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Nutrição

Impactos da desnutrição no desenvolvimento infantil

A pesquisadora guatemalteca Gabriela Montenegro-Bethancourt defende que dietas não podem ser generalizadas, mas sim adaptadas conforme contextos culturais

A saúde de populações que vivem no campo e de comunidades indígenas maias são os principais focos dos estudos da nutricionista

Christina Queiroz / Revista Pesquisa FAPESP

Com 46,7% de sua população de crianças menores de 5 anos registrando atrasos de crescimento, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a Guatemala é hoje o país onde essa situação é mais grave na América Latina. Empenhada em reverter esse cenário, há 20 anos a nutricionista e cientista de alimentos guatemalteca Gabriela Montenegro-Bethancourt pesquisa a desnutrição, sendo que em anos recentes seus focos têm sido os impactos da insegurança alimentar no desenvolvimento infantil e em comunidades rurais indígenas maias. Bethancourt é pesquisadora da Maya Health Alliance Wuqu’Kawoq, organização criada há 15 anos para oferecer cuidados de saúde a comunidades indígenas, por meio do trabalho articulado entre médicos, enfermeiros, antropólogos, linguistas, nutricionistas, engenheiros, profissionais da saúde pública, advogados, empresários e agentes comunitários.

Além disso, a gualtemalteca é pesquisadora do Centro de Estudos de Deficiência Sensorial, Envelhecimento e Metabolismo, organização não governamental (ONG) que desde 1985 elabora estudos sobre educação e nutrição na América Latina. Por conta dessa trajetória, em 2023, a nutricionista foi uma das sete candidatas agraciadas com o Prêmio para Mulheres Cientistas Iniciando sua Carreira no Mundo em Desenvolvimento, concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a Fundação Elsevier. Montenegro-Bethancourt conversou com Pesquisa FAPESP durante a 12ª Conferência Mundial de Jornalistas de Ciência (WCSJ), realizada no final de março na cidade colombiana de Medellín.

Como surgiu seu interesse pelas ciências da nutrição?
Na década de 1980 eu trabalhava como higienista dental em comunidades rurais da Guatemala. Nessa época, fiquei impactada com a precariedade da saúde de crianças que viviam no campo, principalmente de comunidades indígenas maias. Mais tarde, em 1990, ganhei bolsa para fazer um curso técnico de engenharia eletrônica biomédica no Berkshire Community College, em Massachusetts, nos Estados Unidos. Eu finalizei os estudos, mas acabei desistindo da carreira e voltei para meu país decidida a estudar nutrição, ciência que me permitiria combinar atividades de pesquisa com uma atuação humanitária. Ingressei na graduação na Universidade San Carlos de Guatemala, onde me formei em 1999. Em 2004, defendi o mestrado na Universidade Livre de Amsterdã, nos Países Baixos, com dissertação sobre o consumo de frutas e verduras por estudantes que moravam na área urbana da cidade de Quetzaltenango, na Guatemala. Por meio da pesquisa, identifiquei que as crianças em idade escolar do município não estavam ingerindo líquidos em quantidade suficiente. Em 2011, consegui uma bolsa do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico para fazer doutorado na Universidade de Bonn.

O que pesquisou?
Estudei a aplicação e o uso não invasivo de biomarcadores urinários em pesquisas epidemiológicas sobre nutrição infantil, olhando especialmente para os impactos da ingestão de iodo e líquidos na saúde de crianças. A baixa hidratação e o consumo inadequado de iodo causam impactos à saúde e ao desempenho cognitivo no longo prazo. Analisei biomarcadores urinários para investigar padrões alimentares de crianças, utilizando o banco de dados Dortmund Nutritional and Anthropometric Longitudinally Designed Study, que contém informações sobre dieta, crescimento e metabolismo de crianças saudáveis desde o nascimento até a idade adulta. Tanto no mestrado como no doutorado minha proposta foi identificar como fatores demográficos, geográficos e ambientais afetam a saúde e a dieta de jovens e crianças. Depois de finalizar a tese, voltei à Guatemala e coordenei um amplo estudo comparativo entre meu país, a Colômbia e o Peru sobre como prevenir a desnutrição crônica em crianças de até 2 anos e reduzir o risco de obesidade em adultos.

