Durante décadas a aterosclerose era definida como o acúmulo gradativo de gorduras nas paredes das artérias. Um tipo de gordura, a lipoproteína de baixa densidade (LDL), ganhou fama como colesterol ruim e responsável por esse mecanismo que pode levar a infartos e doenças cardiovasculares, a principal causa de morte no mundo. Nos últimos anos as explicações ganharam refinamentos e a aterosclerose começou a ser vista como um processo inflamatório crônico, que alimenta e é alimentado pela deposição de gorduras nas paredes das artérias. Essa abordagem frutifica agora no Brasil na forma de três novas possibilidades de tratamento que apresentaram resultados positivos nos testes preliminares realizados em animais.
A que se encontra mais avançada foi desenvolvida no Instituto do Coração (InCor), ligado à Universidade de São Paulo (USP), e consiste de medicamentos antitumorais que devem funcionar também contra processos inflamatórios, podendo começar a ser testada em seres humanos ainda este ano. Outro tratamento experimental, nessa mesma abordagem – a aterosclerose vista como inflamação –, emerge de pesquisas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que mostraram resultados promissores a ponto de atrair uma empresa farmacêutica nacional, interessada em participar dos testes, cercados por sigilo contratual. A terceira possibilidade, também do InCor, adota o pressuposto de que a aterosclerose poderia ser gerada ou agravada por grupos de microrganismos, com a participação das arqueas, representantes das primeiras linhagens de microrganismos a surgir na Terra. Essa perspectiva embasou o uso experimental de uma enzima do protozoário Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, para eliminar bactérias e arqueas encontradas nas placas de gordura que bloqueiam a circulação do sangue.
À medida que amadurecerem, essas alternativas poderão complementar o tratamento atualmente mais adotado, à base de medicamentos conhecidos como estatinas, que reduzem a quantidade de colesterol e podem ter um efeito extra, ajudando a controlar inflamações, de acordo com estudos recentes. Novos tratamentos poderão também deter o impacto da aterosclerose, que pode levar a doenças cardiovasculares, a primeira causa de mortes no mundo, principalmente quando associada à hipertensão arterial e ao tabagismo. As placas de gordura com células sanguíneas mortas que se depositam lentamente nas paredes das artérias podem obstruir a passagem do sangue que distribui oxigênio às células de todo o corpo. Chamadas de ateromas, essas placas podem prejudicar o funcionamento de órgãos vitais, como o coração, causando infarto, ou o cérebro, provocando um acidente vascular cerebral (AVC), também conhecido como derrame. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), as doenças cardiovasculares matam todo ano cerca de 15 milhões de pessoas, o equivalente a 30% do total. Só no Brasil cerca de 350 mil pessoas todo ano sofrem infarto agudo do miocárdio, o mais grave dos problemas do coração.
“Faltam medicamentos novos contra aterosclerose”, comenta o médico endocrinologista Raul Maranhão, pesquisador do InCor e professor das faculdades de Medicina e Ciências Farmacêuticas da USP. A possibilidade de tratamento a que ele chegou concilia as esferas artificiais de lipídios (gordura) com 20 a 60 nanômetros de diâmetro que ele começou a desenvolver há 15 anos com medicamentos usados contra câncer que devem servir também para conter a proliferação de células de defesa nas paredes inflamadas das artérias. Chamadas de LDE, sigla de emulsão rica em colesterol, essas esferas simulam o LDL, produzido naturalmente pelo organismo. Depois de verificar que essas partículas de gordura artificial paravam nos locais onde havia células em proliferação acelerada, como tumores e tecidos inflamados, Maranhão colocou nas esferas de gordura um fármaco que detém a multiplicação celular, o paclitaxel, usado habitualmente contra câncer. Em seguida as injetou em coelhos, que durante dois meses comeram à vontade alimentos ricos em gordura. De acordo com o artigo publicado em abril de 2008 no ano passado na revistaAtherosclerosis, a esfera com o fármaco reduziu em 60% as lesões nas artérias, geradas por versões alteradas de colesterol, mesmo que os coelhos apresentassem uma concentração de colesterol no sangue 200 vezes acima do normal. A partícula reduziu também a migração de células de defesa que intensificam o processo inflamatório, conhecidas como macrófagos, para as paredes das artérias.
