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Parasitas emergentes

Formas brasileiras de toxoplasmose

Começam a aparecer os tipos locais de protozoário causador de encefalites

Thais A. da C. Silva / Cristina da S. Meira / Fabio Colombo / IALUm cisto no cérebro sob o microscópioThais A. da C. Silva / Cristina da S. Meira / Fabio Colombo / IAL

No início de janeiro, uma mulher de 22 anos, com muita dor de cabeça e uma paralisia no lado esquerdo do corpo, decidiu ir a um ambulatório especializado de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. A enfermeira que a atendeu a convenceu a fazer um teste rápido de detecção do vírus HIV, causador da Aids. O resultado, que saiu em 30 minutos, deu positivo.

“A moça tinha vida sexual havia oito anos, fazia sexo desprotegido, tinha dois ou três parceiros por semana, nunca tinha feito teste para HIV e não sabia que estava com Aids”, relata o médico José Ernesto Vidal, que a atendeu em seguida. A dor de cabeça e a paralisia do lado esquerdo do corpo sugeriam uma encefalite causada pelo protozoário Toxoplasma gondii. Ele a internou de imediato para começar o tratamento contra a doença neurológica e depois, assim que possível, iniciar a medicação contra o vírus da Aids.

A toxoplasmose cerebral sempre foi uma doença oportunista, transmitida normalmente por água ou alimentos contaminados (e não por via sexual), que normalmente emerge quando as defesas do organismo estão enfraquecidas. Agora essa infecção está merecendo mais atenção porque testes moleculares e genéticos, empregados como parte do diagnóstico, estão mostrando variedades de T. gondii exclusivas do Brasil, podendo causar sintomas atípicos ou mais graves em uma parte das pessoas infectadas. “Nossos testes estão mostrando que as variedades brasileiras são geneticamente diferentes dos tipos clássicos 1, 2 e 3, registrados, principalmente, nos Estados Unidos e na Europa, e algumas podem ser mais virulentas”, afirma Vidal.

Em um estudo pioneiro em São Paulo, sua equipe do Instituto de Infectologia Emílio Ribas e a da pesquisadora Vera Lúcia Pereira-Chioccola, do Instituto Adolfo Lutz, encontraram dois genótipos (conjuntos de genes), identificados pelos números 6 e 71, que estão se mostrando muito agressivos em seres humanos, causando quadros graves de encefalites. Um terceiro genótipo, o 65, mostrou-se bastante frequente, indicando que pode ser a variedade mais comum no estado de São Paulo. Das três variedades mais detectadas no mundo, duas são frequentes no Brasil (1 e 3). Recentemente, o tipo 2 de Toxoplasma gondii, comum na Europa, América do Norte e Ásia, foi encontrado em aves em Fernando de Noronha”, observa Vera Lúcia.

As três variedades agora identificadas em seres humanos resultaram de análise de amostras de sangue, fluido cerebroespinhal ou líquido amniótico de 62 pessoas atendidas no Emílio Ribas e no Hospital de Base de São José do Rio Preto de janeiro de 2007 a janeiro de 2010. Dessas, 25 apresentavam toxoplasmose cerebral e Aids. “No Brasil, a toxoplasmose cerebral é a primeira doença neurológica definidora de Aids e a de maior incidência em pacientes com Aids não submetidos ao tratamento com os retrovirais”, diz a pesquisadora do Adolfo Lutz. Outras duas tinham toxoplasmose aguda, 12 toxoplasmose ocular, 17 eram mulheres grávidas com toxoplasmose aguda e seis eram recém-nascidos com toxoplasmose congênita.

Os pesquisadores conseguiram formar 20 genótipos completos e os associaram com os dados clínicos de cada paciente, para examinar a virulência de cada um. O tipo 65, identificado em 18 pessoas, mostrou uma virulência variável: causou encefalites relativamente amenas, que puderam ser detidas por meio de medicação, mas também toxoplasmose aguda em quatro pessoas com o sistema de defesa aparentemente em ordem. Uma delas era uma mulher que tivera uma infecção aguda durante a gravidez, mas sem nenhum sintoma de toxoplasmose, e outra desenvolveu uma toxoplasmose cerebral, mesmo sendo HIV negativa. Os tipos 71 e 6 foram identificados em pessoas com toxoplasmose cerebral grave, que morreram, mesmo depois de receberem o tratamento. A caracterização dos genótipos, realizada por Isabelle Martins Ribeiro Ferreira, do Adolfo Lutz, foi publicada em outubro de 2011 na revista Experimental Parasitology.

