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Bioquímica

Fuga do labirinto

Equipe carioca propõe nova explicação para a origem do mal de Parkinson e de doenças raras que afetam rins, coração, olhos e nervos

RCSB / PROTEIN DATA BANKA proteína transtirretina: defeitos aceleram a formação das fibrasRCSB / PROTEIN DATA BANK

A todo momento o fígado fabrica e despeja no sangue milhares de unidades de uma proteína que funciona como um teleférico: de maneira alternada, ela se liga a dois compostos essenciais ao funcionamento harmonioso do organismo e os carrega pelo interior de artérias e veias para, em seguida, distribuí-los às células do corpo. O nome dessa proteína, transtirretina, é na realidade uma sigla que anuncia sua função: transportar o hormônio tiroxina, produzido pela glândula tireóide, e o retinol, a forma ativa da vitamina A.

Associada ora a um ora a outro desses compostos, a transtirretina circula pelo sangue durante quase toda a vida. Com o envelhecimento, porém, a transtirretina tende a se unir em longos cordões – ou fibras -, que se acumulam durante décadas no coração. Os longos cordões se tornam uma espécie de muro entre as células, que prejudica o funcionamento do músculo cardíaco e dificulta o bombeamento do sangue. Uma em cada quatro pessoas com mais de 80 anos vive esse problema, chamado amiloidose sistêmica senil.

O químico norte-americano Jeffery Kelly, do Instituto de Pesquisa Scripps, nos Estados Unidos, propôs há quase dez anos um modelo teórico para explicar o aparecimento dessa forma de amiloidose. Quando velhas, as proteínas são levadas para serem degradadas em uma espécie de usina de reciclagem das células denominada lisossomo. Ali, as transtirretinas seriam desmontadas em suas quatro partes básicas – os blocos chamados monômeros, que serviriam de matéria-prima para a formação dos cordões que se acumulariam nas células e depois formariam depósitos extracelulares chamados de fibras amilóides, que atuariam como verdadeiros muros entre as células, atrapalhando seu funcionamento.

Modelo simplificado
Mas pode não ser bem assim. Em uma série de estudos publicados recentemente, pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) apresentam um mecanismo que explica de modo mais simples a formação das fibras típicas da amiloidose sistêmica senil pelo acúmulo das transtirretinas – um processo semelhante ao que se verifica em outras duas doenças características do envelhecimento, o mal de Parkinson, que leva ao descontrole dos movimentos do corpo, com tremores sobretudo nas mãos, e o mal de Alzheimer, que provoca a perda da memória, cada uma delas causada pela união de uma proteína diferente.

Nesse novo modelo, a transtirretina nem chegaria a ser desmontada nos lisossomos e permaneceria inteira no sangue, embora sem se ligar à tiroxina e à forma ativa da vitamina A, cuja concentração diminui com a idade. Assumiria então uma forma alterada, que deixaria mais expostos seus segmentos que repelem as moléculas de água e servem de ponto de contato entre duas transtirretinas. Depois, pela mesma razão, outras moléculas de transtirretinas se uniriam sucessivamente. O resultado seriam as fibras amilóides, agora formadas pelo acúmulo das transtirretinas inteiras e não pela união das unidades que a constituem, os monômeros. “Essa proposta é mais coerente, uma vez que não pressupõe a passagem da proteína pelos lisossomos, onde jamais foi vista”, diz a bióloga Debora Foguel, da UFRJ, que contou com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT).

Os pesquisadores do Rio chegaram a esse novo modelo após experimentos em que submeteram a transtirretina a pressões altíssimas, até 3.500 vezes superiores à do nível do mar, que é de uma atmosfera. A alternância entre pressões altas e baixas alterou a forma da proteína, que passou a formar fibras em menos de 30 minutos. Antes, por meio de reações químicas, as fibras custavam até quatro dias para se constituírem. Ganhou-se assim uma forma mais rápida de obter fibras amilóides, o que abre a possibilidade de uso desse método na seleção de compostos químicos a serem usados como medicamentos.

De fato, a equipe coordenada por Debora e pelo médico Jerson Lima da Silva, do Centro de Ressonância Magnética Nuclear da UFRJ, está testando compostos capazes de combater a formação das fibras características da amiloidose senil sistêmica do mal de Parkinson e do mal de Alzheimer. Entre os cinco tipos de compostos analisados nos últimos meses, os candidatos mais promissores, que se mostraram capazes de impedir a formação das fibras características de Alzheimer e da própria transtirretina, são os compostos da família do anilino naftaleno sulfonado, um líquido amarelo usado apenas como reagente químico, para mapear o enovelamento de proteínas. “Mas os resultados são muito preliminares”, alerta Debora. “Ainda serão necessários anos de pesquisa até que se consiga algum medicamento que possa ser usado por seres humanos.”