“Consegui a chave para entrar na célula”, comenta Maranhão. Para avaliar se as esferas de colesterol artificial seguiam realmente para os locais de intensa multiplicação celular, ele adicionou a elas um elemento químico radioativo chamado tecnécio e as injetou em pessoas. Como esperado, os tumores absorviam mais colesterol que as células normais, em uma proporção até duas vezes maior. Em 2002 o pesquisador fez os primeiros testes de segurança em 46 pessoas usando as esferas com antitumorais. Segundo ele, em razão da afinidade das células em crescimento acelerado com gordura, de que necessitam intensamente, o fármaco envolto pela cápsula de gordura tornava-se de cinco a oito vezes menos tóxico que o fármaco isolado. Os testes feitos em cerca de cem indivíduos indicaram que se tratava de um procedimento seguro e os feitos em coelhos reforçaram sua argumentação para propor o uso das esferas com um medicamento utilizado normalmente contra câncer para tratar também aterosclerose.
Maranhão comenta calmamente em sua sala de trabalho no InCor que um tratamento que começou a ser avaliado contra câncer pode agora ser testado contra aterosclerose porque as duas doenças são igualmente caracterizadas pela intensa proliferação de células. Essa aproximação entre duas enfermidades apoia-se em uma linha de pesquisa aberta com um artigo publicado em janeiro de 1999 na revista New England Journal of Medicine pelo médico patologista Russell Ross, professor da Universidade de Washington, Estados Unidos. “A aterosclerose é uma doença inflamatória”, afirmava Ross, único autor desse trabalho. Em seguida ele argumentava: “Por causa das altas concentrações do LDL, visto como um dos principais fatores de risco para a aterosclerose, o processo de aterogênese [formação das placas de gordura] tem sido considerado como resultado do acúmulo de lipídios na parede das artérias; porém é muito mais que isso”. Ross mostrou que a elevação dos níveis de lipídios e de lipoproteínas alteradas, além de outras moléculas do sangue como a homocisteína, infecções e hipertensão, pode induzir ou promover inflamações associadas à aterosclerose. “Esse trabalho mudou a visão sobre a aterosclerose, hoje considerada como uma inflamação crônica”, comenta Maranhão.
Ross morreu dois meses depois, aos 69 anos, sem ver que seu trabalho motivou também as equipes de pesquisa da indústria farmacêutica a buscarem novos medicamentos contra aterosclerose. Uma das empresas que entraram nessa corrida, a norte-americana AtheroGenics, anunciou em março de 2008 o início da etapa final dos testes clínicos de seu principal candidato a medicamento, o AGI-1067, que pode ajudar a deter o acúmulo de açúcares e gorduras; por essa razão é que esse composto deve também ser testado contra diabetes a partir deste ano. As pesquisas conduzidas por empresas correm normalmente sem alarde, mesmo quando os trabalhos contam com a participação de universidades.
Esse é também o caso, no Brasil, de um composto com uso potencial contra doenças inflamatórias, como aterosclerose e artrite, que emergiu há seis anos da pesquisa de doutorado de Silvana Rocco na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Sintetizado no Instituto de Química da Unicamp, esse composto atua sobre um grupo específico de enzimas que participam do processo inflamatório. Testes preliminares atestaram seu potencial terapêutico e atraíram uma indústria farmacêutica nacional, que deve participar das avaliações finais do composto, conduzidas sob sigilo contratual. Segundo o médico Kleber Franchini, que coordena a equipe da Unicamp, a empresa é que está custeando as solicitações de patente do composto em outros países e deve também financiar os testes em seres humanos, que podem começar ainda este ano ou no próximo.
