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Itinerários de pesquisa

Graduado em biologia, William Coelho escolheu a música

Hoje à frente do Coro da Osesp, ele se divide entre as salas de concerto e a carreira acadêmica

Coelho na Sala São Paulo, que abriga a Osesp

Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP

Venho de uma família simples. Nasci na Vila Matilde, na zona leste de São Paulo. Meu pai trabalhava na área de publicidade e minha mãe é professora. Tenho duas irmãs, que hoje também são professoras. No início da década de 1990, nos mudamos para Cunha [SP], cidade natal da minha mãe. Aos 10 anos, ganhei uma flauta doce de um tio e me lembro de passar horas no meu quarto tirando músicas de ouvido. Logo entrei no coral da escola. O professor, ao perceber minha inclinação, me pediu para ensaiar as vozes masculinas do coro. Costumo brincar que minha primeira experiência na música já foi como maestro. Mesmo sem saber ler as partituras, eu tinha facilidade para decifrar a notação musical. No entanto, meus pais não tinham condições financeiras de me matricular em uma escola de música ou de contratar um professor particular.

Só fui ter aulas de música mais tarde, quando comecei a aprender violino em um projeto social em Cunha, coordenado pelo maestro Carlos Kaminski, professor do Instituto de Artes da Unesp, campus da cidade de São Paulo, hoje aposentado. Eu já tinha 15 anos, idade avançada para iniciação musical, especialmente em violino. O projeto começou em 1998 e no ano seguinte eu me tornei um dos monitores. Nessa época, resolvi montar o “meu” coral, um madrigal com oito vozes, composto por pessoas do curso de violino, alguns músicos amadores e até minha mãe. Foi quando entendi que era aquilo que eu queria fazer, ser maestro.

No entanto, esse sonho precisou esperar. Como não possuía treinamento suficiente para passar na prova de habilidade específica, uma exigência do vestibular para música, acabei optando pelo curso de ciências biológicas, disciplina da qual gostava. Em 2001, comecei a graduação na Universidade Federal de Alfenas [Unifal], em Minas Gerais, e logo me interessei por duas áreas, o estudo dos répteis e a fisiologia vegetal. No primeiro ano, fui trabalhar como estagiário no serpentário da Unifenas [Universidade Professor Edson Antônio Velano] e depois comecei uma pesquisa de iniciação científica na Unifal sobre os efeitos alelopáticos dos frutos de quatro plantas: o tomate, a berinjela, a lobeira, que tem esse nome porque seu fruto está na dieta do lobo-guará, e o joá-bravo, um tipo de erva daninha nativa da América do Sul.

A alelopatia estuda a capacidade que algumas plantas têm de emitir substâncias no ambiente, como no solo e no ar, de modo a impedir ou prejudicar o crescimento de outras plantas ao redor. Na minha pesquisa, comprovei o efeito alelopático dos frutos dessas plantas no cultivo da alface, cujas mudas, quando cresciam, apresentavam raízes e folhas menores e em pouca quantidade devido a esse fator. Mas nunca deixei a música de lado. Até porque, para me sustentar, eu dava aulas de violino e de viola, além de ser regente do coro da Unifal e de um coral em Paraguaçu, cidade vizinha de Alfenas.

Arquivo PessoalNos anos 2000, quando estagiava no serpentário de uma universidade em Alfenas (MG)Arquivo Pessoal

Após a formatura, em 2005, vim morar em São Paulo e, nos quatro anos seguintes, me dividi entre ser professor de ciências do Colégio Objetivo e músico profissional. Fui regente do coro da Caixa Econômica Federal e coordenador pedagógico de um projeto social da Igreja Presbiteriana de São Paulo, que incluía uma orquestra, além de diretor do recém-criado conservatório de Alfenas. Em 2009, tive a oportunidade de fazer um curso de regência de banda sinfônica no Canadá e voltei para o Brasil decidido a me aprofundar nesse campo. Finalmente, ingressei em 2010 no curso de bacharelado em regência no Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo [ECA-USP], onde me formei em 2016.

No mestrado, na ECA-USP, fiz um estudo sobre a Congada de São Benedito, sediada em Cunha. De origem afro-brasileira, a congada é uma manifestação popular que envolve dança, música e canto, mesclados à devoção católica e às tradições caipiras. Além da história e da organização geral desse folguedo, analisei no estudo, concluído em 2016, as transcrições musicais e os padrões rítmicos dos principais instrumentos desse repertório, como a caixa de rastilho e os bastões. A dissertação foi publicada em 2023, pela editora Casa Cultura, e no início deste ano as escolas públicas de Cunha adotaram o livro como material de apoio para seus professores.

Ainda durante a graduação, ingressei a convite da professora Monica Isabel Lucas no Conjunto de Música Antiga da USP, onde hoje sou regente titular. Nos concertos, buscamos reproduzir as obras como foram originalmente criadas, especialmente nos séculos XVII e XVIII, tanto por meio do uso de réplica dos instrumentos do período quanto pelo estudo dos manuscritos originais e tratados musicais da época. Ao atuar no conjunto, conheci outras perspectivas do fazer musical para além da abordagem que se consolidou no século XIX, no chamado período romântico, e isso despertou meu interesse pela musicologia.

Foi a partir dessas discussões que escolhi o tema do meu doutorado, concluído em 2022, no qual analisei a obra sinfônica de Beethoven [1770-1827], compositor celebrado como precursor da linguagem musical romântica do século XIX. Porém, no trabalho, defendo que esse autor está mais alinhado à tradição do século XVIII, conhecido como período clássico, sendo muito influenciado por antecessores como Haydn [1732-1809] e Mozart [1756-1791]. Em 2022, a pesquisa ganhou o Prêmio Tese Destaque do Programa de Pós-graduação em Música da ECA-USP, o que viabilizou a publicação de um livro em formato digital e de acesso gratuito pela Editora CRV, no ano passado.

Há cinco anos estou à frente do Coro da Osesp [Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo]. Em 2024 comemoramos os 70 anos da Osesp, os 30 anos do coro e os 25 anos da Sala São Paulo. Para celebrar as datas, incluí no programa do coro obras do italiano Antonio Lotti [1667-1740] e de autores contemporâneos, a exemplo da jovem compositora e pianista brasileira Juliana Ripke, além de Heitor Villa-Lobos [1887-1959], Gilberto Gil e Dorival Caymmi [1914-2008].

A formação de músico no Brasil tem como base compositores europeus e isso acaba sendo reproduzido nos programas dos concertos. Por isso, tento levar ao público um repertório mais variado e inclusivo, com compositoras e compositores de origens e gêneros musicais variados. Tenho uma relação afetiva com a música popular. Em casa, ouvíamos muita MPB, mas também muita música caipira. Para mim, não existe uma hierarquia entre a música popular e a erudita, um termo que, inclusive, considero equivocado e é motivo de muita discussão na academia. Existe música bem escrita e mal escrita em todos os estilos, seja na música de concerto ou na popular.

No âmbito pessoal, tenho também motivo para comemorar. Acabo de ser aprovado em um concurso para as disciplinas de regência coral e educação musical no Departamento de Música da ECA-USP. Estou muito feliz por poder dar continuidade à minha trajetória de pesquisador, mas espero não abandonar as salas de concerto. Afinal, como cantou Gilberto Gil em “Quanta” [1997], a arte é irmã da ciência.

 

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