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Imunologia

Influenza oculta

Infecção por influenza H1N1 em amígdalas e adenoides de pacientes saudáveis revela que esses órgãos podem ser reservatórios do vírus, com efeitos ainda pouco conhecidos no corpo humano

Os linfócitos T CD8+ infectados pelo vírus influenza A (H1N1), na amígdala, aparecem em amarelo por marcação com imuno-histoquímica

Ítalo Castro / USP

Mesmo após a remissão dos sintomas da gripe suína, o vírus influenza A (H1N1) pode permanecer nas amídalas e adenoides infectando essas estruturas (tonsilas) onde residem células de defesa – inclusive as do tipo T CD8, responsáveis por eliminar vírus. Além disso, as linhagens de H1N1 encontradas nesses órgãos são aparentadas entre si, mas diferentes das que circularam no Brasil durante o surto da gripe suína em 2009. Ou seja, entre o momento da infecção até a análise, feita entre 2014 e 2016, o vírus acumulou uma série de mutações. Os resultados, publicados em fevereiro no site da revista Journal of Virology, foram obtidos a partir do estudo de amígdalas e adenoides obtidas após cirurgias pediátricas. O objetivo da pesquisa não era descobrir a causa da amigdalite, mas sim verificar a presença do vírus de gripe em tonsilas humanas e elucidar como se dá a relação entre vírus e essas estruturas.

“É possível que essas estruturas funcionem como reservatórios de vírus, que se adaptam ao tecido por meio de mutações e dali podem ser transmitidos em ocasião oportuna, possivelmente dando origem a surtos no início do inverno”, diz Eurico Arruda, virologista da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto (FMRP-USP), que desenvolveu o estudo com a equipe de otorrinolaringologia da FMRP, liderada pela médica Wilma Anselmo-Lima. Por serem mutantes, poderiam ser capazes de driblar o sistema imune de pessoas resistentes às versões comuns do vírus, começando um novo ciclo anual. Falta ainda comprovar se aqueles que carregam o vírus podem transmiti-lo, embora em uma das amostras coletadas o H1N1 tenha se mostrado viável, infectando células de cultura. “Não é uma comprovação, mas uma prova de conceito, e demonstra que a transmissão é possível”, diz Arruda. Se isso estiver correto, essa linha de pesquisa poderá ajudar a elucidar o mecanismo de início das gripes sazonais, um fenômeno pouco compreendido pela medicina.

A hipótese de que o H1N1 seja a causa de hipertrofia de tonsilas, um problema que causa grande incômodo em crianças e leva ao maior número de cirurgias pediátricas do mundo, está descartada. “Dados preliminares de nossa equipe indicam a presença de vírus inclusive em tonsilas não infectadas”, diz Arruda. Além disso, o H1N1 não é o único vírus detectado em tonsilas: em 2012, a equipe encontrou mais oito vírus respiratórios, inclusive da família dos coronavírus (nada a ver com o atual Sars-CoV-2), em 97% de crianças com tonsilas hipertróficas. Naquele estudo, 7% de um total de 121 crianças submetidas à tonsilectomia em 2011 e 2012 estavam infectadas com influenza A, detectável em amígdalas, adenoides e na secreção de nasofaringe. No estudo atual, focado apenas no H1N1, a proporção de pacientes infectados também foi de 7% nas amígdalas e adenoides.

“Cada um desses vírus será estudado para verificar os tipos celulares que eles afetam, o mecanismo de persistência assintomática ou infecção prolongada, e qual o momento propício em que entra em ação”, diz Arruda. Ele acredita que o reservatório viral ‒ ou viroma ‒ guarda a memória de infecções anteriores e ajuda a pessoa a manter o sistema imune preparado contra os vírus que já causaram infecções. “Em parte, deve ser algo positivo do ponto de vista evolutivo, caso contrário não seria tão frequente”, diz ele.