Velhos e jovens
Enquanto a forma normal ou selvagem da transtirretina se acumula lentamente e só causa problemas no coração dos idosos, suas formas alteradas – ou mutantes – são mais agressivas e atacam os rins e os nervos de outro público, os jovens – é a amiloidose familiar polineuropática. Embora rara na maioria dos países, com uma incidência de um caso em cada 1 milhão de pessoas por ano, é mais freqüente em comunidades isoladas de Portugal, da Suécia e do Japão, podendo matar antes dos 30 anos. No Brasil, já se estudou cerca de 30 casos em 24 famílias, todos provocados pela forma mutante mais comum dessa proteína. Quando diagnosticado, o problema só pode ser resolvido com um transplante de fígado, o órgão que produz a proteína.

Trabalhando hoje em colaboração com Kelly, a equipe da UFRJ mostrou que duas das 80 formas mutantes da transtirretina já identificadas – a mais comum delas, conhecida pela sigla V30M, freqüente em Portugal, e a mais agressiva, a L55P, que afeta principalmente os suecos – se parecem muito com a proteína normal e também lembram uma ampulheta. A diferença é tão pequena que, por si só, não bastaria para explicar a agressividade das formas modificadas ou mutantes. Num artigo publicado em maio no Journal of Molecular Biology, Debora descreve como surge essa pequena diferença: pequenos defeitos no gene que contém a receita dessa proteína, localizado no cromossomo 18, causam a troca de apenas uma das 127 unidades (aminoácidos) que compõem cada um dos quatro blocos da transtirretina.

A substituição de apenas um aminoácido – uma metionina por uma valina na V30M ou uma prolina por uma leucina na L55P – faz com que a proteína assuma uma forma mais frágil que a selvagem. “Por ser mais frágil que a proteína selvagem, a proteína mutante é menos estável e pode mais facilmente assumir a forma que gera as fibras amilóides”, afirma Debora. Quando compararam a capacidade de agregação das três formas da proteína – a V30M, a L55P e a selvagem -, os pesquisadores do Rio constataram que a versão selvagem da proteína forma fibras amilóides mais lentamente que as outras duas. Viram ainda que a transtirretina com a alteração mais agressiva, a L55P, gerava as fibras mais rapidamente que a forma mutante mais comum, a V30M.

Esses resultados explicam por que os sintomas se manifestam mais cedo, por volta dos 20 anos, nas pessoas que produzem a forma mais agressiva da proteína, a L55P, e mais tarde nos indivíduos cujas fibras amilóides se formam a partir da variedade selvagem. A importância clínica do trabalho da equipe do Rio fica mais clara a partir dos resultados de outro estudo, publicado em 19 de agosto no Proceedings of the National Academy of Sciences. Dessa vez, Debora decidiu comparar o comportamento das fibras amilóides resultantes da união das transtirretinas selvagens com as formas mutantes frente à pressão hidrostática. Após submeter as fibras à pressão de 3.000 atmosferas, veio a conclusão: cada fibra se desmontava de uma maneira distinta. Enquanto a fibra constituída pelas transtirretinas selvagens se desfazia em unidades menores, aquelas compostas pelas proteínas mutantes não se desmontavam completamente, apenas geravam fibras mais curtas.

“As fibras encurtadas são muito resistentes à pressão e aparentemente mais tóxicas para as células”, explica Debora. Mais uma vez, os dados são compatíveis com a realidade clínica. Maria João Saraiva, da Universidade do Porto, em Portugal, havia estudado portadores de amiloidose familiar polineuropática decorrente do acúmulo das proteínas V30M e constatado que as pessoas com sintomas mais avançados da doença apresentavam fibras de tamanho intermediário, e não as mais longas, como seria de esperar. Esses resultados põem por terra uma antiga crença dos especialistas em proteínas.

“Sempre se achou que todo tipo de fibra amilóide era igual e se comportava da mesma maneira”, comenta a bióloga da UFRJ. “Mostramos que não é assim.” Mas qual seria o comportamento de uma fibra amilóide formada por outra proteína que não a transtirretina? Debora testou em seguida as fibras amilóides constituídas por uma outra proteína, a alfa-sinucleína, ligada ao desenvolvimento do mal de Parkinson – doença em que o indivíduo perde progressivamente o controle sobre os movimentos e apresenta tremores e paralisia. Ainda de função desconhecida, a forma normal da alfa-sinucleína parece com um barbante esticado.

Em algumas famílias, um defeito genético leva à fabricação de formas mutantes da alfa-sinucleína, que passa a se acumular no interior das células nervosas (neurônios) de uma região do cérebro responsável pelo controle dos movimentos, matando-as. Outra surpresa: todas as fibras formadas pela alfa-sinucleína desmontavam-se em suas unidades básicas, que são tóxicas para os neurônios. Mas as formas mutantes se desfaziam de duas a três vezes mais rápido que a fibra formada pela proteína selvagem. Conhecer a diferença de comportamento entre as fibras é importante para traçar as estratégias mais adequadas para tratar cada uma das doenças.

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