Quais são os seus interesses de pesquisa?
Meu principal foco tem sido compreender os impactos da alimentação saudável precoce no decorrer de todo o desenvolvimento infantil. A ideia é pensar esse desenvolvimento para além de indicadores antropométricos, que se baseiam em ganhos de estatura e peso. Em todo o mundo, os indicadores mais utilizados para fazer diagnósticos nutricionais são antropométricos. Em geral, entende-se que se uma pessoa tem peso e estatura adequados à idade significa que está bem nutrida. Para além desses parâmetros, eu quero entender, por exemplo, como a alimentação afeta o desenvolvimento motor e cognitivo de crianças e seus efeitos na vida adulta.

O que pode explicar a baixa estatura da população guatemalteca?
A população da Guatemala tem a estatura média mais baixa do mundo e os Países Baixos a mais alta. Para se ter uma ideia, nesse país europeu, a média para uma menina de 11 anos é de 149 centímetros, altura que corresponde à média de uma garota de 19 anos na Guatemala, segundo análise realizada em 2016 pelo Imperial College de Londres. O estudo mostra que mulheres guatemaltecas são as mais baixas dentre 193 países analisados. Além disso, um homem de 19 anos nos Países Baixos mede 183 centímetros, enquanto a medida equivalente dos guatemaltecos é de 164 centímetros, ou seja, há uma diferença grande. Sabemos que questões genéticas podem explicar parte dessa situação, mas elas não justificam tudo, como alguns pesquisadores procuram defender. Recentemente, conversei com uma pessoa que trabalhou no Ministério da Saúde da Guatemala e ela me questionou: “Mas qual é o problema de os guatemaltecos terem baixa estatura?”. Eu respondi que o problema não é a questão estética, mas sim o fato de essa altura reduzida refletir atrasos em marcos fundamentais do desenvolvimento desses indivíduos.

E quais são os outros fatores, além dos genéticos?
Estamos investigando. Sabemos, por exemplo, que pessoas em condições de pobreza e expostas a infecções recorrentes ou então vítimas de desnutrição crônica tiveram o crescimento afetado por essas situações. Crianças sem acesso a serviços básicos de saúde, saneamento, higiene e alimentação ficam doentes de forma recorrente, especialmente nos primeiros dois anos de vida, etapa de desenvolvimento mais acelerada de toda a vida. Muitas crianças de comunidades rurais indígenas descendem de mães jovens, que são baixas não por causa de condições genéticas, mas sim porque não viveram em condições adequadas de saúde e alimentação e, desde bebês, apresentam deficiência na estatura. É preciso romper esse ciclo intergeracional de saúde e educação precárias para que as crianças guatemaltecas conquistem um ciclo de crescimento adequado.

Quais as consequências da má nutrição no curto e longo prazo?
Existem diferentes tipos de má nutrição. Uma criança com peso baixo, por exemplo, pode estar sofrendo um quadro agudo e pontual de desnutrição e fome. Porém atrasos em seu desenvolvimento refletem os efeitos de uma desnutrição crônica, causados pela falta recorrente e prolongada de acesso à comida e a condições básicas de saúde. Quando a desnutrição é crônica, as crianças param de se desenvolver conforme a curva esperada de crescimento.

E qual o principal desafio para melhorar a alimentação das crianças na Guatemala?
Somos um grande produtor de comida. Nosso principal problema é a falta de acesso físico e econômico a alimentos em quantidade e qualidade suficientes, além do fato de que muitos dos itens cultivados são exportados. Além disso, populações rurais que se alimentam de sua própria produção têm sido afetadas pelas mudanças climáticas e por situações extremas de seca. Sem água não há segurança alimentar.

No Brasil, relatório da ONU divulgado em julho mostrou que o país tem mais de 21 milhões de indivíduos passando fome.
Quando há pessoas com fome, como está acontecendo no Brasil, investir na distribuição de comida é uma forma de amenizar a situação, mas essa é uma medida paliativa. É preciso adotar, também, iniciativas estruturais e políticas públicas de longo prazo, que permitam melhorar o acesso a alimentos em quantidade e qualidade suficientes. Na Guatemala, assim como no Brasil, existem os chamados desertos alimentares, nos quais a comida que está mais acessível não é a de melhor qualidade e onde as pessoas costumam consumir alimentos processados. Em certas regiões da Guatemala, para que seja possível adquirir alimentos de qualidade, é preciso cruzar zonas de conflito. Então, as pessoas acabam por comer o que está disponível.