José vidal e Vera Lucia Chioccola Um cisto no cérebroJosé vidal e Vera Lucia Chioccola

O genótipo 71 já tinha sido encontrado em galinhas, o 65 em galinhas e em gatos e o 6 em aves, animais domésticos e ovelhas, refletindo as formas pelas quais esse parasita é transmitido. O T. gondii pode chegar ao organismo humano por meio de alimentos – principalmente verdura e carne crua ou malpassada – ou água contaminados com oocistos contidos nas fezes de gatos ou felinos silvestres, que são os reservatórios naturais desse protozoário. Em novembro de 2006 um surto eclodiu quando seis pessoas – entre elas uma gestante – comeram bife tartar, preparado com carne moída crua, em um almoço oferecido em um condomínio no Guarujá, no litoral paulista. A carne estava contaminada e fez a mulher abortar.

O risco de toxoplasmose é um dos grandes medos das mulheres grávidas. Além de aborto, a transmissão congênita, da mãe para o feto, pode causar parto precoce, infecções neonatais, cegueira ou deficiências neurológicas. Esse risco começa a ser dimensionado por meio de vários estudos. Em um deles, uma equipe da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) examinou 146.307 recém-nascidos de novembro de 2006 a maio de 2007, correspondendo a 95% dos nascidos vivos no estado de Minas nesse período. Desse total, 190 bebês tinham toxoplasmose congênita, com altas taxas de infecção na retina. A prevalência de 1 infectado para cada 770 nascidos vivos foi considerada alta, reforçando a hipótese de que o Brasil poderia abrigar variedades mais virulentas do parasita que em outros países.

A infecção congênita pode se expressar apenas na adolescência ou vida adulta. Se na escola, exemplifica Vera Lúcia, um menino de 6 ou 10 anos se queixar que está com a vista escura ou com o campo visual menor, os professores e os pais deveriam considerar a possibilidade de esses serem sinais de uma infecção por T. gondii adquirida na gestação.

Por essa razão é que Vidal enfatiza: “As gestantes sem evidência de infecção deveriam ser o grupo prioritário em campanhas preventivas e para realizar testes sorológicos durante a gravidez”. O diagnóstico, porém, não é simples. “A carga parasitária é mais alta só em um momento”, diz Vera Lúcia.

Vera Lúcia acredita que possam existir outras variedades de T. gondii capazes de infectar seres humanos, ainda não identificadas, por duas razões. A primeira é que o levantamento de genótipos brasileiros é recente – começou em 2005 em animais. A segunda é que os pesquisadores trabalham com amostras de sangue de 10 mililitros, o máximo que podem coletar das pessoas que participaram dos estudos que levaram a essas conclusões. Desse modo, a chance de conseguir o próprio parasita é pequena, tudo o que obtêm é o DNA dos protozoários, em meio aos genes das células do corpo humano. Esse protozoário foi identificado em 1908 ao mesmo tempo em roedores por Charles Nicolle e Louis Manceaux, no Instituto Pasteur de Túnis, e por Alfonso Splendore, em coelhos, no Brasil.

Em busca de outros meios para identificar o parasita no sangue, os pesquisadores do Adolfo Lutz verificaram que os taquizoítos liberam proteínas conhecidas pela sigla ESA (excreted/secreted antigens), que facilitam a entrada deles nas células hospedeiras. Agora, em um dos laboratórios do oitavo andar do instituto, cercadas por paredes de vidro, Thais Alves da Costa Silva e Cristina da Silva Meira cultivam taquizoítos em meios de cultura apropriados e depois filtram as ESA. O material de trabalho é o mesmo, mas os objetivos são diferentes: Thais usa as proteínas para imunizar camundongos e caracterizar a resposta do organismo contra esses antígenos, enquanto Cristina as utiliza para diagnosticar a infecção em pessoas.

Eduardo CesarCultura de células para diagnósticoEduardo Cesar

Sem alarde
Ao chegar ao organismo, o T. gondii pode causar febre, manchas pelo corpo e inchaço do fígado e outros sinais que passam em poucos dias. As células de defesa cercam e isolam os parasitas, que podem permanecer anos ou décadas na forma de cistos. Geralmente os cistos permanecem controlados e a infecção passa despercebida. Não há números exatos sobre a incidência e a prevalência da toxoplasmose, que não é uma doen-
ça de notificação obrigatória, mas a infecção assintomática é relativamente comum: estima-se que uma em cada três pessoas abrigue pequenas populações desse parasita.

“Grande parte da população humana está infectada com T. gondii, mas o sistema imune é suficientemente capaz de controlar a infecção e as pessoas se tornam assintomáticas por toda a vida ou até acontecer uma imunossupressão”, diz Vera Lúcia.