A terceira possibilidade de tratamento remete a origens mais profundas da aterosclerose. O problema começa quando uma molécula de colesterol se infiltra nas paredes das artérias e sofre uma reação química – uma oxidação – que atrai os macrófagos, um tipo de células de defesa. Os macrófagos engolfam o colesterol oxidado e formam as chamadas células espumosas, que atraem mais lipídios. Forma-se assim um corpo estranho dentro do organismo que outras células de defesa tentarão desfazer, por meio de processos inflamatórios que inflam as paredes das veias e artérias e bloqueiam a passagem do sangue. A gordura pode também começar a se acumular como resultado de lesões físicas nas paredes dos vasos sanguíneos.
A médica patologista Maria de Lourdes Higuchi, pesquisadora do InCor e professora da Faculdade de Medicina da USP, apresenta outra possibilidade: para ela, a inflamação associada à aterosclerose pode ser gerada por grupos de microrganismos com a participação das arqueas. Ela utilizou essa hipótese, ainda não inteiramente demonstrada, para desenvolver um tratamento experimental, a partir de uma enzima do protozoário Trypanosoma cruzi.
A hipótese de associações de microrganismos originando a aterosclerose emergia quando Maria de Lourdes procurava entender por que uma mesma pessoa pode ter dois tipos de placas de aterosclerose nas paredes das artérias. Um tipo de placa cresce, se rompe e libera blocos de gordura que fecham os vasos sanguíneos e causam infarto, enquanto outro tipo consiste essencialmente de placas estáveis, com menos gordura e mais fibras, que não se rompem. Examinando fragmentos de 13 artérias coronárias com placas que se rompem, Maria de Lourdes detectou, por meio de análises de genoma, microrganismos do grupo das arqueas vivendo entre bactérias – principalmente Chlamydophila pneumoniae e Mycoplasma pneumoniae, que têm esse nome porque podem causar pneumonia. Outros pesquisadores já haviam encontrado Chlamydophila e Mycoplasma nas placas de gordura, mas não era claro que papel poderiam ter. Maria de Lourdes acredita que esses microrganismos, uma vez associados, podem causar a inflamação ao interagir com a gordura por meio de uma reação química conhecida como oxidação, que leva ao maior acúmulo de gordura.
Resistentes a ponto de sobreviverem em condições ambientais extremas como águas oceânicas muito ácidas ou em meio à lava de vulcões, as arqueas ainda não haviam sido associadas a doenças em pessoas. No entanto, segundo Maria de Lourdes, elas podem produzir enzimas que anulam as ações das células de defesa. Desse modo, diz ela, “as arqueas conseguem sobreviver e também permitem a sobrevivência e a multiplicação de bactérias que estejam ao redor”. As outras também poderiam contribuir com o bem-estar do grupo, formando um consórcio de bactérias: as Chlamydophila pneumoniae inibindo a morte programada das células hospedeiras e as Mycoplasma pneumoniae, por mecanismos próprios, também driblando as defesas do organismo.
O raciocínio que ela e sua equipe do InCor apresentaram em 2006 na revista científica brasileira Clinics ajudava a explicar outras coisas. Maria de Lourdes acredita que uma das enzimas produzidas pelas arqueas, a superóxido dismutase, pode ser a responsável pelo rompimento da camada externa de colágeno da placa, liberando blocos de gorduras que podem entupir artérias, como as que irrigam o coração, e provocar infarto. Tornavam-se um pouco mais claras as razões da movimentação de células de defesa para o tecido inflamado e da baixa eficácia de antibióticos para reduzir a incidência de infartos de pessoas com aterosclerose. “Os antibióticos não eliminam as arqueas”, observa Maria de Lourdes.
