Centenas de ratos mortos se amontoavam nos armazéns, nos becos e nos telhados das casas da cidade de Santos, litoral paulista, em outubro de 1899. Era o sinal inconfundível da chegada da temida peste bubônica, também conhecida como peste negra, que havia sido a causa da morte de cerca de 50 milhões de pessoas na Europa no século XIV e de mais de 12 milhões na Índia e na China no século XIX. Santos era o porto exportador de café, a principal riqueza paulista da época, e o segundo maior do país, após o do Rio de Janeiro, então a capital federal.
A despeito das resistências, médicos experientes agiram com rapidez para identificar e combater a peste sob a liderança dos paulistas Emílio Ribas (1862-1925), em São Paulo, e Oswaldo Cruz (1872-1917), no Rio de Janeiro. “Os dois tinham grande poder de intervenção, por acumularem capital científico e político”, diz a médica e historiadora das doenças Dilene Raimundo do Nascimento, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro. “Logo depois de identificarem a doença, eles já isolaram os pacientes”, acrescenta a historiadora Olga Alves, pesquisadora do Centro de Memória do Instituto Butantan.
A peste chegou primeiro ao Paraguai, em setembro de 1899. Alertado pelas notícias que vinham do país vizinho, o governo brasileiro tratou de importar o soro antipestoso do Instituto Pasteur de Paris e, a seguir, combateu os ratos, transmissores da doença, que chegavam com os navios e se espalhavam pelas cidades portuárias.
O conhecimento sobre a doença foi essencial para planejar as ações que a detivessem. Em 1894, dois bacteriologistas, o suíço Alexandre Yersin (1863-1943), em Hong Kong, e o japonês Kitasato Shibasaburo (1853-1931), no Japão, identificaram a bactéria causadora da doença, que ganhou o nome de Yersinia pestis. Em 1895, de volta ao Instituto Pasteur de Paris, Yersin se aliou ao biólogo Léon Charles Albert Calmette (1863-1933) e ao médico Émile Roux (1853-1933) para desenvolver um soro contra a peste, testado em seres humanos três anos depois. Foi também em 1898 que o médico francês Paul-Louis Simond (1858-1947) descobriu que a bactéria chegava às pessoas por meio da picada de pulgas (Xenopsylla cheopis) infectadas ao se alimentarem do sangue de ratos. Hoje se sabe que o micróbio se instala e se multiplica nos gânglios linfáticos, que incham, formando os chamados bubões, e às vezes se rompem. Essa doença causa febre alta, dores, vômitos, tosse com sangue e convulsões.
Em agosto de 1899, após as notícias sobre a peste na cidade do Porto, em Portugal, o governo brasileiro determinou que todos os navios vindos de Portugal e da Espanha deveriam se submeter a uma quarentena de 20 dias antes de atracar. Em cartas publicadas no Jornal do Commercio, o diretor de Higiene e Assistência Pública do Estado do Rio de Janeiro, o médico fluminense Jorge Alberto Leite Pinto (1865-1934), contestou as medidas. Seu argumento era de que a peste, em vista do que já se sabia sobre ela, poderia ser facilmente tratável. Em um artigo de novembro de 2013 na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Nascimento e o historiador da ciência Matheus Silva, então ligado à Fiocruz, observaram que o médico alegava que a quarentena, ao impedir o desembarque dos navios estrangeiros, poderia causar prejuízos econômicos e elevar o preço dos produtos importados. De acordo com os dois pesquisadores, para Pinto os interesses do comércio deveriam prevalecer, “cabendo ao governo não interferir nem criar prejuízos nas relações comerciais”. Os protestos, porém, não tiveram efeito prático. No mês seguinte chegaram notícias da peste no Paraguai.
Como diretor do Serviço Sanitário de São Paulo, Emílio Ribas, ao concluir que o porto de Santos poderia ser uma das entradas da peste, tomou medidas preventivas; de 1896 a 1898 ele tinha coordenado a demolição de cortiços e a limpeza de casas, ruas e terrenos baldios para eliminar os focos de Aedes aegypti, o transmissor da febre amarela, outro problema de saúde pública.
