Imprimir Republicar

Astrofísica

Formação de anéis e disco de matéria ao redor de asteroide é observada quase em tempo real

Estudo coordenado por brasileiros flagra processo evolutivo do centauro Quíron, pequeno objeto do Sistema Solar

Ilustração do centauro Quíron com seu sistema de quatro anéis e um disco de matéria

UTFPR / Alexandre Crispim

Até 12 anos atrás, os astrofísicos conheciam anéis em torno de apenas quatro objetos do Sistema Solar, os planetas gigantes gasosos Júpiter, Saturno, Urano e Netuno. Em março de 2014, esse tipo de estrutura foi descoberto, pela primeira vez, em torno de um corpo que não era um planeta. Um par de anéis foi identificado ao redor do centauro Chariklo, objeto rochoso entre Júpiter e Netuno com aproximadamente 250 quilômetros (km) de diâmetro. Desde então, aros formados por uma mistura de água congelada, poeira e detritos sólidos foram confirmados em mais três corpos menores de nosso sistema: nos planetas anões Haumea e Quaoar, respectivamente em 2017 e 2023, que ficam no cinturão de Kuiper, área que se inicia depois de Netuno e é formada por milhões de corpos gelados de tamanhos variados; e em outro centauro, Quíron, no final de 2025, que se encontra na mesma região de Chariklo.

Astrofísicos brasileiros têm sido protagonistas em estudos que localizaram anéis ao redor desses quatro objetos. Foram os autores principais de trabalhos sobre Chariklo, Quaoar e, mais recentemente, Quíron. Este último astro reservou uma surpresa extra, uma configuração única em relação à dos outros três objetos. Segundo artigo publicado em outubro do ano passado no periódico Astrophysical Journal Letters, o sistema de anéis ao redor de Quíron, um centauro com aproximadamente 200 km de diâmetro, foi flagrado em meio a seu processo evolutivo. Ou seja, antes de sua arquitetura anelar estar totalmente constituída, em um momento único em que suas formas ainda estão se modificando ao longo de um curtíssimo período, de uns poucos anos, quase em tempo real.

“Quíron pode representar uma rara janela de observação de um pequeno corpo do Sistema Solar que está na fase intermediária do processo de formação de seus anéis”, comenta o astrofísico Chrystian Luciano Pereira, que faz pós-doutorado no Observatório Nacional, no Rio de Janeiro, autor principal do artigo. “Nunca tivemos a chance de acompanhar esse fenômeno.” Dados anteriores, obtidos em 2011 e 2018, sugeriam, de maneira não totalmente conclusiva, que o centauro tinha três anéis, mais internos.

Uma campanha de observação feita em 10 de setembro de 2023, que envolveu 31 telescópios da América do Sul, confirmou a presença desses três anéis e descobriu mais duas estruturas ao redor de Quíron: um quarto anel, mais difuso e externo, situado a 1.380 km do centro de Quíron; e um grande disco ou halo de matéria não muito densa em volta dos três anéis mais internos, situado entre 200 e 800 km do centauro. Os dados mais importantes da campanha, que sustentam as conclusões do trabalho publicado em 2025, foram produzidos pelo Observatório do Pico dos Dias, em Brasópolis (MG), operado pelo Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA).

Como o disco de Quíron não tinha sido visto nas observações dos anos 2010, os astrofísicos concluíram que ele surgiu em menos de uma década. Em um golpe de sorte, o grupo de astrofísicos, que envolve colaboradores sobretudo de Brasil, França e Espanha, parece ter flagrado uma arquitetura de anéis ainda em plena evolução. “Esse sistema de Quíron é bastante complexo, com muito material em torno de seu disco de matéria”, comenta o astrofísico Felipe Braga Ribas, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), outro autor do estudo. “Não sabemos como ele se formou.”

NASA / JPL-CaltechSaturno é um dos quatro planetas do Sistema Solar com anéisNASA / JPL-Caltech

Descoberto em 1977, Quíron tem sido sistematicamente estudado nas últimas décadas. “Quando propus que Quíron tinha anéis em um estudo de 2015, houve ceticismo de colegas e da comunidade em geral”, conta, em entrevista por e-email a Pesquisa FAPESP, o astrofísico espanhol Jose-Luis Ortiz, do Instituto de Astrofísica de Andaluzia, da Espanha, coautor do trabalho atual com esse objeto celeste. “Esse sistema parecia diferente em muitos aspectos do único corpo pequeno com anéis então conhecido, Chariklo.” Dessa vez, praticamente não há margem de dúvida de que o centauro abriga uma arquitetura sofisticada de aros ao seu redor.

A gênese de anéis e discos em torno de objetos pequenos, e mesmo ao redor dos planetas gigantes do Sistema Solar, pode ser atribuída a diversos mecanismos. Essas estruturas podem ser originadas pela destruição de luas ou de asteroides que um dia estiveram na órbita de um corpo, por colisões com um astro que cruzou o caminho de um objeto celeste ou ainda por sobras do material original que se aglutinou para gerar qualquer outro tipo de corpo de certo porte.

