Em uma quinta-feira da segunda semana de março de 2020 liguei para a minha mãe, que tem 78 anos, e avisei: “É melhor a senhora não vir para a aula de programação de games hoje”. Lembro-me de que ela perguntou o motivo e comentei que havia um vírus novo circulando e não convinha pegar o metrô. Ela é uma das alunas do curso para idosos de desenvolvimento de games, que criei com o objetivo de melhorar a memória, a concentração e a cognição deles. A metodologia das aulas foi desenvolvida e validada durante a primeira fase do Pipe [Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas] da FAPESP, entre 2016 e 2017. Quando a pandemia chegou, estávamos terminando a segunda fase do Pipe, que previa a continuação das aulas e o desenvolvimento de um aplicativo de games para ajudar a saúde mental dos idosos. Naquela mesma quinta-feira liguei para os outros alunos – eram cerca de 50 – e avisei que as aulas presenciais na nossa startup, a ISGAME, [International School of Game], estariam suspensas, mas que as coisas deveriam voltar ao normal na semana seguinte. Claro que não voltaram.
Ainda em março procuramos uma maneira de continuar as aulas, de forma on-line. Criei, então, um curso de orientação tecnológica para eles, já que muitos não sabiam mexer em ferramentas de videoconferência. Os alunos têm, em média, 70 anos, mas a faixa etária varia – tem um ou outro de 40 anos, que nos procurou porque queria melhorar a memorização, e temos alunos de até 85 anos muito ativos. Ligamos para cada um deles e explicamos o passo a passo de como baixar esses programas, compartilhar a tela, usar a câmera. Fizemos um treinamento e a cada momento percebíamos uma nova necessidade. Até voltarmos com as aulas de programação foram cerca de seis meses.
Demoramos para fazer a transição para o modo on-line porque o modelo tradicional de EAD [ensino a distância] não é adequado para nossos cursos, nos quais o professor precisa interagir e os alunos também precisam conversar entre eles. A nossa metodologia foi criada prevendo essa parte de interação como um componente muito importante. Quando a pandemia veio, lidamos com o desafio de reproduzir isso no ambiente virtual. Para resolver a questão, definimos que as turmas teriam no máximo 20 alunos por sala e trabalhamos muito com o compartilhamento de telas. Se alguém tem uma dúvida no meio da aula, pedimos para ela compartilhar sua tela e instigamos os outros alunos a ajudarem. Eles começam a conversar e as coisas fluem. Está dando muito certo.
Os alunos sempre perguntam quando voltam os encontros presenciais. Planejamos retornar em 2022, quando a situação da pandemia estiver de fato controlada. Mas precisaremos manter um modelo híbrido com o on-line, porque nesse período ganhamos alunos fora da cidade de São Paulo, espalhados pelo Brasil e pelo mundo – temos uma aluna em Portugal e outra no Canadá. É legal notar como eles valorizam esses momentos, ainda mais em tempos de distanciamento social; sempre dizem que reservam aquele dia e horário do encontro como prioridade. Teve uma aula em que um aluno contou uma piada, outra aluna embarcou e contou outra, eu não resisti e contei também. Quando vimos, passamos a aula assim. No final comentei, preocupado, que o tempo tinha passado e não tinha dado tempo de fazer os treinamentos. Mas eles me corrigiram e disseram que foi um momento de alegria, que eles tinham dado muita risada. Isso é gratificante.
Durante esse período da quarentena, em maio de 2020, fizemos o lançamento oficial do nosso aplicativo, o Cérebro Ativo. Ele pode ser baixado, de forma gratuita, nos celulares e tablets com sistema Android ou iOS. Até agora foram 8 mil downloads. Nele, trouxemos parte da metodologia que aplicamos nos cursos de programação para idosos. Contamos com a ajuda dos alunos da primeira turma – muitos deles passaram a ser nossos conselheiros, testando e opinando sobre as funcionalidades e o visual do aplicativo.
Com a pandemia, implementamos uma ferramenta em que o usuário do aplicativo pode informar, diariamente, se está triste ou feliz. Pensamos que isso seria importante para acompanhar as oscilações de humor de idosos durante a pandemia. Estamos trabalhando em uma atualização que vai acrescentar mais funcionalidades nesse sentido: o próprio usuário poderá inserir informações sobre saúde, como sua pressão arterial, que ele mesmo vai medir. Com isso, ele poderá gerar relatórios e encaminhar para seu médico de confiança. Ele terá total autonomia sobre os dados, protegidos de acordo com a LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados].
Em conversa com geriatras, eles nos disseram que essas informações podem ajudá-los nos diagnósticos de depressão, somadas à avaliação em consultório. O aplicativo terá também um mecanismo de inteligência artificial que vai acompanhar essas informações e, se perceber uma oscilação preocupante, enviar um aviso para o usuário, alertando que algo parece estar fora do esperado e que seria bom entrar em contato com o médico.
Nesse período trabalhamos também em uma funcionalidade que vai avisar o usuário se ele está há muito tempo jogando. Nas nossas primeiras aulas de desenvolvimento de games, percebemos que com duas horas de concentração, fazendo as atividades, eles ficavam com dor de cabeça, porque é um treino mental intenso. Como é um aplicativo de saúde, muitas vezes precisamos trabalhar contra as ideias clássicas de gamificação, que usam todas as estratégias para fazer o jogador ficar viciado e passar mais tempo na plataforma. Há também o aviso de que é hora de se exercitar, com orientações de alongamento que a pessoa pode fazer, já que sabemos que ela passou um tempo com a cabeça abaixada e as costas encurvadas, jogando no celular.
Com a pandemia, tivemos que paralisar um estudo sobre estimulação cognitiva com videogames em idosos, feita em parceria com uma equipe do Departamento de Medicina Preventiva da Unifesp [Universidade Federal de São Paulo] – a gerontóloga Ana Cláudia Bonilha é a responsável pela pesquisa, que tem o apoio do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Nela, vamos observar 80 idosos – 40 jogando no nosso aplicativo e 40 acompanhando as nossas aulas – e comparar com outros 80 idosos que fazem mindfulness [técnicas e exercícios de respiração e meditação]. Mas, como eles precisariam ir pessoalmente à universidade para serem submetidos a testes periódicos de avaliação cognitiva, precisamos esperar. Talvez o estudo possa ser retomado no final do segundo semestre de 2021, mas ainda é cedo para dizer.
Durante o período de pandemia, contratamos pessoas de vários lugares – tem gente de Americana, Campinas, Jundiaí, Florianópolis e do Rio de Janeiro. Por isso, pretendemos manter um regime híbrido mesmo quando for possível retomar o trabalho presencial. A internet agiliza muita coisa, é verdade, mas com o tempo percebemos que estava ficando uma relação muito fria – entrávamos nas videochamadas, discutíamos os tópicos do trabalho e terminava a reunião. Esse é um impacto grande, porque nos encontros presenciais sempre havia um momento de tomar café, conversar, descontrair. Tentamos amenizar isso fazendo um happy hour on-line uma vez por mês, só para bater papo, sem falar de trabalho. Também combinamos de fazer um almoço mensal nos mesmos moldes. A gente pega o prato, senta à mesa, liga a câmera, come e conversa. No começo pode parecer estranho, mas é o que a gente faz quando está almoçando junto, né? É um momento para relaxar, do jeito que dá.
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