O primeiro médico que Ribas enviou para o litoral, em 9 de outubro, foi o mineiro Vital Brazil Mineiro da Campanha (1865-1950). Ele levou um microscópio, meios de cultivo de bactérias, tubos e instrumentos para autopsia, montou um laboratório em um dos quartos do Hospital de Isolamento e se pôs a estudar ratos vivos coletados em lugares onde havia outros já mortos.
Logo depois de chegar a Santos, outro médico da equipe, o carioca Guilherme Álvaro da Silva (1869-1930), soube de um doente que havia morrido dias antes na Santa Casa da cidade com uma infecção severa e inchaço dos gânglios da virilha direita. Silva concluiu que o homem havia morrido de peste – e não de febre amarela, como se diagnosticou inicialmente –, ao encontrar ratos mortos perto da casa onde morava. Em seu livro de 1919, A campanha sanitária de Santos – Suas causas e seus efeitos, Silva relatou que “os ratos eram então abundantíssimos em Santos, vendo-se durante a noite verdadeiros bandos”.
Outro médico do Serviço Sanitário, o também carioca Adolfo Lutz (1855-1940), chegou no dia 14 de outubro, quando começaram a aparecer os casos suspeitos, os doentes – e as mortes. Em um relatório publicado inicialmente na Revista Médica de São Paulo em fevereiro de 1899, Vital Brazil descreve a evolução da doença, os experimentos em animais e o comportamento da bactéria: “O cocco-bacillo parece não gozar de mobilidade. Agglutina-se sob a influencia de serum antipestoso”, anotou. Os exames e as autópsias, acompanhadas pessoalmente por Ribas, que também foi para lá, confirmaram que a peste bubônica havia chegado. Quatro dias depois saiu o comunicado oficial e começou a caça aos ratos em casas, cocheiras e armazéns do porto.
Os moradores de Santos protestaram, diante da perspectiva de prejuízos decorrentes do provável fechamento do porto. Requisitado, o cirurgião fluminense Eduardo Chapot-Prévost, professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, foi a Santos, examinou os pacientes e confirmou a conclusão da equipe de médicos instalada na cidade. Mas não foi o bastante para acalmar os santistas.
A convite dos vereadores de Santos, que procuravam uma opinião contrária, no dia 22 de outubro chegou Oswaldo Cruz, que havia passado três anos no Instituto Pasteur de Paris. Cinco dias depois, em um telegrama ao governo federal, ele informou que havia isolado “a mesma forma bacteriana que do homem” nos animais doentes e nos mortos, fechando o diagnóstico, de acordo com os pressupostos estabelecidos pelo químico Louis Pasteur (1822-1895). “Os critérios clínico, epidemiológico e bacteriológico permitem afirmar categoricamente ser a peste bubônica a moléstia reinante”, ele concluiu. “Aquele foi um momento importante, de consolidação da bacteriologia e da pesquisa científica”, observa Nascimento.
Cruz também teve de cuidar de Vital Brazil, que adoeceu com a peste e se recuperou com soro antipestoso importado. “Não compreendemos ainda hoje porque não fomos vitimados pela doença, que na véspera havia prostrado o dr. Vital Brasil, no Isolamento, onde trabalhava”, anotou Silva em seu livro de 1919, ao relatar uma visita a uma casa onde quatro pessoas haviam morrido de peste. Ele e sua equipe encontraram “mais de 40 ratões mortos espalhados pelo solo, muitos já em decomposição” no armazém da casa e foram picados por pulgas que infestavam os roedores, embora não tenham adoecido.
Até o final de dezembro de 1899, 35 pessoas com peste foram tratadas no Hospital de Isolamento, das quais 15 morreram, um resultado bem abaixo das taxas históricas da letalidade da peste, que matava quase todos em quem se abrigava. Mesmo assim, os comerciantes de Santos ainda contestavam os médicos. Em busca de outras opiniões, Lutz mandou amostras de material dos gânglios dos doentes para especialistas de Paris, Londres e Hamburgo; todos atestaram a peste.
