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Financiamento

Futuro incerto

Governo ignora derrubada de veto pelo Congresso Nacional e mantém bloqueio dos recursos do FNDCT, principal fundo de fomento à pesquisa científica no Brasil

Governo bloqueará mais de R$ 5 bilhões dos recursos do FNDCT, 4,3% mais do que havia proposto inicialmente no Projeto de Lei Orçamentária Anual encaminhado ao Congresso

Edilson Rodrigues/Agência Senado

O governo federal manteve o bloqueio dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), principal instrumento de fomento à ciência, tecnologia e inovação (CT&I) no Brasil, ignorando decisão do Congresso Nacional, que em 2020 aprovou uma lei proibindo novos contingenciamentos e no início de 2021 derrubou um veto que tentou contornar essa medida. Assim, dos quase R$ 5,6 bilhões disponíveis, o fundo poderá contar com apenas R$ 534 milhões. O restante, pouco mais de R$ 5 bilhões – ou seja, mais de 90% da dotação do fundo –, será transferido para um fundo de reserva e ficará à disposição do governo para o pagamento da dívida pública e manutenção de superávit fiscal. “O governo não apenas passou por cima da decisão do Congresso, como também aumentou o valor bloqueado em 4,3% em relação ao que havia proposto inicialmente no Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2021 [PLOA 2021]”, diz Celso Pansera, ex-deputado e ex-ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações. “É absolutamente inacreditável o que está acontecendo com o FNDCT”, destaca o neurocientista Luiz Eugênio Mello, diretor científico da FAPESP. “O governo está se valendo de todos os subterfúgios possíveis para impedir a liberação dos recursos do fundo, mesmo o Congresso já tendo se manifestado muito claramente sobre isso.”

O imbróglio acerca da liberação dos recursos do FNDCT se estende há pelo menos cinco anos, mas parecia ter chegado ao fim em agosto de 2020, após aprovação por ampla maioria na Câmara e no Senado do Projeto de Lei Complementar nº 135/20. De autoria do senador Izalci Lucas (PSDB-DF), o texto transformava o FNDCT em um fundo financeiro cumulativo – atualmente, ele recebe receitas de diferentes setores da economia, mas tem natureza apenas contábil. Com a mudança, seus valores passam a ser alocados em fundos de investimento, gerando rendimentos que poderão ser usados para financiar atividades de CT&I. Outra mudança importante diz respeito ao reaproveitamento de saldos anuais não utilizados para reinvestimento, de modo que os recursos se acumulem ao longo dos anos – os valores não desembolsados hoje voltam para a conta única do Tesouro.

Em janeiro deste ano, o presidente Jair Bolsonaro sancionou o PLP nº 135/20 – transformando-a na Lei Complementar nº 177 –, mas vetou dois artigos por recomendação da equipe econômica. O primeiro determinava a liberação dos R$ 4,2 bilhões bloqueados em 2020, ao passo que o segundo proibia novos contingenciamentos dos recursos do fundo. O argumento do governo à época era o de que os dispositivos aprovados pelo Congresso resultariam em um aumento não previsto das despesas e em um impacto nas contas públicas, podendo levar ao descumprimento da Emenda Constitucional nº 95, que em 2016 instituiu por 20 anos o teto dos gastos públicos.

Em março, após ampla mobilização da comunidade científica e representantes da indústria, o Congresso decidiu manter o primeiro veto e derrubar o segundo, o mais importante, que proibia novos contingenciamentos dos recursos do FNDCT. A expectativa era a de que os recursos federais reservados para a ciência não pudessem mais ser bloqueados. “Ocorre que o governo postergou ao máximo a promulgação da derrubada do veto”, explica o físico Ildeu de Castro Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). “A estratégia”, ele explica, “foi promulgá-lo somente após a aprovação da Lei Orçamentária Anual [LOA] de 2021”. A decisão do Congresso, nesse caso, entraria em vigor apenas em 2022.

