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RESENHAS

A Filosofia como Vontade e Representação

Texto de Schopenhauer apresenta sua visão da história da filosofia

A tarefa do filósofo é, para o alemão Arthur Schopenhauer, explicitar a decifração do enigma do mundo. E isto é atingido na medida em que se descobre que o mundo é Vontade e representação: a filosofia deve ser, então, a compreensão desse mistério. A história da filosofia apenas descreve o quanto cada filósofo se aproximou daquela descoberta sobre o mundo.

Essa relação permeia os Fragmentos para a História da Filosofia, de Schopenhauer, publicados em 1851. Já que a história da filosofia não é para o autor um processo ordenado e que ela tem altos (Platão e Kant, por exemplo) e baixos (Hegel, entre outros), percebe-se porque ela é fragmentária: trata-se antes de interpretar alguns filósofos e parte de suas idéias naquilo que se relaciona à missão da filosofia.

Os fragmentos, então, não são aleatórios, mas resultam de um corte, digamos, cirúrgico, escolha de alguém que sabe correr o risco de se tornar um legista  fazer mera história da filosofia não é fazer filosofia, mas antes uma autópsia, em que se substitui o texto vivo dos filósofos pela letra morta do comentário: Ler, em vez das próprias obras dos filósofos, variadas exposições das suas doutrinas ou a história da filosofia em geral é o mesmo que querermos que alguém mastigue a comida para nós.

Quem leria a história mundial se tivesse a liberdade de observar com os próprios olhos os eventos passados que lhe interessam. Mas, no que diz respeito à história da filosofia, uma tal autópsia do seu objeto nos é verdadeiramente acessível, a saber, nos próprios escritos dos filósofos nos quais, todavia, por amor à brevidade, podemos ainda limitar-nos a bem escolhidos capítulos principais.(Fragmentos, §1).

Vale observar que à atitude de um historiador-legista se sobrepõe a do filósofo, digamos, fisiólogo: trata-se de perceber não só do que morrem, mas principalmente do que vivem as filosofias.

Os instrumentos para essa dupla incisão vêm do pensamento de Schopenhauer: Vontade, representação, coisa em si, fenômeno, corpo, idealismo, dogmatismo são noções que comandam sua interpretação (injusta?) das diversas filosofias, o que tanto denuncia os referenciais teóricos do autor, que vão dos gregos aos modernos, passando pelos neoplatônicos e escolásticos (influências nem sempre devidamente reconhecidas: por exemplo, Aristóteles e Plotino), quanto constitui, acima de tudo, um testemunho de sua própria filosofia.

E por ser um texto de maturidade há nos Fragmentos indicações preciosas sobre as transformações que encontramos em sua obra desde a publicação de Sobre a Vontade na Natureza (1836). Assim, não é por acaso que a filosofia dos modernos e suas tentativas de decifração do enigma do mundo são vistas a partir das noções de substância e matéria, centrais para a metafísica da Vontade na segunda edição de O Mundo como Vontade e Representação (1844).

Nesse movimento, Schopenhauer, já conhecedor da primeira edição da Crítica da Razão Pura, revisita a filosofia de Kant, ao mesmo tempo que critica os “sofistas” Fichte, Schelling e Hegel: os Fragmentos constituem um texto-chave para a compreensão do desenvolvimento das relações entre a metafísica da Vontade, o criticismo kantiano e o chamado “idealismo alemão”.

Pela sua importância no interior da obra de Schopenhauer, traduzir os Fragmentos é uma escolha precisa de uma profunda conhecedora do filósofo. Maria Lúcia Cacciola oferece ao leitor, além de um belo ensaio introdutório, uma excelente tradução enriquecida com notas, contribuindo novamente para tornar ainda mais vivo o debate necessário sobre esse pensador muitas vezes injustamente encoberto.

 Eduardo Brandão é doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo e professor de Filosofia da Fundação Escola de Sociologia e Política.

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