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ENTREVISTA

Guita Grin Debert: As várias fases do feminino

Estudiosa das questões de gênero e envelhecimento, antropóloga investiga no momento a pauta do cuidado e da velhice dependente

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

Os primeiros dados do Censo Demográfico de 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em julho, mostram que o país vem envelhecendo mais rápido do que o previsto. A informação não surpreendeu a antropóloga paulista Guita Grin Debert, uma das pioneiras no campo das ciências sociais no Brasil em estudos sobre a velhice, tema a que se dedica há quatro décadas.

A pauta do envelhecimento chamou a atenção da pesquisadora na década de 1980. Na época, ela fazia doutorado sobre nacionalismo no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP). Pouco antes de defender a tese, em 1986, escreveu um artigo a partir de entrevistas que havia realizado, por vontade própria, com oito mulheres idosas. Desde então, está imersa na temática. Em 2000, o livro A reinvenção da velhice – Socialização e processos de reprivatização do envelhecimento (Edusp, 1999) ficou em terceiro lugar na categoria Ciências Humanas e Educação do Prêmio Jabuti.

Idade 74 anos
Especialidade
Antropologia
Instituição
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Formação
Graduação em ciências sociais (1973), mestrado (1977) e doutorado (1986) em ciência política na Universidade de São Paulo (USP)

Debert lecionou no Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), entre 1984 e 2018, quando se aposentou. Mas segue vinculada aos Programas de Pós-graduação em Antropologia Social e em Ciências Sociais do IFCH, orientando pesquisadores. Além disso, participa do Pagu – Núcleo de Estudos de Gênero, da Unicamp, que coordenou entre 2007 e 2009.

No ano passado se tornou professora emérita daquela universidade. De acordo com o parecer da comissão especial que aprovou a concessão do título, Debert contribuiu não apenas para o desenvolvimento de estudos sobre velhice e gênero, como também para a institucionalização das ciências sociais no país. A pesquisadora foi, por exemplo, secretária adjunta da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), entre 1992 e 1996, e vice-presidente da Associação Brasileira de Antropologia (2000-2002). Também integrou a Coordenação de Área de Ciências Humanas e Sociais da Diretoria Científica da FAPESP (2007-2014).

Atualmente, Debert pesquisa a questão do cuidado e da velhice dependente. Em 2019 lançou o e-book Desafios do cuidado: Gênero, velhice e deficiência (Unicamp/IFCH), que organizou com a antropóloga Mariana Marques Pulhez. Viúva do médico Zelman Debert (1940-2021), é mãe de Paula, psicóloga, e Iara, oftalmologista, e avó de Tom, de 9 anos. Pouco antes de embarcar para um congresso na Costa Rica, recebeu Pesquisa FAPESP no apartamento onde vive sozinha, na capital paulista, para a entrevista a seguir.

Onde a senhora nasceu?
Em Santo André, na Região Metropolitana de São Paulo. Aos 9 anos me mudei para a capital com minha família, de origem judaica. Meus pais chegaram ao Brasil na década de 1920. Ele veio da Palestina e ela da Lituânia. Sou a filha mais velha. Minha irmã, Bila Sorj, é socióloga e professora aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro [UFRJ]. E meu irmão, Ezequiel Grin, é advogado, também aposentado. Meu pai tinha o curso técnico de química e minha mãe concluiu o ginásio [atual ensino fundamental II]. Eles não fizeram faculdade, mas valorizavam muito os estudos, queriam que os filhos estudassem.

Fui estudar ciências sociais para pensar em formas de mudar esse cenário tão desigual que marca o Brasil

O que seus pais faziam?
Minha mãe era dona de casa e meu pai tinha uma fábrica têxtil, primeiro em Santo André e depois em São Paulo. Na década de 1970, quando se aposentou, virou colecionador de artes plásticas. Estava sempre em contato com artistas. Aldemir Martins [1922-2006], Clóvis Graciano [1907-1988] e Alfredo Volpi [1896-1988] iam muito à minha casa, mas meu pai adorava visitar os ateliês para ver os trabalhos, saber o que estava acontecendo. Eu já era adulta nessa época e tinha um prazer imenso de estar com esses artistas, conversar com eles.

