EDUARDO CESARQuando foi criada a vila de Soure, na comarca de Itapicuru, sertão da Bahia, o intendente resolveu afixar as novas posturas em papéis colados em tabuletas no mercado. De pronto, um certo José Honorato de Souza Netto passou a concitar seus companheiros a destruir as tabuletas que, para ele, sujeitavam abusivamente o povo ao pagamento de taxas. No dia 10 de abril daquele ano de 1893, com efeito, um grupo formado por mais de 40 pessoas, armadas de cacetes, facas e facões, dando vivas e morras e sob o troar de foguetes, fizeram as tabuletas em migalhas. As autoridades policiais tentaram, dois dias depois, controlar esta reação popular… sem sucesso. Até que, no dia 27, chegando à vila uma força policial mais preparada, os levantados fugiram. Fato interessante, no dia 17, consta ter chegado em Soure um certo Antonio Vicente Santos Maciel, o Antonio Conselheiro, acompanhado de alguns dos seus seguidores. Como ficaria provado no inquérito, o beato não teve participação no levante. Pelo contrário, acabou ajudando a pacificação e, por fim, levou consigo uma parte dos levantados.
Formava-se, assim, nessas e noutras situações, o contingente que ia, aos poucos, encher o arraial em Canudos. Na proximidade das vilas de Soure e Itapicuru, e de outras regiões, as gentes que saíam das roças, fazendas e povoados aderiam a um movimento cujo trágico destino é fundamental para se compreender o nascimento da República. De alguns anos para cá, muito tem se escrito e reescrito sobre a Guerra de Canudos, seus motivos e inspirações, sua organização e modo de vida. Novos documentos foram encontrados, por vezes publicados. Narrativas escritas, tendo em vista um interesse cada vez maior entre o grande público. A proposta do livro de Mônica Dantas é justamente dar alguns passos atrás e estudar estas populações sertanejas às vésperas da guerra. O livro tem como ponto de chegada justamente o ano 1893, ocasião da quebra dessas tabuletas em Soure e momento de “confluência de uma série de transformações, tendo sido a fundação do arraial tributária dessas mudanças” (p. 26). O objetivo desse estudo é entender a formação social na região de Itapicuru. Os mecanismos de produção e reprodução de um cotidiano marcado pela escravidão, pelo domínio político dos grandes proprietários e, também, pela solidariedade e pela mobilidade.
Como afirma Maria Odila Leite da Silva Dias, no prefácio do livro, Mônica nos ajuda a suprir uma lacuna importante da historiografia de Canudos. Apresenta “uma contribuição original para o estudo do sertão do Conselheiro, mostrando as tensões sociais e os conflitos que levaram ex-escravos errantes, índios sem terras, agregados, roceiros e pequenos posseiros e comerciantes a se refugiarem no arraial do Belo Monte”. Apoiada em uma vasta e densa pesquisa nos arquivos, a historiadora se utiliza de modernos recursos para, por meio da quantificação e da utilização de imensa quantidade de informações, produzir análises qualitativas que ajudam a revelar personagens silenciados pela história e pelas fontes. Seguindo a estrada aberta pela renovação da historiografia nas últimas décadas, o trabalho de Mônica permite um resgate luminoso dos silêncios da nossa história social. No capítulo inicial (“A lavoura invisível”), acompanhamos a revelação meticulosa das atividades e da vida dos “vaqueiros, ociosos e muitos outros”, habitantes do sertão, homens cujas vidas moldaram a sociedade local. Mas para além desse “inorgânico” (para usarmos os termos de Caio Prado Jr.), a autora nos oferece uma abordagem mais ampla que dá conta da variedade dos grupos sociais presentes em Itapicuru, nestes 70 anos que precederam a fundação do arraial de Belo Monte. As formas de acesso à terra, a importância do trabalho dos escravos nos canaviais e nos engenhos, a presença e atividades dos grandes fazendeiros são abordadas nos capítulos seguintes. Por fim, a autora recupera os costumes e práticas do cotidiano dos pequenos sitiantes, roceiros, vaqueiros, índios e escravos. Estratégias de sobrevivência definidas num espaço de auxílio mútuo, mobilidade e de fronteiras movediças.
Pedro Puntone é professor de História do Brasil na Universidade de São Paulo (USP), pesquisador do Cebrap e diretor da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.
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