Apenas de 20% a 30% dos indivíduos infectados desenvolvem a doença, principalmente quando as defesas do organismo estão debilitadas, como ocorre quando as pessoas estão com Aids ou passaram por um transplante. Então os cistos se rompem e liberam taquizoítos para o sangue, disseminando a infecção. Segundo Vidal, à medida que se expandem ou se rompem, os cistos dos parasitas e a resposta inflamatória que eles desencadeiam podem lesar o tecido cerebral e causar focos múltiplos de encefalite com graus variáveis de hemorragia.

Especula-se que, ao se instalar no cérebro, o T. gondii poderia facilitar o desenvolvimento de distúrbios psiquiátricos como esquizofrenia e a tendência ao suicídio. Em 2011, pesquisadores da Universidade do Havaí, nos Estados Unidos, apresentaram na Journal of Nervous and Mental Disease uma associação entre a infecção com o T. gondii e uma taxa mais elevada de suicídio em mulheres com mais de 60 anos.

Nos últimos anos, vários estudos indicaram que o parasita pode induzir alterações de comportamento em animais de laboratório, fazendo camundongos perderem o medo de gatos. O modo de ação está agora um pouco mais claro. Em um trabalho publicado em setembro de 2011 na revista PLoS One, pesquisadores da Universidade de Leeds, na Inglaterra, verificaram que o T. gondii consegue manipular o comportamento dos hospedeiros porque induz o aumento de produção de um neurotransmissor, a dopamina, nas células nervosas, dando aos animais de laboratório uma coragem que nunca tiveram antes.

Vários estudos consideram a possibilidade de as pessoas plenamente saudáveis também estarem sujeitas a alterações de comportamento causadas pelo T. gondii, mas por enquanto existem apenas indicações de que esse parasita poderia causar perda de memória ou de atenção ou deixar o raciocínio mais lento. Poderia ser o bastante, porém, para aumentar o risco de causar acidentes de carro.

Acidentes de trânsito
Em um trabalho de 2009 publicado na Forensic Science International, pesquisadores da Universidade de Istambul, na Turquia, examinaram o sangue de 218 pessoas que sofreram acidentes não fatais de trânsito e 25 em acidentes fatais, com histórico de toxoplasmose, sem terem consumido bebidas alcoólicas antes, com 191 que também sofreram acidentes, mas estavam livres do parasita. A conclusão dessa comparação é que a infecção causada por esse protozoário no cérebro pode reduzir os reflexos de quem dirige, provavelmente por alterar os níveis de dopamina em circulação no organismo.

Vidal observa que essa situação gera um impasse. Em princípio, com base em poucos estudos já publicados, para quem apresenta infecção pelo protozoário seria mais seguro deixar de dirigir automóveis, mas ainda não há argumentos científicos suficientes nem uma legislação que limitem as atividades do dia a dia, como dirigir, ou trabalhos como o de taxista.

As ações que previnem a transmissão desse parasita ainda são raras. Uma delas foi decidida pelo governo do estado da Califórnia, nos Estados Unidos, que determinou que os gatos só poderiam ser colocados à venda em petshops se os donos apresentassem atestados de que os animais estão livres de Toxoplasma gondii.

Os especialistas asseguram que o tratamento das formas graves da doença, utilizando terapia combinada à base de sulfa, é eficaz em 90% dos casos, mas não desfaz necessariamente os danos causados pelo parasita no cérebro, como a perda de movimentos e de parte da capacidade cognitiva. Por essa razão é que Vidal acredita que a moça de 22 anos que atendeu no mês passado, embora tenha superado o risco de morrer por causa da encefalite, não se restabelecerá plenamente e pode ter sequelas neurológicas. Segundo ele, como nesse caso a mulher não sabia que era portadora de HIV, possivelmente transmitiu o vírus para outras pessoas até a encefalite aparecer.

Em São Bernardo do Campo, Vidal tem atendido em média a um adolescente infectado com HIV por semana. “As histórias que eles contam são chocantes. Em festas, três garotos transam na mesma noite com uma garota, sabendo que ela está infectada pelo HIV, para ver quem se contamina. E poucos procuram hospitais ou centros de saúde para fazer o teste que poderia detectar uma infecção recente, iniciar o acompanhamento médico e, principalmente, evitar condutas que perpetuem a transmissão do vírus na comunidade.”

O Projeto
Diagnóstico laboratorial da toxoplasmose com enfoque nas infecções congênita e cerebral (nº 2008/09311-0); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Co­or­de­na­dora Vera Lucia Pereira Chioccola – Instituto Adolfo Lutz; Investimento R$ 104.698,75 (FAPESP)

Artigo científico
FERREIRA, I. M. et. al. Toxoplasma gondii isolates: multilocus RFLP-PCR genotyping from human patients in Sao Paulo State, Brazil identified distinct genotypes. Experimental Parasitology. n. 29, v. 2, p. 190-5. out. 2011.

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