Ítalo Castro / USP Técnica de imunofluorescência mostra, em verde com pontos vermelhos, linfócitos T CD8+ infectados pelo vírus influenza A (H1N1) na adenoideÍtalo Castro / USP

“O trabalho faz uma importante contribuição mostrando a permanência viral e possível transmissão do vírus da gripe, bem como para demonstrar a capacidade do vírus de acumular mutações no organismo humano”, diz Esper Kallás, infectologista da Faculdade de Medicina da USP. “O resultado, porém, deve ser avaliado com cautela, pois uma gripe sazonal é algo bem mais corriqueiro do que os surtos que geram as pandemias, cujas mutações geralmente acontecem em animais.” Isso porque as mutações pontuais sofridas na amígdala pelo H1N1, que causa as gripes sazonais, são discretas, enquanto as mutações em aves ou mamíferos são bem mais radicais e com maior potencial de pegar despreparado o sistema imune das pessoas. “Além disso, nem sempre a presença do vírus faz da pessoa uma transmissora, o que depende de outros fatores, como a situação do sistema imune e infecções associadas.”

Além da gripe sazonal e da amidalite, há outros indícios de que a convivência entre as partes nem sempre é harmoniosa. A equipe de Arruda acredita que a bagagem viral pode ser uma das causas de doenças autoimunes. “Embora não se conheça a causa da doença, há muitos indícios de sua relação com infecções virais”, diz. O pesquisador ressalta que a associação entre o vírus e o linfócito B, também revelada no estudo, poderia gerar uma resposta autoimune. “Um linfócito B de memória ou outras células de longa vida, se infectadas por um vírus, podem ficar vivas por décadas e virem a ser reconhecidas como estranhas pelo sistema imune.” Hipoteticamente, essa confusão inicial na resposta imune, devido à presença de proteínas virais, poderia se estender a outros alvos da própria célula e se generalizar como doença autoimune.

Uma pista disso já havia sido encontrada em estudo de 2013, no qual a equipe de Arruda, em colaboração com a equipe de reumatologia pediátrica da FMRP-USP, liderada pela médica Virginia Ferriani, observou que as infecções por influenza estavam entre as mais frequentes causas de crises de artrite idiopática juvenil, um tipo de doença reumática autoimune que começa na infância. Com as novas descobertas, o pesquisador pretende refazer o trabalho. “Na época não verificamos se os pacientes cujas amígdalas haviam sido removidas tinham crises menos intensas”, diz Arruda. “Pode ser que a remoção da amígdala hipertrófica reduza a resposta autoimune, por isso pretendemos refazer estudos para verificar se essa relação existe.”

Uma importante consequência prática do estudo é mostrar aos pediatras que a presença de vírus nas tonsilas nem sempre indica a presença de doença. Mas, enquanto o mecanismo da gripe sazonal não é totalmente elucidado, Arruda e Kalllás são unânimes em afirmar que a melhor saída ainda é tentar criar vacinas cada vez melhores ‒ a ideal seria uma vacina universal, que funcionasse para todos os tipos de vírus de gripe.

Projetos
1. Infecção de tecidos linfoides por vírus influenza (nº 15/25975-0); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Eurico de Arruda Neto (USP); Bolsista Ítalo de Araújo Castro; Investimento R$ 234.032,57.
2. O perfil das infecções virais em patologias crônicas do trato respiratório superior: Hipertrofia adenoamigdaliana, otite média secretora e rinossinusite (nº 09/51818-8); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Wilma Terezinha Anselmo-Lima (USP); Investimento R$ 1.100.481,66.

Artigos científicos
CASTRO, I. A. et al. Silent infection of B and CD8+T lymphocytes by influenza A virus in children with tonsillar hypertrophy. Journal of Virology, 2020.
PROENCA-MODENA, J. L. et al. High rates of detection of respiratory viruses in tonsillar tissues from children with chronic adenotonsillar disease. PLOS ONE, 2012.
CARVALHO, L. M. et al. Prospective surveillance study of acute respiratory infections, influenza-like illness and seasonal influenza vaccine in a cohort of juvenile idiopathic arthritis patients. Pediatric Rheumatology, 2013

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