Em tese, centauros, como Chariklo e Quíron, também poderiam produzir um sistema de anéis com um disco a partir da ejeção de parte de sua massa. Esse tipo de objeto celeste é uma espécie de híbrido, com características tanto de asteroides como de cometas. Centauros podem expelir uma cauda (um rabo) ou coma (uma nuvem de poeira e gelo em seu entorno) que se tornam luminosas quando esses objetos passam perto do Sol. Muito mais ativo do que Chariklo, Quíron expulsa matéria de seu interior com certa periodicidade e, desde os anos 1990, sua atividade é monitorada. Planetas anões como Quaoar e Haumea não produzem caudas ou comas.

Diferentemente dos anéis de Saturno e dos outros três planetas gigantes, que podem ser visualizados diretamente e em detalhes por telescópios, não há imagens dos sistemas de aros em torno desses quatros objetos pequenos do Sistema Solar. Na verdade, não há nem mesmo registros ópticos de boa qualidade de Chariklo, Haumea, Quaoar ou Quíron. Esses corpos são muito pequenos e estão muito distantes da Terra. No melhor dos casos, eles aparecem como pontos em um trecho do céu. A identificação de anéis e de discos em torno desses pequenos corpos ocorre por meio da observação de um fenômeno denominado ocultação estelar, análogo a um eclipse solar, quando a Lua se coloca entre a Terra e o Sol.

Os astrofísicos conhecem a órbita de corpos celestes de menor porte do Sistema Solar e conseguem calcular quando esses objetos vão passar na frente de uma estrela visível da Terra. Durante esse processo de ocultação, que dura no máximo uns poucos segundos, um objeto com um sistema de anéis provoca uma variação no brilho da estrela de acordo com um padrão conhecido. Há um bloqueio completo e mais demorado de sua luminosidade quando o corpo celeste passa bem em frente da estrela. Ou seja, seu brilho é totalmente eclipsado, cai a zero do ponto de vista de um observador terrestre. Imediatamente antes e depois dessa queda brutal de luminosidade ocorrem outras duas reduções de brilho, parciais (de menor magnitude) e mais rápidas (ver quadro abaixo).

Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

Essas diminuições, menos pronunciadas e mais fugazes, são provocadas no momento em que as partes de um anel (e não o corpo central do objeto) se interpõem entre a Terra e a estrela. Um aro de poeira e gelo é bem menor e menos denso do que o objeto em si. Por isso, a queda de luminosidade que um anel provoca não chega a zero e é mais breve.  Uma nuvem ou halo de matéria, como deve existir em parte do sistema de anéis de Quíron, ocasiona uma outra assinatura luminosa durante a ocultação: uma redução no brilho ainda menor do que a de um anel, mas um pouco mais demorada. Luas também podem ser identificadas pela técnica da ocultação estelar.

O método da ocultação estelar é empregado para descobrir uma série de propriedades dos corpos celestes. Antes de haver imagens diretas dos anéis de Urano e Netuno, essas estruturas foram primeiramente identificadas por meio dessa técnica. “Com o método da ocultação estelar, podemos ter uma ideia do tamanho, da forma e da presença de anéis, discos e satélites em torno de corpos celestes”, explica o astrofísico Rafael Sfair da Faculdade de Engenharia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Guaratinguetá, que também assina o estudo recente com Quíron e trabalhos com Quaoar. “Cada característica do objeto em estudo produz uma queda distinta no padrão de luminosidade da estrela.”

A busca por anéis, discos e luas em torno de planetas e objetos menores não é uma curiosidade científica. Faz parte do estudo do processo de formação de sistemas planetários, de corpos celestes de menor porte e até de galáxias. “De modo geral, anéis e discos são estruturas muito comuns no Universo em diferentes escalas”, comenta o astrofísico Bruno Morgado, do Observatório do Valongo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (OV-UFRJ), outro coautor do artigo de outubro sobre Quíron e principal responsável por um trabalho de 2023 sobre a descoberta de um anel ao redor do planeta anão Quaoar (ver Pesquisa FAPESP nº 325). “No caso dos pequenos corpos, os efeitos dinâmicos dessas estruturas são muito rápidos e permitem observar a evolução temporal desses sistemas.”

Como, além dos planetas gigantes gasosos Júpiter, Saturno, Urano e Netuno, apenas quatro corpos celestes de pequeno porte do Sistema Solar apresentam anéis confirmados, os astrofísicos não sabem precisar se a formação dessas estruturas ao redor desse tipo de objeto é a regra ou a exceção. Apesar da baixa estatística disponível, parece pouco provável que os sistemas anelares encontrados no entorno de Chariklo, Haumea, Quaoar e Quíron representem tanto uma anormalidade como um padrão. “Teria sido muita sorte termos encontrado justamente as exceções”, diz Pereira. “Sistemas com anéis podem não ser majoritários, mas devem ser relativamente comuns.” Nos últimos anos, cresceram os indícios de que alguns exoplanetas, mundos que se formaram ao redor de outras estrelas que não o Sol, também podem apresentar anéis.

Projeto
Formação e evolução de estruturas de anéis ao redor de pequenos corpos do sistema solar: aplicação a centauros (nº 24/20150-1) Modalidade Bolsa de doutorado; Pesquisador responsável Rafael Sfair (Unesp); Bolsista Giovana Ramon; Investimento R$ 322.308,00.

Artigo científico
PEREIRA, C. L. et al. The Rings of (2060) Chiron: Evidence of an Evolving System. The Astrophysical Journal Letters. 14 out. 2025

Republicar