Por que foi estudar ciências sociais?
Queria entender melhor a realidade brasileira e pensar em formas de mudar esse cenário tão desigual que marca o Brasil. Ingressei em 1968, na USP. Dois anos antes havia morado em Jerusalém, Israel, quando estudei hebraico e viajei pelo país. Foi uma experiência muito interessante, mas que não se compara à minha entrada na faculdade. Ali, era o reino da liberdade onde podíamos conversar, propor ideias e estudar modelos de vida. Era um ambiente muito efervescente, apesar da crescente repressão da ditadura militar [1964-1985]. Na época, o curso de ciências sociais funcionava na rua Maria Antônia, em Higienópolis, e o prédio foi ocupado pelos estudantes em 1968. Em dezembro daquele ano surgiu a oportunidade de ir estudar na França, onde fiquei por volta de três anos. Entrei para fazer ciências sociais na Sorbonne, mas queria mesmo estudar linguística, disciplina que estava muito em voga naquele momento. Escolhi linguística como primeira opção e sociologia como segunda. Na época, Paris estava cheia de brasileiros, muitos eram exilados, mas também havia gente que estava ali por opção, porque não queria viver sob o jugo do regime militar. Até hoje tenho amigos daquela época.

Quando voltou ao Brasil?
Em 1972. A princípio, para passar um tempo, ver como estava a situação do país, matar saudade da família, mas acabei ficando em São Paulo. Como estava inscrita na USP, retomei no ano seguinte o curso de ciências sociais, que então havia sido transferido para a Cidade Universitária, no campus do Butantã. As aulas aconteciam em barracões, ainda não tinha a atual sede da FFLCH [Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas]. Foi quando conheci duas pessoas fundamentais na minha trajetória acadêmica: as antropólogas Ruth Cardoso [1930-2008] e Eunice Durham [1932-2022]. Elas ministravam aulas incríveis e me inspiraram a seguir carreira na antropologia. Eu me formei em 1973. Logo me casei e minha primeira filha, Paula, nasceu em 1975. Na época eu já estava no mestrado.

Arquivo pessoalDebert, de branco, na comemoração de sua livre-docência, em 1997, com os antropólogos (a partir da esquerda) Simone Coelho, Helena Sampaio, Ruth Cardoso e Gilberto VelhoArquivo pessoal

O que pesquisou no mestrado?
Fui orientada por Ruth Cardoso, que naquele momento estava no Departamento de Ciência Política da USP. Adorava seu senso de humor transgressor, irreverente. Na pesquisa, analisei discursos de líderes políticos antes do golpe de 1964: Miguel Arraes [1916-2005], Leonel Brizola [1922-2004], Carlos Lacerda [1914-1977] e Adhemar de Barros [1901-1969]. Investiguei o significado da palavra “povo” nesses quatro casos. Para Lacerda, por exemplo, povo era quem pagava impostos, enquanto para Arraes estava nas mãos do povo a capacidade de lutar e derrotar o imperialismo. Terminei o mestrado em 1977.

Na sequência a senhora foi para o Reino Unido?
Meu marido, Zelman, era médico. Na época, ele trabalhava com o sanitarista Walter Leser [1909-2004], que era então secretário estadual da Saúde de São Paulo. Em 1977, Zelman foi fazer uma especialização na Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres e levou a família. Quando eu estava no mestrado, havia assistido a uma conferência que o [teórico político argentino] Ernesto Laclau [1935-2014] fez em São Paulo, a convite do Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento]. Ele tinha uma visão muito interessante a respeito do populismo, de que havia muitas formas de tratar o conceito e não apenas pela chave da manipulação dos interesses de classe. Laclau aceitou orientar minha pesquisa de doutorado na Universidade de Essex [Reino Unido] para estudar o nacionalismo no Brasil dos anos 1960, antes do golpe militar. Um ano depois de chegar a Londres fiquei grávida da minha segunda filha, Iara. Por causa disso, eu e meu marido resolvemos voltar para o Brasil.

