A Cureus, revista de ciências médicas da editora Springer Nature, decidiu abolir uma prática que é comum no processo de avaliação de artigos de periódicos científicos: a possibilidade de o autor de um manuscrito enviar sugestões de nomes de especialistas que considera aptos para revisar o conteúdo de seu trabalho. Essa prática busca ajudar os editores das revistas a identificar pesquisadores que conheçam a fundo o tema do artigo em avaliação, sem que haja compromisso de acatar as sugestões.
Em vez de recomendar revisores, os autores foram orientados a apontar cinco pesquisadores – justamente entre colegas ou mentores – para atuarem como “conselheiros”. Os nomes sugeridos serão convidados a fornecer “feedback consultivo” por meio de comentários inseridos diretamente no texto do trabalho científico. Dessa forma, os colegas e supervisores poderão dar sua contribuição para o aperfeiçoamento do trabalho sem que seu julgamento tenha um status decisivo na avaliação do paper.
De acordo com um comunicado da equipe editorial da Cureus, a medida se justifica pelo “potencial conflito de interesses” nas indicações de pessoas com quem os autores têm relações próximas para atuar como avaliadores de seus artigos. Ao substituir os revisores convidados por consultores, a revista informou que busca “empoderar” os autores a buscar feedback de colegas, sem que isso provoque vieses na revisão por pares.
Criada em 2009, a Cureus tornou-se conhecida por adotar um tipo de revisão por pares aberta, que é bem diferente do padrão dos periódicos científicos. Em vez de pedir aos avaliadores pareceres aprofundados sobre o conteúdo, que pode demorar semanas para serem elaborados, a revista médica dá um curto espaço de tempo para que os revisores analisem se o manuscrito parece robusto, enquanto a análise crítica do conteúdo só é feita para valer após a publicação – isso acelera o processo de publicação. Qualquer pessoa pode opinar sobre trabalhos já divulgados, mas comentários feitos por especialistas no tema do artigo são reconhecidos como mais relevantes.
As práticas flexíveis da Cureus no processo de revisão por pares já expuseram várias vezes a publicação a autores mal-intencionados. Em 2022, a revista chegou a adotar uma estratégia inusitada para punir pesquisadores cujos artigos foram alvo de retratação por má conduta científica. Lançou em seu website um “Muro da Vergonha”, com os nomes, afiliações e fotografias de autores de papers da publicação invalidados por plágio, fraude na revisão por pares, roubo de dados e manipulação de imagens (ver Pesquisa FAPESP nº 316). Sob críticas, o periódico acabou suspendendo a divulgação da lista.
Desde 2022, quando foi adquirida pela Springer Nature, a revista já anunciou a retratação de 125 artigos, 77 dos quais por problemas relacionados com os autores, como autoria falsa, não verificada ou alterada. Recentemente, seus artigos deixaram de ser indexados na base de dados Web of Science, da empresa Clarivate, que detectou uma vulnerabilidade no processo de revisão por pares: empresas cadastradas no site da Cureus tinham a possibilidade de indicar nomes de pesquisadores para atuar como editores de um artigo, gerenciando seu conteúdo da submissão à publicação. A iniciativa abria um flanco para serviços desonestos eventualmente controlarem a publicação de papers.
A metacientista australiana Hilda Bastian, que trabalhou nos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, criticou a mudança no processo de revisão de artigos da Cureus. “Apresentar isso como um passo para ‘empoderar’ os autores a obter feedback de mentores e colegas é um argumento estranho. Um pesquisador não precisa de um periódico para receber conselhos de seus mentores e colegas”, disse ao site Retraction Watch.
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