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Resenha

Uma caçada transcontinenal

Resgate de um estudo pioneiro amplia conhecimento sobre o movimento gay no país

“Da ousadia de Florestan Fernandes, para quem o segmento homossexual era um grupo específico dentro da sociedade mais ampla e não pessoas portadoras de uma patologia, como até então eram pensados no Brasil, e do acesso de Barbosa da Silva ao círculo social composto de homossexuais de classe média em que convivia, abria-se a possibilidade para que o primeiro estudo sociológico moderno sobre homossexualidade fosse feito em São Paulo”. Esse comentário de Ronaldo Trindade (páginas 253-254), responsável junto com James N. Green pela organização de Homossexualismo em São Paulo e outros escritos, resume com fina precisão tanto o status acadêmico de Aspectos Sociológicos do homossexualismo em São Paulo, de José Fábio Barbosa da Silva – texto que é o pretexto fundamental para a publicação do livro em questão -, quanto a situação singular que permitiu sua elaboração, em 1958, como monografia de especialização em Sociologia na Universidade de São Paulo (USP).

Vale a pena, antes de seguir alguns percursos, dos anos 1950 ao presente, e de entrar em territórios geográficos e simbólicos da comunidade gay masculina na cidade de São Paulo apresentados por diferentes pesquisadores dessa temática, tomar conhecimento das peripécias em que se meteu Green para resgatar o trabalho pioneiro e inédito de Barbosa da Silva que pareceia perdido para sempre. Já no prefácio do livro, o antropólogo Peter Fry observa que durante muitos anos os estudiosos da homossexualidade sabiam da existência do trabalho de Barbosa da Silva, que supunham ser uma dissertação de mestrado orientada por Florestan Fernandes, cuja defesa fora feita ante uma banca em que estavam também os sociólogos Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni. Entretanto, como destaca Fry, foram a persistência obsessiva e uma certa vocação de detetive de Green, um historiador, que permitiram arrancar literalmente das sombras em que fora enfiada a monografia de Barbosa da Silva.

Green, é ele mesmo quem relata, viu pela primeira vez uma referência ao trabalho de Barbosa da Silva em 1979 e foi procurá-la inicialmente na Faculdade de Filosofia da USP, onde todas as teses lá defendidas, por norma, devem estar registradas. Não encontrou nada além da informação de que o autor, àquela altura, morava nos Estados Unidos. Por longos 15 anos, deixou de lado o assunto. Em 1993, de volta ao Brasil para a pesquisa de sua tese de doutorado na Universidade da Califórnia, sobre a história da homossexualidade masculina no Rio e em São Paulo, mais uma vez ele se bateu com citações ao trabalho de Barbosa da Silva. Voltou às bibliotecas, à USP, à Escola de Sociologia e Política, enfim, a todos os lugares onde poderia ter uma pista que fosse. Encontrou nesta última, é verdade, uma dissertação de mestrado de seu personagem sobre o Padre Cícero e Juazeiro do Norte o que só o deixou desnorteado, mais intrigado e frustrado. Teria ele feito duas dissertações de mestrado. Em 1997, o acaso, uma vez mais, o colocou ante Barbosa da Silva, ou melhor, com as mãos no artigo sobre os homossexuais que ele publicara na revista Sociologia ainda na década de 1960. Retomou as investigações que dessa vez o levaram ao autor, nos Estados Unidos. E desembocaram num final feliz quando, finalmente, ele recebeu um pacote com o tão desejado texto, datilografado em cerca de 150 páginas.

É exatamente esse trabalho o texto central de Homossexualismo em São Paulo e, por meio dele, ultrapassado o capítulo sobre fundamentação teórica e metodologia da pesquisa, tomamos conhecimento sobre lugares de freqüência, práticas de sociabilidade, práticas amorosas e sexuais, estratégias de preservação, jargão, dentre uma imensa gama de outros aspectos que servem para compor um retrato rico e multifacetado de uma parcela importante dos homossexuais na São Paulo dos anos 50, traçado em linguagem surpreendentemente clara, às vezes crua.

Na abertura da segunda parte do livro, sob o título Outros olhares, um texto contemporâneo de Barbosa da Silva, professor emérito na Universidade de Notre Dame, lança um olhar crítico sobre sua produção tão remota. Lembra aí que o modelo de estudo científico utilizado por Florestan Fernandes era clássico e explicita logo a seguir que, no caso,o modelo teórico era o estrutural funcionalismo, baseado principalmente nos trabalhos de Emile Durkheim, Marcel Mauss e Malinowski, ao qual Florestan adicionou uma dimensão marxista. Ou seja, a orientação do mestre lhe permitiu uma abordagem bem diferente das histórica e cultural e médico-psicológicas que na época prevaleciam sobre os estudos de homossexualidade.

Os outros ensaios que compõem a segunda parte do volume tem por autores Ronaldo Trindade, que examina o mundo acadêmico na USP e, especialmente, a contribuição de Florestan para a sociologia no país; Néstor Perlongher (falecido em 1992), que baseado em Giles Deleuze e Félix Guattari envereda com seu estilo original, sofisticado e polêmico pelos territórios marginais de encontros entre michês e entendidos na São Paulo dos anos 70, ampliando para muito além dos limites geográficos a noção de territorialidade; Edward MacRae, que, observando os anos 70 e 80 move-se Em defesa do gueto e, para encerrar, Júlio Assis Simões e Isadora Lins França que em Do gueto ao mercado examinam a expansão e a diversificação dos territórios dos homossexuais na cidade desde os anos 80 até o presente.

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