A pandemia piorou a insegurança alimentar na Guatemala?
As áreas mais afetadas foram as periferias urbanas. Muitas delas criaram cordões sanitários, se fecharam e não deixavam ninguém de fora entrar e nenhum morador sair. Com isso, as pessoas não podiam comprar comida. Por outro lado, muitas comunidades agrícolas isoladas que só consumiam os alimentos que produziam permaneceram em situação de segurança alimentar. A pandemia deixou evidente que nosso sistema nacional de segurança alimentar é frágil e desigual e que não estamos preparados para responder a crises como essa.

Quais os impactos da falta de nutrientes no desenvolvimento infantil?
Estamos realizando um estudo com 1,2 mil bebês da região indígena maia da etnia Kaqchikel. Ali, as crianças com 6 a 9 meses já apresentam atrasos de crescimento e somente 12% delas têm uma dieta adequada para sua idade, apesar de que 97% delas recebem aleitamento materno. Estamos analisando a relação entre a carência de nutrientes e atrasos no desenvolvimento em um sentido amplo, abarcando habilidades cognitivas, socioemocionais e de linguagem e não apenas medidas antropométricas. Queremos identificar quais são os efeitos de adicionar um ovo por dia na dieta dessas crianças, observando se essa iniciativa também causa impactos em fatores cognitivos. As crianças que fazem parte da análise têm entre 6 e 9 meses e fazemos a intervenção com o ovo durante seis meses em 600 delas, sendo que a outra metade fica como grupo de controle. Todas estão recebendo atendimento nutricional por meio de visitas domiciliares, com atendimento em línguas indígenas, nas quais oferecemos micronutrientes conforme a necessidade de cada família, ensinamos receitas com ingredientes locais e monitoramos seu crescimento. O estudo deve ser concluído nos próximos meses. Porém quando olhamos para marcos específicos, como motricidade e linguagem, notamos que essas deficiências persistem. Isso significa que esses atrasos estão relacionados, também, com outras questões além da nutrição, como a falta de estímulos e interação com familiares e outras crianças. Por exemplo, algumas mães costumam carregar seus bebês nas costas durante muito tempo para poder trabalhar e, assim, acabam conversando ou brincando pouco com eles. Esse também é um fator que pode estar afetando o desenvolvimento.

Que desafios países latino-americanos têm em comum?
Cuidar da questão da fome e da segurança alimentar é fundamental para que seja possível atingir todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável [ODS]. Sem uma população bem alimentada, é impossível conquistar outras metas. E não se resolve o problema da fome com uma pílula mágica de nutrição. É preciso criar um esforço de construção de longo prazo. Na minha visão, a fome zero é o ODS mais difícil de ser alcançado, está diretamente associada com a estrutura socioeconômica de países e aos níveis de desigualdade, de forma que, além de avanço científico e vontade política, também demanda o empenho de diferentes setores da sociedade.

E em relação à América Latina?
Somos um continente muito diverso. Somente na Guatemala, temos ao menos 23 grupos indígenas, contamos com uma diversidade cultural enorme em um espaço geográfico pequeno. E essa diversidade se reflete na dieta das populações. Por isso, em primeiro lugar, as dietas recomendadas não podem ser generalizadas. É preciso adaptá-las a contextos e culturas específicos. Além disso, sabemos que a diversidade alimentar é importante para garantir que as pessoas estejam bem nutridas. Essa diversidade envolve o consumo de distintos grupos alimentares, reunidos de acordo com seus nutrientes e calorias. Em nosso trabalho com comunidades rurais, mostramos 10 grupos de alimentos para pessoas desnutridas e pedimos para elas escolherem itens de pelo menos cinco deles, como forma de garantir uma alimentação balanceada. A base da alimentação indígena da Guatemala é o feijão e o milho, que pertencem a dois grupos distintos. Então, costumamos dizer a eles: vocês já consomem alimentos de dois grupos, vamos passar a comer ingredientes de outros três? E mostramos diferentes alternativas para que as escolham conforme seus hábitos e possibilidades de acesso. Nesse contexto, as recomendações da ONU, por exemplo, para reduzir o consumo de carnes e laticínios de modo a diminuir a pressão sobre a biodiversidade e a crise climática são contraditórias e difíceis de serem implementadas, porque muitas vezes o acesso a esses produtos é o único caminho que algumas pessoas têm de melhorar seu estado nutricional e sua saúde. Poucos, hoje, têm acesso a recursos para comprar leite de amêndoas e substituir o leite bovino. Assim, na América Latina e em outras regiões em desenvolvimento, a redução da insegurança alimentar passa necessariamente pelo conhecimento de realidades locais e dos contextos de desigualdade de cada país.

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