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Resenha

Inquisição perseguiu mulheres africanas em Minas Gerais

Sacerdotisas voduns e rainhas do Rosário: Mulheres africanas e Inquisição em Minas Gerais (século XVIII) | Aldair Rodrigues e Moacir Maia (orgs.) | Chão Editora | 192 páginas | R$ 59,00

A reconstrução histórica das religiões afro-brasileiras é uma tarefa delicada, exigindo conhecimento etnográfico além de histórico. As práticas religiosas eram variadas, com algumas específicas de determinadas regiões africanas e outras compartilhadas. Outro empecilho é que as fontes relevantes (processos inquisitoriais no período colonial e documentação policial no Império) eram produzidas por atores engajados na perseguição da religiosidade afro-brasileira. Cabe ao pesquisador, portanto, diferenciar entre as informações confiáveis e aquelas que surgem dos preconceitos de quem redigiu o documento.

O livro organizado por Aldair Rodrigues e Moacir Maia navega nesse terreno complexo, no contexto de Minas Gerais em meados do século XVIII, onde a chamada “nação mina” então constituía uma maioria expressiva da população cativa e forra. Artefato do comércio negreiro, o termo “mina” se referia a cativos que embarcaram nos portos da Costa da Mina, região que abrigava uma abundância de diferentes povos, entre eles os “courás” (corruptela de hulas), que faziam parte do grupo linguístico gbe.

A espinha dorsal do livro são transcrições de cinco processos inquisitoriais do acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal, cujos réus eram quase todos courás. Uma apresentação e um posfácio, escritos pelos organizadores, buscam contextualizar a documentação e comentar questões historiográficas e etnográficas relevantes. Essa combinação, de transcrições de fontes primárias e análise historiográfica, tem a vantagem de disponibilizar o conteúdo integral de documentos de difícil acesso e ao mesmo tempo apontar problemas analíticos necessários para a compreensão.

Um processo particularmente rico teve lugar no arraial de Paracatu em 1747, alvejando rituais protagonizados por mulheres courás ao “deus” da sua terra. A maioria das testemunhas era de mulheres da nação mina, o que ressalta o papel de queixas inquisitoriais na expressão de fricções internas na população africana. Outro aspecto fascinante, já comentado pelo antropólogo Luiz Mott, são as evidências de coexistência entre os imaginários católicos e africanos. Segundo as participantes, o culto à divindade teria sido instalado no local com a permissão expressa de Nossa Senhora do Rosário e de Santo Antônio.

No processo de Paracatu e em outro incluído no livro que teve lugar em 1759 na comarca de Sabará, freguesia de Rio das Pedras, a prisão dos réus foi efetuada por capitães do mato. Essa atuação, ligada ao trabalho repressor dos atores do Santo Ofício, foi baseada numa instrução de 1739, que chamava os capitães do mato a impedir os “‘folguedos e danças que costumam fazer os negros em ajuntamentos que resultam em discórdias, impudências e ofensas a Deus’” (p. 95).

Em Rio das Pedras, os réus foram dois cativos: a courá Teresa Rodrigues e o mina Manoel, acusados de confeccionar “feitiços” num processo auxiliado por “paus pintados”. Contudo, na lógica religiosa dos gbe falantes, tratava-se de preparações para curar aflições físicas ou espirituais, cuja eficácia era potencializada por forças divinas materializadas nos “paus pintados”.

A mesma dupla foi citada em outros documentos incluídos no livro. Em 1760, na freguesia de Itabira – a dezenas de quilômetros de Rio das Pedras –, quando foram registradas delações contra outra mulher courá, Teresa e Manoel constaram numa lista de feiticeiros afamados. No processo de Paracatu – muito mais longe –, Teresa foi acusada de participar dos rituais ao deus courá. Evidentemente, apesar de serem cativos, Teresa e Manoel tinham bastante mobilidade na região.

Os processos reunidos no livro contêm uma riqueza de informações sobre africanos na região mineira setecentista, apontando a vulnerabilidade da mulher em denúncias de feitiçaria. Já que alguns personagens são citados em casos oriundos de diversas freguesias, teria sido útil incluir um mapa da geografia local. No caso do processo de Paracatu, já parcialmente transcrito por Luiz Mott, teria sido desejável também incluir notas comparando eventuais diferenças entre a sua versão e a dos autores. Contudo, esses detalhes não tiram o grande valor dessa contribuição à historiografia da religiosidade dos gbe falantes no Brasil, para estudiosos do assunto e como material didático em vários níveis de ensino superior.

Lisa Earl Castillo é doutora em letras pela Universidade Federal da Bahia e autora do livro Entre a oralidade e a escrita: A etnografia nos candomblés da Bahia (Edufba, 2008).

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