigos artistas, Donatello, escultor, e Masaccio, pintor. Hoje, os três são considerados precursores da estética renascentista. Vinte anos depois, o também artista Leon Battista Alberti, profundamente erudito, dedicou a Brunelleschi seu Trattato della Pittura, onde explicitava as bases teóricas do método. Como arquiteto, Brunelleschi foi escolhido para projetar e finalizar a catedral de Santa Maria del Fiore, em Florença, em 1420. A cúpula da igreja era inteiramente original por dispensar o cimbre, uma armação de madeira que servia como molde e suporte a arcos e abóbadas.

A construção da abóbada deveria ser feita sobre uma grande base octogonal, um bom desafio para os arquitetos da época. Para levar adiante seu projeto, ele criou máquinas e andaimes especiais e concluiu a obra que, ainda hoje, é referência e objeto de estudo em todos os cursos de arquitetura. Sua fama como arquiteto era tão grande que, ao morrer, foi enterrado na catedral de Santa Maria del Fiore, honra só concedida aos nobres e integrantes do clero. Polemista, não fugiu ao espírito efervescente daquele tempo e travou boas brigas com seus pares. “Brunelleschi afirma implicitamente que o valor da arquitetura não está na delicadeza e na variedade de adornos, mas na lucidez distributiva de sua estrutura”, diz em seu livro Brunelleschi (Xarait Ediciones), o também italiano Giulio Carlo Argan (1902-1992) um dos maiores historiadores em arte e arquitetura do mundo.

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