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Pesquisa na quarentena

“Foi uma honra sermos os primeiros usuários externos do Sirius”

Os biólogos Aline Nakamura e Andre Godoy elucidaram a estrutura de proteínas do vírus Sars-CoV-2

Aline Nakamura e Andre Godoy inserem amostras em equipamento da linha Manacá

Divulgação CNPEM

[Andre Godoy] Trabalhamos no CIBFar [Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos], um Cepid da FAPESP que tradicionalmente lida com doenças negligenciadas, dentro do campus São Carlos da Universidade de São Paulo [USP]. Em 2016, o físico Glaucius Oliva retomou as atividades acadêmicas depois de um período como presidente do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] e eu estava terminando o doutorado no laboratório do físico Igor Polikarpov. Começava a epidemia do vírus zika, que hoje parece um problema pequeno em comparação ao que vivemos hoje. 

As áreas em que Glaucius trabalhava antes tinham sido redistribuídas e ele queria começar algo novo. Então submeteu um projeto à chamada emergencial da FAPESP para lidar com a febre zika, que incluiu minha bolsa de pós-doutorado. No final daquele ano começamos a trabalhar com vírus pela primeira vez no laboratório. Em dois anos montamos a estrutura com alunos, criamos formas de fazer testes de compostos e ensaios celulares para zika. 

Em 2020 aconteceu a mesma coisa, em outra ordem de grandeza: a epidemia do Sars-CoV-2. Já tínhamos alguma expertise em vírus e estávamos prontos para agir. Novamente a FAPESP aportou recursos para projetos nessa área, que no nosso caso incluiu a bolsa de pós-doutorado da Aline.

[Aline Nakamura] Eu estava com a defesa de doutorado prevista para maio, também no laboratório de Polikarpov. Meu trabalho era mais voltado para enzimas com uso em biotecnologia, nunca tinha trabalhado com vírus. 

Eu pensava fazer uma transição para o mercado de trabalho em biotecnologia e estava vendo os caminhos, fazendo contatos. Tinha conversado com Glaucius sobre um possível pós-doutorado. Quando surgiu a oportunidade do projeto, em fevereiro, ele me convidou.

Precisei correr para escrever o projeto e entrar no mundo dos vírus. Fiquei uma semana em casa no início da pandemia, depois voltei a trabalhar com o Andre. Depositei minha tese e a defendi no começo de maio. Foi uma defesa triste, remota, eu sozinha. Moro apenas com dois gatos, Kuri e Kabu.

[AG] As coisas avançaram bastante rápido. No final de março a USP fechou e todos os estudantes, técnicos e pesquisadores pararam de vir. Mas o microbiologista Edison Durigon, da USP, tinha isolado o vírus e nos cedeu uma amostra para começarmos nossa pesquisa. Acho que fiquei só um dia fechado em casa, onde vivo com minha noiva – também cientista –, um cachorro e três gatos. Como já tinha mais experiência, comecei e, quando vi que estava tudo dando certo, a Aline veio também. Começamos a clonar e rapidamente obtivemos amostras, mesmo sem ter trabalhado com vírus respiratórios antes.

Desde então temos vindo ao laboratório todos os dias, mesmo aos sábados e domingos. Depois de alguns meses outros alunos retomaram as atividades. Agora estamos em uma rotina normal, na medida do possível. Trabalhamos em um sistema de confiança de que cada um vai se cuidar, fazendo turnos em dois grupos. 

O laboratório Sirius, localizado em Campinas, é um acelerador de partículas com várias linhas de luz. São estações operacionais para aplicações diversas: tomografia, cristalografia, espalhamento de raios moles, várias técnicas físicas. Nós usamos principalmente a linha Manacá, de cristalografia de raios X, que foi a primeira a ter um experimento externo realizado. É a principal técnica para elucidar a estrutura de moléculas – tanto as pequenas quanto as macromoléculas, principalmente proteínas e ácidos nucleicos.

Nós trabalhamos com macromoléculas: proteínas das quais tentamos obter cristais. É uma forma de imobilizar as moléculas no espaço, diferente de trabalhar com proteínas em solução, onde as moléculas ficam em movimento aleatório. Na linha Manacá, o cristal é exposto à radiação e espalha a luz para um detector. Medido, o espalhamento indica a posição de cada átomo. Com base nesse padrão e a ajuda de modelos matemáticos, conseguimos construir a estrutura da proteína. Isso serve para entender o funcionamento das proteínas nos organismos e também na descoberta de medicamentos. 

No caso de doenças infecciosas, o objetivo é entender como as moléculas dos patógenos funcionam e, se possível, bloquear essas funções. É o que procuramos fazer para o vírus zika e pretendemos fazer para o Sars-CoV-2. 

Aline Nakamura / USP Cristais de proteínas no microscópio, antes de irem para a linha de luzAline Nakamura / USP

Para a Covid-19, ouve-se falar em reposicionamento, quando uma molécula já comercializada é aplicada a uma doença nova. É um método mais barato, porque pelo menos se sabe que a substância é segura. Mas não há garantia de que funcione, especialmente para doenças virais. Outra estratégia é construir moléculas antivirais do começo. Demora, porque é preciso entender como essa molécula se liga e onde, quais são os pontos que causam resistência ao fármaco, por serem áreas mutáveis. Estamos nas fases iniciais do desenvolvimento dessa molécula. Já temos resultados estruturais, o que é um enorme avanço, e muito rápido – em alguns meses.

