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Microbiologia

Força que vem da união

Físicos e biólogos investigam como as bactérias Xylella fastidiosa se agregam em um biofilme

Filamentos de EPS se projetam a partir de biofilme em imagens colorizadas obtidas em microscópio de fluorescência

richard janissen/universidade delft de tecnologiaFilamentos de EPS se projetam a partir de biofilme em imagens colorizadas obtidas em microscópio de fluorescênciarichard janissen/universidade delft de tecnologia

“O que são essas células compridas?”, perguntou a física Mônica Cotta, mostrando imagens da bactéria Xylella fastidiosa produzidas nos potentes microscópios do Instituto Nacional de Fotônica Aplicada à Biologia Molecular (Infabic), na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A pergunta evocou uma memória quase esquecida nos estudos pretéritos da bióloga Alessandra de Souza, pesquisadora do Centro de Citricultura Sylvio Moreira do Instituto Agronômico de Campinas (IAC). Quando estão numa situação de estresse, bactérias diversas suprimem a produção da proteína que as separa em duas depois da replicação. É a filamentação, que agora parece ser uma propriedade fundamental da formação do biofilme que torna temível esse microrganismo: o agregado bacteriano ocupa e bloqueia o xilema (vasos que conduzem água e outras substâncias da raiz para todas as partes da planta), causando sérios danos ao desenvolvimento das plantas e à produção de frutos. O grupo descreveu a formação do biofilme em artigo publicado em abril na Scientific Reports e continua em busca de formas de derrotar esses velhos inimigos dos citricultores brasileiros e dos cultivadores norte-americanos de uvas, e invasores recentes de olivais italianos. As chances de sucesso podem residir, ao menos em parte, na parceria interdisciplinar. Para o físico Carlos Lenz Cesar, vice-coordenador do Infabic, o trunfo do instituto é reunir pesquisadores com especialidades distintas. “Cada um deve se aprofundar na sua área e contribuir para o conjunto por meio da colaboração”, afirma.

Quando Mônica começou a analisar a Xylella em seu microscópio de fluorescência, não obtinha boas imagens porque o brilho emitido pelas bactérias – do qual o aparelho depende – era muito fraco. Melhorou com a sugestão de Alessandra de inserir nas bactérias a proteína verde fluorescente (GFP, na sigla em inglês), que se tornou o marcador de maior sucesso em estudos biológicos por emitir um brilho muito mais forte. Ainda assim, o equipamento não permitia estudar os organismos vivos e faltava interpretar os pequenos círculos verdes, também observados no microscópio de força atômica do grupo da física. A pista fundamental veio do olhar treinado da pesquisadora em usar microscopia para estudar materiais. “A bactéria só pode ter uma simetria assim se estiver ‘em pé’, ou seja, na vertical”, imaginou (ver imagem). O que via deveria ser a extremidade do organismo visto de cima. E foi atrás de outros tipos de microscopia.

O microscópio confocal do Infabic, capaz de gerar imagens tridimensionais, era uma promessa, mas as bactérias vivas ainda apareciam como borrões. A solução surgiu quando chegou o microscópio confocal com detecção via spinning disk, que tem um disco que gira em alta velocidade, repleto de furinhos equipados com lentes pelos quais passam feixes de laser que varrem a amostra. “Podíamos produzir imagens tridimensionais em alguns segundos, em vez de vários minutos no confocal tradicional”, conta a física. Seu grupo – especificamente o biólogo alemão Richard Janissen, à época no laboratório para um estágio de pós-doutorado e agora na Universidade Delft de Tecnologia, na Holanda, e o doutorando colombiano Duber Murillo, físico – começou a examinar placas de cultura de Xylella ao longo de todo o ciclo de vida, e assim desvendou uma parte importante do comportamento da bactéria. A interpretação inicial de Mônica estava correta. “As bactérias ficam ‘em pé’ e giram sobre a ponta em contato com a superfície”, explica, mostrando uma oscilação como o de um joão-bobo. As imagens eram borradas por causa do movimento. “Nesse microscópio conseguimos produzir 100 quadros por segundo em três dimensões”, conta Lenz. “Pegamos a bactéria no pulo, como se um helicóptero voando aparecesse na foto com as pás paradas.”

richard janissen/universidade delft de tecnologiaA fluorescência, assim como assinaturas químicas detectadas no microscópio Raman confocal da Universidade de São Paulo (USP), mostrou que no início do processo de colonização as bactérias secretam algo que se acumula numa das pontas. Conhecidas genericamente como substâncias poliméricas extracelulares (EPS), essas secreções têm propriedades distintas conforme o estágio de desenvolvimento do biofilme. Num primeiro momento, as EPS solúveis ancoram a bactéria no substrato (no caso, a placa de vidro) de maneira reversível. Ao microscópio, depois de lavar a amostra, vê-se uma estrutura em formato de vulcão, onde a bactéria estava encaixada. Em seguida o organismo passa a produzir EPS capsular, que torna esse encaixe irreversível e atrai as companheiras, formando aglomerados. Assim nasce o biofilme de Xylella, no qual as bactérias vão ficando imersas numa goma de EPS.

Foi nas imagens sequenciais da formação do biofilme que Janissen avistou as bactérias compridas entre aglomerados de bactérias vizinhos, depois explicadas como filamentação. “Os aglomerados provavelmente produzem uma sinalização química e algumas bactérias da borda começam a se replicar sem dividir-se”, explica Mônica. O resultado são bactérias alongadas que secretam EPS, atraem companheiras e aceleram a formação da comunidade coesa. Segundo a física, é a primeira vez que se descreve esse processo, conhecido como filamentação, em biofilmes bacterianos. Ela descobriu o que parece ser o mesmo fenômeno no material suplementar de um artigo sobre a bactéria do cólera, publicado em 2012 na revista Science por um grupo norte-americano. “Vi um vídeo no qual, de repente, apareciam os filamentos; mas os autores não mencionam nada”, conta Mônica. Não basta a informação estar visível: é preciso que alguém a enxergue.

