Quando chegou a hora do vestibular, pensei em estudar física. Gostava muito das aulas no antigo curso científico [equivalente ao atual ensino médio], e sempre gostei de matemática aplicada. Não tenho talento para lidar com abstrações e símbolos puros, mas sempre me interessei pelo uso das ferramentas da matemática para resolver problemas em áreas como física, química e biologia.
Procurei meu professor de física na época, em busca de orientação, mas ele me desanimou. Disse que a física era muito mais complicada do que aquela que eu tinha aprendido na escola. Como ele não me deu nenhuma orientação, fui à biblioteca olhar os livros de física. Simplesmente não entendi nada. Hoje consigo ler, mas na época tudo me pareceu impenetrável e desisti.
Eu tinha facilidade com línguas e sempre gostei muito de literatura, então pensei em fazer o curso de letras. A família da minha mãe veio do Leste Europeu para o Brasil, falavam alemão e alguns ídiche, e minha avó falava português sem nenhum sotaque. Mas eu tinha dúvidas, pensava em fazer medicina também. Meu pai era médico e deu aulas de psiquiatria por um tempo.
Acabei optando pela medicina por uma questão prática. Era o curso que me oferecia a chance de começar a trabalhar mais cedo e ter certa independência financeira. Eu sentia que logo precisaria começar a me virar, porque a situação em casa estava conturbada. Meus pais se separaram pouco depois de eu entrar na faculdade.
Entrei na Universidade do Estado do Rio de Janeiro [Uerj] com 17 anos, em 1976. Quando estava no terceiro ano, precisei começar a trabalhar para me sustentar. Escrevia uma coluna de saúde num jornal de bairro e comecei a traduzir artigos científicos para tratados de medicina e outros livros técnicos, o que ainda faço eventualmente para revistas científicas. Trabalhava à noite e rápido, o que sempre me ajudou muito.
Até me aventurei uma vez na poesia. Um amigo me convenceu a entrar num concurso de traduções organizado pela Pontifícia Universidade Católica [PUC] do Rio de Janeiro e fiquei em segundo lugar. Traduzi um poema curto de T. S. Eliot, “Rhapsody on a windy night” [“Rapsódia numa noite de ventania”, na versão de Bastos].
No segundo ano da faculdade, descobri a neurociência. Tinha muita gente jovem renovando o estudo da fisiologia na época, alguns dos quais são até hoje meus amigos, e comecei a estudar a fisiologia do sistema nervoso. Era uma área que estava evoluindo muito. Havia um diálogo entre a ciência e as concepções mais filosóficas sobre a mente, fiquei fascinado com isso.
Estávamos começando a usar métodos quantitativos de outras ciências para o estudo do sistema nervoso. Como eu já gostava de matemática, foi uma festa para mim. Estudávamos a trajetória das ondas cerebrais e integrávamos a parte quantitativa aos aspectos mais descritivos da fisiologia. Era um diálogo muito interessante entre a matemática e as ciências naturais.
Quando eu estava no terceiro ano, o professor Carlos Telles voltou de uma temporada na Alemanha e criou a clínica de dor da Uerj. Foi a primeira do país. A ideia era reunir profissionais de várias especialidades para tratar pacientes com dores crônicas. Eram casos difíceis, porque muitos tinham câncer em estado avançado e um histórico de tratamentos frustrados.
Eu tinha 20 anos e fiquei muito impressionado. Primeiro, porque esses pacientes eram jogados de um lado para o outro sem encontrar alívio para seu sofrimento. Depois, porque a morfina e outras substâncias que tínhamos para combater a dor podiam causar dependência. Achava que a medicina existia para aliviar o sofrimento, e foi ali que conheci o outro lado dela.
Essa experiência me influenciou muito e me levou a trabalhar depois com a dependência de drogas.
Depois de concluir a faculdade, fiz residência em psiquiatria e decidi fazer mestrado nessa área. Mas aí tive um encontro casual no campus com o professor Hesio Cordeiro. Ele disse que minha habilidade com métodos quantitativos podia ser útil na área de medicina social e me convenceu a fazer ali o mestrado. Foi uma dissertação mais conceitual sobre a questão das drogas e da dependência e sua evolução histórica.
Nessa época, fui chamado para trabalhar numa nova clínica aberta na Uerj para tratamento de dependentes de drogas e deixei a clínica de dor. Os estudos sobre o assunto eram muito incipientes no Brasil e havia pouca gente com a experiência necessária para lidar com ele. Falava-se muito de maconha, mas quase ninguém mexia com abuso de substâncias e coisas mais graves.
Após o mestrado, que concluí em 1988, fiz uma pausa de três anos. Continuei trabalhando na clínica, com tradução e edição de livros e revistas técnicas, mas estava em dúvida se deveria seguir carreira como pesquisador. Decidi pela pesquisa e cursei o doutorado na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz [Fiocruz], a instituição em que estou até hoje.
O trabalho com dependentes de drogas na clínica influenciou muito minha pesquisa de doutorado, “Ruína & reconstrução: Aids e drogas injetáveis na cena contemporânea”. Na clínica, meu foco estava em riscos e danos associados às drogas. Comecei a trabalhar para sistematizar dados sobre overdoses e acidentes, e percebi que muitos pacientes estavam infectados pelo vírus da Aids. Era uma época, meados dos anos 1980, em que ainda se imaginava que só homens homossexuais se infectavam e muitos achavam que ninguém usava drogas injetáveis no Brasil.
Esses dependentes eram muito estigmatizados, por outros usuários de drogas e pelos traficantes, porque deixavam as seringas como rastros e isso facilitava a ação da polícia. No doutorado, usei técnicas de geoprocessamento para analisar os dados levantados pela pesquisa e mostrei uma forte associação dos casos de Aids em usuários de drogas e as rotas de distribuição de cocaína no país.
Durante o doutorado, que realizei entre 1992 e 1995, passei alguns meses como pesquisador visitante na Universidade de Hamburgo, na Alemanha, e lá pude conhecer melhor os programas de prevenção e tratamento de dependentes. Não existia nada parecido no Brasil. Os primeiros programas desse tipo começaram a ser implementados em meados da década de 1990 e pude colaborar com seu desenho.
Prestei concurso na Fiocruz após concluir o doutorado e iniciei minha carreira como pesquisador da instituição em 1997. Coordenei a pesquisa nacional sobre consumo de crack, publicada em 2014, e a pesquisa nacional sobre drogas cuja divulgação foi vetada pelo governo Bolsonaro em 2019. Pudemos publicar um relatório e diversos artigos, mas não disponibilizar o banco de dados com a íntegra dos resultados.
O debate sobre as drogas é muito politizado no mundo inteiro, e eu não tenho nenhuma vocação para a política. Mas tive que aprender a ser diplomático para realizar essas pesquisas e lidar com as inúmeras pressões que sofremos de governos e comunidades. A ação dos pesquisadores precisa ser entendida como uma ação de saúde, para que possamos nos desvincular da confusão que impera nessa área.
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