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Resenhas

Capitalismo à brasileira

Formação do Brasil colonial – Pré-capitalismo e capitalismo | Sedi Hirano | Edusp, 292 páginas, R$ 44,00

Obra referencial de Sedi Hirano é reeditada após 20 anos

Os bons livros podem até permanecer ignorados durante certo tempo, mas dificilmente são esquecidos. Vinte anos depois, temos finalmente uma reedição da hoje clássica tese de Sedi Hirano, com apenas uma alteração: o retorno ao nome original, desfazendo a inversão da primeira edição que tornou o subtítulo título e vice-versa.

Formação do Brasil colonial – Pré-capitalismo e capitalismo configura uma espécie de balanço e fecho de uma série de livros que ao longo de três décadas alimentaram um dos filões mais produtivos e inventivos do pensamento social entre nós: a discussão sobre a especificidade do capitalismo no Brasil.

O primeiro capítulo apresenta um minucioso exame dessa produção desde o Iseb, detendo-se na escola sociológica paulista e chegando aos trabalhos contemporâneos dos historiadores. Hirano adota como critério de avaliação as considerações que permitem a cada autor atribuir à Colônia um determinado modo de produção, caracterização obrigatória em investigações que se inserem na linhagem do marxismo.

A ressalva que Hirano aplica, com precisão, a essa série de obras constitui um verdadeiro ovo de Colombo. Ele recorda que em O capital Marx estabelece duas condições necessárias para suscitar a dinâmica capitalista: a produção e circulação de mercadorias e a existência da figura histórica do trabalhador livre (único capaz de produzir excedentes sob a forma de mais-valia). A prevalência do escravismo na Colônia impede que sua produção seja caracterizada como capitalista; sua inserção no mercado mundial e a circulação de seus excedentes sob a forma mercantil tampouco permitem que seja apresentada como extensão do feudalismo europeu.

Para resolver esse dilema, Hirano percorre a obra de Marx, destacando as passagens que permitem elucidar a questão. Além dos três livros de O capital, incorpora também textos até então pouco estudados no Brasil, como os manuscritos do Capítulo VI e dos Gundrisse. A determinação da Colônia como forma econômica pré-capitalista, organizada a partir da “acumulação originária” do capital, adquire assim uma densidade conceitual que torna a tese proposta em Formação do Brasil colonial um ponto incontornável para as futuras investigações sobre o estatuto da Colônia.

Embora a caracterização da formação social se configure decisiva para o andamento da investigação, a preocupação central do livro vai além, procurando estabelecer as determinações primordiais das relações sociais durante o período colonial.

Com isso, o livro desvincula-se das vertentes do marxismo, predominantes no Brasil, marcadas tanto pelo economicismo como pelo determinismo. Em parte, esse deslocamento pode ser atribuído ao diálogo de Hirano com seus mestres e predecessores da escola paulista de sociologia: Florestan Fernandes, Octávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Mas talvez derive em maior parte de uma releitura de Marx a partir de questões colocadas por Weber, uma perspectiva que Merleau-Ponty, em seu estudo sobre História e consciência de classe, denominou de “marxismo weberiano”.

O terceiro e último capítulo do livro promove assim uma espécie de giro metodológico. Não se trata de ressaltar apenas as forças produtivas ou mesmo o processo de produção e circulação, nem tampouco de se ater às estruturas jurídicas e políticas ou às representações mentais. Hirano articula tudo isso numa totalidade precisamente por concentrar-se num ponto preciso, as relações sociais de produção.

A distinção teórica entre castas, estamentos e classes sociais (esmiuçada em seu mestrado) possibilita a determinação da especificidade social da Colônia como “estamento”. A contraprova dessa asserção assenta-se tanto na exegese de abundantes relatos de época como numa elucidativa comparação entre as relações sociais vigentes na Colônia, em Portugal e na Inglaterra.

Ricardo Musse é professor do Departamento de Sociologia da USP.

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