Estudos realizados recentemente reuniram novas evidências e levantaram hipóteses para explicar por que pesquisadores do sexo feminino têm menos artigos científicos invalidados em decorrência de erros ou má conduta do que autores do sexo masculino. Um dos trabalhos avaliou 64.658 papers que sofreram retratação, ou seja, tiveram sua publicação cancelada porque os dados ou as conclusões deixaram de ser considerados confiáveis. A retratação é a retirada formal de um artigo científico publicado em um periódico e pode ser causada tanto por equívocos honestos na coleta ou na análise dos dados como por deslizes éticos, a exemplo de plágio, fraude, manipulação de imagens e duplicação de dados.
A análise, feita por uma equipe do Reino Unido e da Austrália e publicada na revista Science Editor, concentrou-se nos primeiros e nos últimos autores de papers. A posição de primeiro autor normalmente é reservada ao principal encarregado da execução da pesquisa, enquanto o nome no fim da lista indica liderança e responsabilidade pelo projeto. A maior parte das retratações – seis em cada 10 – tinha homens simultaneamente na primeira e na última posição da lista. As mulheres, por sua vez, eram 26,4% dos primeiros autores dos artigos invalidados e 23,7% dos últimos. É certo que as mulheres publicam menos do que homens – elas representam, segundo o estudo, de 30% a 40% dos primeiros autores e 25% a 30% dos últimos autores, a depender do país de origem e do campo do conhecimento dos artigos. Ainda assim, a proporção de retratações femininas é menor do que a presença delas na produção acadêmica.
Enquanto fraude e plágio foram as causas mais frequentes de retratações dos homens, no caso das mulheres um dos motivos mais comuns nem sequer é de sua responsabilidade direta: 33% dos papers retratados que tinham mulheres como primeiro autor foram invalidados por erros cometidos no processo de edição, como fraude na revisão por pares. Os responsáveis pelo estudo, embora reconheçam que as causas da diferença de gênero permanecem imprecisas, atribuíram a dianteira masculina a uma postura profissional mais competitiva e arrogante deles, que fomentaria uma “cultura de negligência”. Uma das hipóteses que levantam é a de que os homens, que ocupam com mais frequência postos de liderança e posições de chefia, sofreriam mais pressão para publicar e, com isso, estariam mais propensos a cometer violações. Por isso, sugerem que a promoção da igualdade de gênero na ciência poderia ter um efeito positivo para melhorar os padrões de integridade porque as mulheres parecem ser mais cautelosas em suas práticas de publicação. Também apontam a necessidade de aliviar a pressão para publicar artigos em grande quantidade como critério de promoção na carreira de pesquisadores.
Em outro levantamento sobre diferenças de gênero nas retratações, uma equipe do Grupo de Estudos de Métodos de Análise Sociológica (Gemass) da Universidade Sorbonne, em Paris, na França, analisou 1 milhão de artigos armazenados no banco de dados OpenAlex e os cotejou com o banco de papers retratados do site Retraction Watch. Foram analisados estudos de autoria única, tanto de homens quanto de mulheres, e também de equipes de pesquisadores compostas por ambos os sexos ou por um único gênero. Equipes mistas com homens e mulheres apresentaram maior probabilidade de retratação do que equipes de um único gênero – só masculino ou só feminino. Grupos mistos liderados por mulheres apresentaram uma probabilidade menor – mas apenas ligeiramente – de sofrer retratações do que grupos mistos liderados por homens. O trabalho foi publicado em abril no periódico Quantitative Science Studies, da Sociedade Internacional de Cientometria e Infometria. Em resposta por e-mail ao Retraction Watch, os cinco autores corroboraram a ideia de que a incidência relativamente menor de retratações entre mulheres pode refletir uma abordagem mais cuidadosa por parte delas, enquanto os homens tenderiam a assumir comportamentos mais arriscados. Em sua interpretação, a cautela seria neutralizada quando a equipe mista é liderada por um homem, mas faria diferença quando a coordenação do grupo é feminina.
Os pesquisadores da Universidade Sorbonne apontaram uma limitação comum nesse tipo de estudo – que é a dificuldade de inferir com precisão o gênero dos autores com base em seus nomes – e sugeriram que os periódicos deveriam passar a incluir o sexo dos pesquisadores nos metadados nos papers. Eles identificaram a proporção relativa de homens e mulheres analisando os primeiros nomes, mas ficaram atentos a convenções específicas de cada país – reconhecendo casos como o de “Andrea”, tipicamente um nome feminino nos Estados Unidos (assim como no Brasil), mas tradicionalmente masculino na Itália. Segundo eles, ferramentas automatizadas apresentam resultados falhos na definição do sexo de autores em até 30% dos casos devido à presença apenas de iniciais ou de primeiros nomes ambivalentes.
Uma leitura menos otimista da disparidade de gênero nas retratações é feita pelo médico Paul Sebo, pesquisador da Universidade de Genebra, na Suíça. Para ele, o que tem mais força para explicar o fenômeno é a posição ainda subalterna que as mulheres têm na ciência, causada por uma dificuldade estrutural de ocupar funções proeminentes em equipes de pesquisa, o que implica baixa visibilidade de sua produção. “As mulheres têm baixa representação em cargos acadêmicos de alto nível, lideram menos projetos de pesquisa e, portanto, podem estar menos expostas aos tipos de responsabilidades e riscos que são comumente associados a retratações”, afirmou Sebo à revista Nature. Ele é o responsável por um estudo, divulgado na revista PLOS One, que analisou 878 artigos publicados em mais de uma centena de revistas médicas e retratados entre 2008 e 2017. Usando uma ferramenta de inteligência artificial para inferir o gênero dos autores, concluiu que apenas 16,5% dos primeiros autores e 12,7% dos últimos eram mulheres. Ao comentar os resultados do estudo a pedido da Nature, o linguista e especialista em escrita acadêmica Curtis Rice, ex-reitor da Universidade Norueguesa de Ciências da Vida, em Oslo, disse que o artigo de Sebo levanta questões relevantes, como o peso de homens e mulheres na negociação e definição da lista de autores de artigos e a atenção que a produção masculina e feminina recebe da comunidade científica. “Minha especulação é que, como os homens são mais visíveis na ciência em geral, seu trabalho está sendo mais escrutinado”, afirmou.
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