[AN] Em julho a física Ana Zeri, coordenadora da Manacá, entrou em contato com o laboratório e propôs fazermos uso da linha. Já tínhamos experimentos, proteínas cristalizadas. Trabalhamos também com outros aceleradores de partículas do tipo síncrotron e tínhamos mandado amostras para o Diamond, na Inglaterra, e para o Max IV, na Suécia, então já tínhamos um ponto de partida. Nos mobilizamos para produzir um grande número de cristais e congelar, para fazer a viagem a Campinas.

Havia uma limitação de apenas duas pessoas, por causa da pandemia. Por isso fomos apenas eu e Andre, mas imprimimos retratos dos estudantes de mestrado Victor Oliveira e de doutorado Gabriela Noske, que trabalharam incansavelmente para produzir os cristais, para tirar uma foto em frente ao Sirius com a equipe completa. Em novembro tivemos outra oportunidade e fui com a Gabi fazer outro experimento. 

[AG] Foi uma honra sermos os primeiros usuários externos do Sirius. Fomos chamados por estarmos trabalhando com coronavírus, eles precisavam desse tipo de pesquisa para mostrar à sociedade resultados para um problema que afeta a todos. Pudemos nos dedicar a isso graças à estrutura do CIBFar, construída ao longo da última década e bastante singular no Brasil.

Para entrar no CNPEM [Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais] a segurança é rígida: aferimento de temperatura, o nome precisa estar em uma lista das pessoas que têm motivo para estar lá. Isso vale também para os funcionários locais. Dentro do Sirius é preciso usar máscara. Eles ainda estão em obras, então também estão lá os construtores e engenheiros. 

Somos usuários de síncrotrons há pelo menos uma década no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa. Uma tradição é aproveitar ao máximo o turno concedido, então ficamos 24 horas seguidas – ou até mais tempo – dormindo no sofá e vivendo de café. Mas uma das medidas de segurança estabelecidas no Sirius era fechar às 19h, tanto pela pandemia quanto pela maneira como estão operando, que é de comissionamento [finalizando a montagem]. Tínhamos quatro dias para trabalhar, então dormíamos em um hotel próximo, onde ninguém mais estava. Foi o que achamos mais seguro.

Os síncrotrons são divididos em gerações, conforme a tecnologia instalada. Os de primeira geração, mais voltados para física teórica e de partículas, não eram feitos para experimentos em linhas de luz. Depois vieram os de segunda geração, com uso de linhas de luz, e as ciências de materiais tomaram conta. Nosso síncrotron antigo, o UVX, se caracteriza como de segunda geração por seu equipamento. Outros síncrotrons no mundo, como o de Grenoble, na França, o Diamond, ou o da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, têm uma tecnologia muito mais avançada em como concentram os feixes de luz, e são considerados de terceira geração. Isso permite experimentos muito mais elaborados. O Sirius é um equipamento isolado no mundo, equiparado apenas ao Max IV. São síncrotrons de quarta geração, a física e a engenharia por trás deles são fascinantes.

Os dados são melhores, mais confiáveis, o fluxo – a quantidade de fótons por área, como se fosse a água em um cano – é ordens de grandeza maior. Esses fótons incidem em uma área muito menor – 10 mícrons quadrados, enquanto em outros pode ser 100 ou 200 mícrons quadrados –, é uma melhora em todas as áreas da óptica. 

A linha Manacá ainda está em fase de comissionamento. Ela ainda usa peças antigas que eram da linha equivalente na UVX, que não acompanham o ganho que traz o fluxo. Eles estão desenvolvendo o novo detector em uma startup que vai fornecer os detectores de várias linhas. Mesmo assim estão operando, o que é fantástico.

As linhas de luz obviamente apresentam algum grau de risco, porque têm radiação ionizante. Por isso existe um procedimento de segurança trabalhoso. A cabana experimental é cimentada com concreto e tem porta de chumbo. Para abrir e depositar a amostra, é um procedimento lento. Existe um protocolo operacional tanto para abrir quanto para fechar, que leva cerca de cinco minutos. O normal é fazer esse protocolo uma vez e deixar as amostras dentro, com um braço robótico trocando uma amostra por outra. Mas ainda não temos o braço robótico operando. Levamos cerca de 150 amostras e precisamos fechar e abrir a cabana a cada uma delas. A coleta em si leva entre um e três minutos. No Diamond, onde tudo é automatizado, esse trabalho levaria sete horas, com dez segundos para cada troca de amostra. Nós precisamos de quatro dias, mas ficamos satisfeitos com o ritmo. Os pesquisadores do Sirius achavam que seria possível coletar 30 amostras por dia e conseguimos 70. Não sei se recomendo, mas é possível. Acho que vamos deter esse recorde por alguns anos.

[AN] Uma das minhas maiores tristezas, quando pensava em sair da academia, era não entrar no Sirius como usuária. Aquele lugar é tão fascinante, eu moraria lá dentro. Nunca imaginava ser a primeira usuária. Não me importei em levantar 300 mil vezes, porque isso me deu a oportunidade de trabalhar lá. Continuaria sendo uma honra se só tivéssemos enviado as amostras e analisado os dados remotamente, mas estar dentro foi muito importante.

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