Foi através da companheira de Laclau, a filósofa e cientista política belga Chantal Mouffe, que a senhora entrou em contato com o feminismo?
Sim. Laclau trabalhava em Essex, mas morava em Londres, assim como eu. Conversávamos muito no trem, no trajeto de ida e volta. Tínhamos uma ótima relação e morávamos perto. Ele costumava nos convidar para jantares em sua casa. Chantal estava muito envolvida com o feminismo e nesses encontros me dava as dicas, dizendo: “Você não pode deixar de ver ou ler tal coisa”. Em Londres as questões de gênero estavam pegando fogo naquela segunda metade dos anos 1970. Voltei ao Brasil muito entusiasmada com essas ideias e vi que as discussões já estavam acontecendo aqui também.

Onde, por exemplo?
Minha irmã, que era então professora da UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais], tinha começado a estudar violência de gênero e o feminicídio de Ângela Diniz [socialite mineira morta com quatro tiros, em dezembro de 1976, pelo namorado Raul Fernando do Amaral Street, o Doca Street, em Búzios, litoral do Rio de Janeiro]. Bila é uma das pioneiras em estudos de gênero no Brasil e, inclusive, chegou a participar das manifestações pela condenação do assassino no início dos anos 1980. Lembro que nessa época, década de 1970, Mariza Corrêa [1945-2016] e Heloísa Pontes, ambas antropólogas, já pesquisavam feminismo na Unicamp. E Ruth Cardoso tinha um grupo de estudos de gênero na USP, desde o final dos anos 1970. Não era nada formal, mas reunia muitas pessoas interessadas nessa questão, como a antropóloga Teresa Caldeira, que no mestrado pesquisou movimentos de mulheres em bairros da periferia paulistana.

Mas a senhora não foi por esse caminho no doutorado.
Retomei na USP a pesquisa de doutorado que interrompi na Inglaterra. A tese, também orientada por Ruth Cardoso, foi um desdobramento do mestrado. Estudei o Iseb [Instituto Superior de Estudos Brasileiros], que era alinhado à esquerda, e a Escola Superior de Guerra [ESG], posicionada à direita, para entender as disputas políticas no país que precederam o golpe de 1964. Minha pesquisa aponta que ambas as instituições desejavam um crescimento econômico acelerado para o Brasil. Além disso, Cuba era um elemento presente nos dois lados. O Iseb avaliou os dilemas do modelo da revolução cubana, enquanto a ESG defendia a formulação de uma espécie de Plano Marshall para que o Brasil não “virasse Cuba”. Eu concluí o doutorado em 1986, mas minha cabeça de pesquisadora já estava em outro lugar.

Em Londres as questões de gênero estavam pegando fogo nos anos 1970. Quando voltei ao Brasil, vi que essas discussões já aconteciam aqui

Quando a senhora se interessou pela questão do envelhecimento?
Ainda durante o doutorado, na década de 1980. Como disse, vários orientandos de Ruth Cardoso estavam trabalhando a questão de gênero e eu estava muito interessada nessa temática. Mas precisava terminar a tese, que já estava bem avançada. Pouco antes de defender a pesquisa, entrevistei, por conta própria, oito mulheres de classe média que tinham 70 anos ou mais. Algumas delas abordei no parque Jardim da Luz, no centro de São Paulo. Outras foram indicadas por amigas, que me recomendavam as próprias avós, por exemplo. Na época, eu estava na faixa dos 30 anos. Queria entender a especificidade da situação da mulher na velhice, momento em que a reprodução e o cuidado com os filhos pequenos não eram mais a marca definidora do ser feminino.

