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Resenha

Instrumento de afirmação

Ilê Aiyê: A fábrica do mundo afro | Michel Agier | Editora 34 176 páginas | R$ 72,00

O livro Ilê Aiyê: A fábrica do mundo afro, fruto de pesquisa séria e detida sobre a organização e a lógica interna do paradigmático bloco afro Ilê Aiyê, insere-se no momento áureo da retomada dos estudos do contexto afro-baiano e das relações e hierarquias raciais em Salvador e sua Região Metropolitana nos anos de 1985 a 1995.

O antropólogo francês Michel Agier chega ao Ilê após pesquisar cor e classe nas novas indústrias atraídas pelo polo petroquímico, no município de Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador, na década de 1980. Munido de sua experiência prévia de pesquisa sobre novas formas de identidade étnica na África Ocidental, mas também com sua curiosidade pelos estilos de vida urbanos, ele pesquisou as consequências socioculturais da grande oportunidade de ascensão social proporcionada, pela primeira vez, para uma nova geração de homens negros e suas famílias que passam a ter um emprego que lhes assegurava uma relativa melhoria de vida comparativamente à geração precedente.

Uma mudança positiva de condição que possibilitou mobilidade urbana dos antigos bairros, vistos como predominantemente negros, a exemplo da Liberdade, para bairros melhores, tidos como mais modernos, caso do Cabula, assim como consumo conspícuo, novas formas de vida associativa e também uma percepção mais aguda das desigualdades sociorraciais apresentadas e defendidas pelas elites baianas. Elites estas que pouco se conformam com a crescente visibilidade desse grande grupo de “novos negros”.

É a partir desse sólido embasamento empírico que Agier desenvolve essa verdadeira socioantropologia de um bloco afro e de sua negritude. Lembro bem de quando Agier, já quase no final dos seus muitos anos de residência em Salvador, na década de 2000, e já bom conhecedor do bairro da Liberdade, onde ele chegou a morar durante dois anos, começou uma longa e complexa negociação com a direção do bloco para ter acesso aos filiados e às suas fichas de inscrição: também nisso Agier foi pioneiro e conseguiu estabelecer um justo código de conduta, centrado na reciprocidade e no retorno dos dados da pesquisa para seus interlocutores.

A publicação do livro, agora em português, veio a coroar tanto esse processo de colaboração, que, espero, prossiga, quanto a celebração dos 50 anos de existência do bloco, em 2025. Foi durante esse meio século que o “afro”, sob a forte inspiração do Ilê, tornou-se não só uma bandeira passível de múltiplas interpretações como um instrumento de afirmação do povo negro.

Por isso, ler esse livro é também aprender sobre a história contemporânea da negritude na Bahia. Agier traça essa história fugindo da camisa de força da suposta “magia” da Bahia como lente de interpretação de suas hierarquias raciais e esmiuçando, em cinco capítulos, o cenário; a história do bloco; o Ilê Aiyê como família e comunidade; as formas, estilo e projeto estético do bloco em sua redefinição da África na Bahia como luta pela afirmação; e, enfim, analisando o mundo afro como sistema cultural.

As páginas são embelezadas com 35 fotos de Milton Guran. A contracapa da antropóloga Maria Rosário de Carvalho e o posfácio do sociólogo Antônio Sergio Guimarães – ambos companheiros da jornada baiana de Agier – enriquecem o conjunto. Em seus 50 anos, o bloco obviamente passou por transformações, assim como o mundo do Carnaval e os processos identitários negros. De organização centrada em torno de uma família e de uma casa de santo, o bloco, aos poucos, transformou-se em uma associação cultural, algo parecido com uma ONG. Trata-se de um processo de paulatina institucionalização e até de incorporação das políticas públicas dos governos que têm atingido os movimentos sociais e a vida associativa em geral.

Ao longo dessas décadas, o ícone “África” deixou de ser sempre um ônus, para se tornar, gradativamente, e em determinados momentos, até um bônus com o qual as elites baianas, brancas ou quase, têm que aprender a lidar. Nesse processo, o Ilê nunca perdeu seu protagonismo, antes inspirou a criação de muitos outros blocos em Salvador e outras cidades. Seu projeto estético e sonoro virou uma marca indistinguível do afro no Brasil e a sua busca incessante por respeito, dignidade e autoestima, uma fonte de inspiração para as novas gerações e para o futuro do mundo afro.

Livio Sansone é professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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