Acervo Instituto Butantan/Centro de Memória
A cidade de São Paulo registrou o primeiro caso de peste no início de novembro daquele ano, motivando a procura e o isolamento de pessoas infectadas pelas equipes de saúde e o combate aos ratos, com várias estratégias: limpeza de esgotos, armazéns e casas pelos funcionários do Serviço Sanitário, distribuição de folheto intitulado Peste, matança dos ratos, com versões em português, italiano, alemão, inglês e francês, e uma campanha para a própria população caçar ratos, que o governo comprava.
O Desinfectório Central, órgão do Serviço Sanitário, comprou dos moradores e incinerou cerca de 14 mil ratos apenas em novembro de 1899. Houve, porém, algumas distorções. “Muitas pessoas, nos meses seguintes, passaram a caçar roedores, fazendo disso um meio de sobrevivência”, comenta a arquivista Maria Talib Assad, do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas, instalado no prédio onde funcionava esse órgão do Serviço Sanitário no começo do século XX. O efeito indesejado levou à suspensão da medida.
“Durante o surto em Santos, Emílio Ribas começou a pensar na continuidade da peste e na necessidade de produzir o soro antipestoso no Brasil, do qual só se podia importar em quantidades pequenas, por causa da grande procura por outros países”, comenta Alves. As negociações com o governo paulista levaram à criação do Instituto Soroterápico do Estado de São Paulo, renomeado em 1918 para Instituto Soroterápico do Butantan e novamente em 1925, quando ganhou a atual designação de Instituto Butantan. Dirigido por Vital Brazil, produziu soro antipestoso e depois se especializou em soros contra picadas de cobras, comuns no interior paulista, e em vacinas.
Vinda provavelmente de Santos, a peste emergiu na cidade do Rio em janeiro de 1900 e seguiu para São Luís, no Maranhão, e Recife, em Pernambuco. Por sua vez, Oswaldo Cruz aproveitou a oportunidade para criar o Instituto de Manguinhos, hoje Fiocruz, também para produzir soro contra a peste, que se tornou um dos principais centros nacionais de produção de vacinas. Mesmo assim, cerca de 300 pessoas morreram por causa da peste em 1900 na capital federal; o total de mortos foi 199 em 1901, 215 em 1902, 360 em 1903 e 274 em 1904.
Em 1903, o presidente Francisco de Paula Rodrigues Alves (1848-1919), interessado em modernizar a cidade do Rio, colocou Cruz à frente da Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP). “Oswaldo Cruz recebeu carta branca para acabar com as três principais doenças epidêmicas da época, varíola, peste bubônica e febre amarela”, comenta Nascimento. “A vacinação e a eliminação dos focos de ratos e de mosquitos interessavam a Rodrigues Alves, que planejava uma reforma urbana para transformar o Rio em uma cidade linda como Paris. Os interesses políticos e sanitários convergiram.”
A população se revoltou outra vez, naquela ocasião, contra a vacinação obrigatória no combate à varíola. Os protestos expressavam também o medo de que a vacina pudesse deixar as pessoas com feições de boi, já que era feita com material colhido de vacas doentes, ou transmitir sífilis, como descrito pelo historiador carioca Sidney Chalhoub, da Universidade Harvard, Estados Unidos, no livro Cidade febril (Companhia das Letras, 2017).
A companha contra a peste bubônica seguiu quase sem contestação, porque a população já sabia que a doença era transmitida por pulgas e ratos. Já havia vacinação e o combate aos ratos foi intenso. A DGSP também aderiu à compra de ratos trazidos pelos moradores. “Apesar das distorções, foi uma prática sanitária eficiente”, diz Nascimento.
Atualmente tratada com antibióticos, que reduz o risco de morte a 10%, a peste ainda causa cerca de 650 casos e 120 mortes por ano no mundo, principalmente na África, e é vista como um perigo potencial em regiões de condições sanitárias precárias. No Brasil, o último caso registrado foi em 2005. Os Estados Unidos relataram 11 casos em 2015, com três mortes. Em 2020, a peste bubônica reemergiu na Mongólia, com 15 pessoas infectadas e uma morte.
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