Como foi a entrada nesse universo?
Entrei cheia de ideias preconcebidas. Como se sabe, entrevistas fazem parte do trabalho dos antropólogos, mas nem sempre rendem um bom material. Nesse caso, ouvi muitas coisas interessantes. Essas mulheres me contaram, por exemplo, que se sentiam livres, principalmente depois que ficaram viúvas. E que, para elas, o trabalho doméstico não era um símbolo da opressão feminina: poder realizá-lo mostrava que tinham a autonomia e a independência que negavam o envelhecimento. Na opinião delas, os homens brasileiros envelheciam de forma prematura em razão da sua dependência do trabalho feminino. Na época, a socióloga Eva Blay me convidou para apresentar essas entrevistas em forma de artigo em um seminário que organizou sobre histórias de vida na USP, onde lecionava. Logo depois Anne-Marie Guillemard, também socióloga, que pesquisava o tema desde a década de 1970 na França, perguntou a Ruth Cardoso se ela conhecia alguém que estava trabalhando com velhice no Brasil. Era para falar em um congresso internacional no México, onde aconteceria uma reflexão sobre o tema em várias partes do mundo. Fui para lá apresentar as conclusões do meu artigo. Isso me abriu portas e mergulhei nesse assunto desde então.

Quem pesquisava essa temática no Brasil?
Pouca gente nas ciências sociais. A antropologia, por exemplo, se preocupava com a situação dos idosos nas ditas sociedades primitivas, mas não olhava para o contexto urbano e contemporâneo. Uma das pesquisadoras que estavam interessadas nessa temática, com recorte urbano e contemporâneo, era a antropóloga Myriam Lins de Barros. Ela defendeu sua dissertação de mestrado “Testemunho de vida: Um estudo antropológico de mulheres na velhice”, na UFRJ, em 1980. No meu caso, um momento importante aconteceu em 1989, quando fui fazer pós-doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos. Tinha muita coisa interessante para ler sobre a velhice na biblioteca de antropologia. Dentre o material que encontrei lá, uma grande inspiração foram os trabalhos do sociólogo inglês Mike Featherstone, que discutia como o envelhecimento ativo estava sendo constituído na sociedade contemporânea, impondo a obrigação da juventude. Posteriormente eu o convidei para vários eventos acadêmicos no Brasil.

A senhora passou um ano na Califórnia?
Oito meses. Minhas filhas, que estavam no início da adolescência, ficaram três meses comigo. Elas iam para a escola e eu ficava imersa na biblioteca, lendo tudo o que podia sobre velhice. Também conheci muitos pesquisadores, como Donna Goldstein, antropóloga. Na época, ela fazia doutorado em Berkeley e pesquisou o engajamento de mulheres contra HIV/Aids no Rio de Janeiro. Ficamos amigas. Em 2000 organizamos o livro Políticas do corpo e o curso da vida [Editora Sumaré], compilação de artigos apresentados em dois eventos que realizamos na Unicamp, dois anos antes, com foco no envelhecimento. Esse período na Califórnia foi muito gostoso, mas passei um susto quando um terremoto atingiu São Francisco [a 22 quilômetros de Berkeley] e deixou mais de 60 mortos na cidade. Os efeitos do tremor foram brandos em Berkeley, mas, mesmo assim, fiquei apreensiva, sem saber direito o que fazer.

Em geral, a tarefa do cuidado recai sobre as mulheres e algumas delas, inclusive, são idosas. Ou seja, são idosos cuidando de idosos

Foi esse estágio de pós-doutorado que originou o livro A reinvenção da velhice (1999)?
O livro é resultado de mais de 10 anos de pesquisa, iniciada com as entrevistas que fiz com as oito mulheres idosas na década de 1980. Trata-se de uma versão retrabalhada da minha tese de livre-docência, que defendi em 1997, na Unicamp. Meu objetivo foi tentar entender as novas formas de pensar a velhice que emergiam naquele momento e mostrar os conflitos envolvidos na reinvenção do envelhecimento por meio de três atores: os gerontólogos e outros especialistas, as pessoas idosas e a mídia. Na década de 1980 proliferaram no Brasil programas voltados para idosos, como as universidades para a terceira idade.