A partir dessas evidências ela criou uma saída inusitada para acabar com o clube dos micróbios. Inusitada porque implica a utilização de uma enzima chamada transialidase, produzida pelo protozoário Trypanosoma cruzi. Maria de Lourdes verificou que as artérias das pessoas que morreram de doença de Chagas normalmente não apresentam ateromas. Depois de constatar que os micoplasmas aderem em regiões da parede arterial ricas em ácido siálico, o mesmo que essa enzima transfere para o protozoário, ela preparou uma solução com a enzima e outros compostos capazes de inibir também a ação das arqueas e a injetou em coelhos que haviam recebido uma alimentação rica em gordura.
“A transialidase reduziu o número de placas de gorduras e, com outros compostos, normalizou os níveis de colesterol no sangue”, diz. Segundo ela, os resultados, detalhados em 2004 na revista Medical Hypotheses, abrem a possibilidade de usar essa estratégia também em outras doenças. “Muitas células tumorais parecem ricas em arqueas e micoplasmas”, comenta Maria de Lourdes. Outros especialistas observam o trabalho dela com expectativa. “Causas novas não excluem as antigas”, comenta Maranhão.
Quem descobre novas possibilidades de tratamento enfrenta dois desafios: convencer os exigentes colegas de que chegaram a algo relevante e produzir os compostos que, eles acreditam, resolverão muitos problemas. Maranhão passou anos em busca de empresas que pudessem produzir as esferas artificiais de gordura capazes de levar medicamentos contra tumores e inflamações. Diante de acordos infrutíferos, ele concluiu que ele próprio teria de ampliar a escala de produção.
Maranhão trabalhou dois anos com sua equipe para sair do método artesanal de produção para o atual – um compressor que em meia hora produz 50 doses da solução com as esferas já com os fármacos. É o bastante para realizar com relativa folga uma avaliação da eficácia de sua abordagem em 40 pessoas, desde que seus planos sejam aprovados pelas comissões do InCor. Franchini teve mais sorte e há quatro anos, ao sair em busca de parceiros, encontrou colegas e empresas dispostos a ajudar. “Aprendemos o caminho”, diz ele. “Hoje temos aqui na Unicamp um pessoal que faz pesquisa e está atento também ao desenvolvimento de fármacos. Começamos a ver que podemos fazer outras coisas novas.” Maria de Lourdes, por sua vez, ainda procura interessados.
Mesmo que em alguns anos surjam novos anti-inflamatórios capazes de deter a aterosclerose, as estatinas devem continuar a ser usadas. Uma das razões é que as estatinas, além de reduzir os níveis de colesterol, podem diminuir a quantidade da proteína C reativa, associada a inflamações, de acordo com estudo com quase 18 mil pessoas (homens com pelo menos 50 anos e mulheres com pelo menos 60 e níveis normais de colesterol), patrocinado por uma empresa que produz estatinas, a AstraZeneca, e divulgado no ano passado. Altos níveis de colesterol continuam a ser o principal fator de risco para a aterosclerose, mas outros indicadores começam a ganhar atenção. “Níveis elevados de homocisteína no sangue estão ligados à aterosclerose”, diz Franchini, “mas não sabemos se é causa ou consequência”.
Os projetos
1. Nanopartículas lipídicas: aplicações no estudo da fisiopatologia, diagnóstico e terapêutica das doenças degenerativas (nº 06/58917-3); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Raul Cavalcante Maranhão – InCor; Investimento R$ 1.401.712,38
2. Patogênese da hipertrofia e insuficiência cardíaca: mecanismos ativados por estímulo mecânico (nº 06/54878-3); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Kleber Gomes Franchini – Unicamp; Investimento R$ 996.638,13
3. Estudo biomolecular de produtos de Chlamydia pneumoniae e Mycoplasma pneumoniae na progressão das valvopatias crônicas humanas (nº 07/04067-1); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenadora Maria de Lourdes Higuchi – InCor; Investimento R$ 100.882,40