A despeito da pressão da sociedade civil e de representantes da comunidade científica e da indústria, Bolsonaro promulgou a derrubada do veto no dia 26 de março, um dia depois de os parlamentares terem aprovado o orçamento de 2021 – sem levar em conta a decisão que já haviam tomado sobre os recursos do FNDCT. “Ao finalmente sancionar o orçamento, em 22 de abril, Bolsonaro manteve o bloqueio dos recursos do FNDCT”, diz Moreira. “Teremos de reiniciar a articulação para avaliar as estratégias mais adequadas nesse momento para reverter esse quadro”, comenta Pansera. “Enviamos cartas e solicitamos várias reuniões com os ministros da Economia e da Ciência, Tecnologia e Inovações [MCTI], mas fomos ignorados.” Uma das alternativas aventadas é a de ingressar com uma ação no Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou mesmo no Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar acomodar as mudanças previstas na LC nº 177/2021 no orçamento de 2021. “Paralelamente, seguiremos pressionando o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco [DEM-MG], que havia se comprometido a resolver essa questão”, completa Moreira.

Outra possibilidade, na avaliação do senador Izalci Lucas, é aprovar um projeto de lei complementar (PLN) para tentar abrir crédito adicional à LOA 2021. “O presidente vetou alguns trechos do orçamento, de modo que ele voltará para o Congresso, que analisará se os mantêm ou se os derruba. Queremos aproveitar essa brecha para reinserir a LC nº 177/2021 no orçamento”, explica Lucas. “O governo inviabilizará o fundo se mantiver seus recursos contingenciados. Por isso, não trabalhamos com a possibilidade de a decisão do Congresso não ser cumprida este ano. Além do mais, com a transformação do FNDCT em fundo financeiro, precisamos garantir que seus recursos sejam liberados para que possam começar logo a render.”

Do ponto de vista operacional, a saída pela aprovação de um PLN é considerada a mais adequada no momento. O senador Rogério Carvalho (PT-SE) apresentou na última semana o PLN n° 58, de 2021 para tentar adequar o orçamento à legislação vigente. “Não há necessidade de ato legal adicional para o governo disponibilizar os recursos do FNDCT por meio de um crédito no orçamento de 2021”, afirma o texto. “No entanto, caso o governo federal não tome as providências imediatamente, o presente projeto altera a LC nº 177/2021 para prever que o Poder Executivo abrirá crédito adicional ou encaminhará ao Poder Legislativo projeto de lei para abertura de crédito adicional em até 30 dias após a sanção da lei orçamentária de 2021, com a finalidade de retirar os recursos do FNDCT da reserva de contingência.” O texto chama a atenção ainda para o fato de o Brasil viver o recrudescimento da pandemia do novo coronavírus, com aumento no número de casos e óbitos por Covid-19. “Nesse contexto, o FNDCT é um instrumento essencial de combate à crise e retomada do desenvolvimento, com indução do desenvolvimento científico e tecnológico, e da inovação.”

Na avaliação do economista e ex-deputado federal Marcos Cintra, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eaesp-FGV), mesmo que tenha uma justificativa legislativa concreta, o PLN deverá enfrentar resistência do governo. “Ainda que os parlamentares consigam reverter esse quadro, a visão que o governo tem dessa área seguirá a mesma, e esse é talvez o principal problema”, diz Cintra, idealizador da proposta de transformação do FNDCT em fundo financeiro e de reinvestimento de seus saldos anuais não utilizados quando presidiu a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), agência vinculada ao MCTI e responsável pela administração do fundo, entre 2016 e 2018. “O setor de CT&I é muito sensível à volatilidade do financiamento. A ciência e a tecnologia na fronteira do conhecimento são mutáveis e se renovam o tempo todo em função de novas descobertas e tecnologias, de modo que os prejuízos resultantes da falta de visão estratégica do Executivo tendem a ser irrecuperáveis”, afirma. “A liberação dos recursos do FNDCT seria uma forma de mitigar esses impactos. No entanto, Bolsonaro não entendeu, ou não quis entender, a importância da ciência para o mundo moderno.” Para Mello, diretor científico da FAPESP, “independentemente disso, a lei, aprovada pelo Congresso quase por aclamação, deve ser cumprida”.

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