Essas iniciativas não eram positivas?
Sim, no sentido de estimular o convívio social e transformar o idoso em um sujeito político. Porém a visibilidade conquistada pelas experiências inovadoras e bem-sucedidas fechava o espaço para se discutir situações de abandono e dependência. Essas situações passavam a ser vistas como consequência da falta de envolvimento em atividades motivadoras ou da não adoção de formas de consumo e estilo de vida adequados. Na pesquisa que realizei ao longo de mais de 10 anos ouvi mulheres e homens velhos de várias classes sociais. Pessoas casadas, viúvas, solteiras, que moravam sozinhas, com cônjuge, com a família ou em asilo. Resumindo, as mulheres tinham medo da falta de autonomia, enquanto os homens temiam a perda da lucidez.

Na década de 1980 a senhora também começou a pesquisar violência de gênero. Como isso se deu?
Logo após o doutorado passei a integrar o Cedac [Centro de Estudos e Documentação para a Ação Comunitária], criado por Ruth Cardoso, Eunice Durham e [o sociólogo] José Augusto Guilhon Albuquerque, na década de 1980, em São Paulo. Naquele momento, a socióloga Jacqueline Pitanguy estava à frente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher [CNDM], no governo José Sarney [1985-1990]. Ela queria entender o que acontecia com quem fazia denúncia nas delegacias da mulher, que começaram a surgir no país em 1985. No ano seguinte, Jacqueline contratou o Cedac para fazer uma pesquisa, que foi realizada por mim e pela antropóloga Danielle Ardaillon. Ao longo de 1986 analisamos processos judiciais envolvendo estupro, espancamento e feminicídio em seis capitais brasileiras, como São Paulo, Belo Horizonte e Recife, para entender a lógica dos argumentos da defesa e da acusação nos processos penais.

O que concluíram?
No caso de estupro, a vítima era colocada sob suspeita. Ou seja, de que ela teria provocado a situação ou então inventado o crime para culpar o homem. Em relação ao espancamento e feminicídio, a legítima defesa da honra do homem era usada para justificar essas ocorrências. O estudo virou livro, Quando a vítima é mulher [CNDM, 1987], e foi muito divulgado pelo Conselho. Durante a pesquisa tivemos assessoria de Mariza Corrêa e da antropóloga Maria Filomena Gregori, a Bibia. A dissertação de mestrado de Mariza, “Os atos e os autos: Representações jurídicas de papéis sexuais”, defendida em 1975, na Unicamp, gerou dois importantes livros: Os crimes da paixão [Brasiliense, 1981] e Morte em família [Graal,1983]. Já Bibia fazia na época sua pesquisa de mestrado sobre o cotidiano do grupo feminista SOS-Mulher, de São Paulo. O trabalho, defendido em 1988, na USP, rendeu o livro Cenas e queixas [Paz e Terra, 1992].

A velhice dependente que necessita de cuidadores em tempo integral é tabu em sociedades como a nossa

A senhora já era professora da Unicamp?
Comecei minha carreira de docente na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo [PUC-SP] no início dos anos 1980. Em 1984 me tornei professora da Unicamp, onde sempre foi muito forte a pesquisa antropológica com viés contemporâneo e urbano. Na época, eu tinha apenas mestrado. Na Unicamp me envolvi com o Pagu – Núcleo de Estudos de Gênero, criado em 1993, por pesquisadoras como Mariza Corrêa, que sempre foi um espaço muito interessante de debate. Ali desenvolvi, entre outros, o projeto temático “Gênero e corporalidade” [2004-2008], com financiamento da FAPESP. Ao lado da pesquisa, dar aulas é minha grande paixão. Estou aposentada, mas continuo orientando trabalhos na graduação e na pós-graduação da Unicamp.