Outro aspecto do ciclo de vida da bactéria apareceu graças ao microscópio confocal, que permite girar virtualmente a amostra e analisá-la por baixo, onde o biofilme se ancora na placa de Petri. O biofilme fica preso por apenas alguns pontos, aquelas bactérias iniciais que se fixaram no substrato por uma de suas extremidades. Essa estrutura pode facilitar a transmissão da doença pelo inseto vetor responsável pela transmissão da doença. “Fica fácil para a cigarrinha arrancar um pedaço do biofilme quando suga a seiva da planta infectada”, imagina Mônica, de maneira ainda especulativa. Falta verificar se é o que acontece; por enquanto é uma dessas pistas que a compreensão física pode fornecer aos biólogos. “O que temos não contradiz o que a Xylella precisa ter in vivo.”

Na prática
Murillo agora tenta determinar quais componentes são necessários no meio de cultura para a adesão das bactérias. É um processo exploratório, em que o físico vai retirando componente por componente e depois volta a acrescentar, enquanto observa a reação das culturas de Xylella. Brincando, Mônica qualifica essa parte do trabalho como “de biólogo”. A ideia é construir um modelo de adesão que permita dar um tratamento mais experimental ao problema e buscar, por exemplo, impedir a formação do biofilme.

Perpendiculares ao substrato, bactérias secretam substância aderente (EPS)

Richard janissen/Universidade delft de tecnologia Perpendiculares ao substrato, bactérias secretam substância aderente (EPS)Richard janissen/Universidade delft de tecnologia

Um dos objetivos é entender como a substância N-acetilcisteína (NAC) impede que Xylella fastidiosa cause danos severos às plantas, como o grupo de Alessandra mostrou em 2013 (ver Pesquisa FAPESP nº 214). Por enquanto, Mônica desconfia que a NAC, presente em xaropes expectorantes, atue nas EPS solúveis, impedindo que a adesão se torne irreversível. Foi nesse momento inicial da formação do biofilme que o físico indiano Prasana Sahoo, no laboratório da Unicamp para um estágio de pós-doutorado, acrescentou NAC à amostra que observava ao microscópio confocal e viu bactérias se soltarem do substrato.

A observação foi um produto lateral da pesquisa de Sahoo. Ele põe bactérias numa superfície repleta de nanofios espetados, com aparência de uma cama de pregos em miniatura. As EPS formam uma teia que verga os fios, que por sua vez registram a força exercida pelo biofilme.

De acordo com Mônica, esses avanços foram possíveis pela combinação de diferentes equipamentos e técnicas de microscopia que estão aos poucos permitindo reunir as peças do quebra-cabeça. Nada novo para a física dos materiais. “Apenas transferimos o raciocínio para a microbiologia”, diz.

Causadora de graves prejuízos à produção brasileira de laranjas, a Xylella fastidiosa recentemente chegou ao sul da Itália e tem aterrorizado a região da Apúlia, onde oliveiras centenárias (e até milenares) são patrimônio nacional. Em 2013, o virologista vegetal Donato Boscia, do Conselho Nacional de Pesquisa italiano em Bari, avistou oliveiras secas num pomar e saiu em busca da causa. Depois de consultar colegas na Itália e outros países, chegou à Xylella fastidiosa. No início de 2014, uma pesquisadora do grupo veio a Cordeirópolis, interior paulista, para aprender a isolar a bactéria com o engenheiro agrônomo Helvécio Della Coletta-Filho, responsável pela clínica fitopatológica do Centro de Citricultura. No retorno à Itália, ela rapidamente conseguiu. “Nunca vi um grupo avançar tanto em pesquisa em tão pouco tempo”, conta Alessandra.

A comparação genética entre amostras de Xylella de diferentes partes do mundo indica que a bactéria dos olivais deve ter chegado à Europa de carona em plantas ornamentais (espirradeiras) oriundas da Costa Rica. A relação cultural dos italianos com as oliveiras torna a invasão bacteriana um problema social, além de econômico. “Algumas pessoas chegaram a responsabilizar os próprios pesquisadores que descobriram a doença”, conta Alessandra, que em outubro do ano passado foi a Bari apresentar seu trabalho com NAC. Segundo ela, o grupo europeu já começou a investigar o efeito da substância, com resultados promissores. “A NAC é absorvida pelas plantas, mas ainda é preciso ver se reduz a infecção.”

Na Apúlia, Alessandra e Coletta-Filho viram pomares secos e conversaram com habitantes locais angustiados com a perda das oliveiras. Enquanto não existe um composto eficaz para combater a doença, um cinturão de proteção com pulverização intensiva busca impedir que cigarrinhas portadoras da bactéria avancem para o norte, onde está a produção mais importante de azeite.

Projeto
Análise estrutural e química de biofilmes de Xylella fastidiosa (nº 2010/51748-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Mônica Alonso Cotta (Unicamp); Investimento R$ 187.406,00 (FAPESP).

Artigo científico
JANISSEN, R. et al. Spatiotemporal distribution of different extracellular polymeric substances and filamentation mediate Xylella fastidiosa adhesion and biofilm formation. Scientific Reports. v. 5, n. 9856. 20 abr. 2015.

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