O que está pesquisando atualmente?
Meu foco hoje é a questão do cuidado. No momento, participo do projeto internacional “Who cares? Rebuilding care in a post-pandemic world”, apoiado pela FAPESP, entre outras instituições, e coordenado por Nadya Araújo Guimarães, do Departamento de Sociologia da USP e pesquisadora do Cebrap. Sou uma das responsáveis pelas análises acerca do cuidado de idosos no contexto antes, durante e depois da pandemia de Covid-19. O projeto, que está em andamento e deve ser concluído em 2025, também conta com pesquisadores do Reino Unido, Canadá, Colômbia, França e Estados Unidos. Além disso, desenvolvo um projeto financiado pelo CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], “Velhice e a responsabilidade familiar”. Em geral, a tarefa do cuidado recai sobre as mulheres e algumas delas, inclusive, são idosas. São idosos cuidando de idosos.

Como surgiu o interesse por esse recorte?
Como a população de idosos está crescendo muito, a questão do cuidado passou a ser central [ver Pesquisa FAPESP nº 299]. Em 2012 fui contemplada pelo programa Erasmus Mundus, financiado pela União Europeia, para uma especialização em estudos de gênero. Isso englobava ministrar aulas na Universidade de Bolonha [Itália] e realizar uma pesquisa de campo naquela localidade. Minha ideia inicial era fazer uma pesquisa sobre mulheres que saíam do Peru e do Equador para cuidar de idosos na Itália. Mas quando cheguei lá percebi que o maior fluxo dessas trabalhadoras vinha do Leste Europeu, da antiga União Soviética, sobretudo da Moldávia. Eram mulheres muito qualificadas profissionalmente, formadas em cursos como engenharia. Mas, como ganhavam pouco onde viviam, migravam para a Itália em busca de melhores salários. Venho pesquisando as questões de cuidado desde então. Em 2019 lancei o e-book Desafios do cuidado: Gênero, velhice e deficiência [Unicamp/IFCH], organizado em parceria com Mariana Marques Pulhez, que foi minha orientanda no mestrado e doutorado. Trata-se de uma coletânea de artigos, assinados por pesquisadores estrangeiros, que abordam a questão do cuidado e da velhice dependente no mundo. Entre outros assuntos discute-se a situação dessas trabalhadoras oriundas das Filipinas, grande exportadora de cuidadoras para a Europa, Estados Unidos e Japão.

O feminismo refletiu sobre a velhice?
Acho que não se pensou como deveria, há uma lacuna até hoje. O feminismo permanece muito focado na fase reprodutiva da mulher e é preciso ampliar essa visão. No livro A velhice: Realidade incômoda, publicado no Brasil em 1970, Simone de Beauvoir [1908-1986] fala que queria quebrar a “conspiração do silêncio” em torno desse assunto. Desde então, o mundo mudou muito, claro. Hoje se fala muito mais da velhice, da velhice ativa, da terceira idade, das pessoas idosas com alto nível de autonomia que podem participar ativamente de atividades de lazer, das universidades para a terceira idade, mas a velhice dependente, que necessita de cuidadores em tempo integral, continua sendo um assunto tabu em sociedades como a nossa, que cultuam a juventude.

O que gosta de fazer nos momentos de lazer?
Meu esporte preferido é a caminhada. Recentemente li Um defeito de cor [Editora Record, 2006], de Ana Maria Gonçalves, e fiquei fascinada por esse livro que acompanha a saga de Kehinde, uma menina que é sequestrada na África para ser escravizada no Brasil no século XIX. Aqui, ela conquista a liberdade, vê o filho ser vendido pelo pai da criança e volta para a África, já idosa. Em termos culturais, sou bem eclética. Ouço música erudita e popular. Meus compositores favoritos são Gilberto Gil e Chico Buarque. No cinema vejo tanto dramas franceses quanto comédias norte-americanas. Adoro ir ao teatro e também assisto a séries. Gostei muito de Sintonia, porque trata de questões centrais do Brasil contemporâneo: o crime organizado, a expansão de religiões evangélicas e a música funk. É pura antropologia.

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