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Entrevista

Jacques Marcovitch: A USP faz muito e pode fazer mais

O ex-reitor analisa a contribuição da principal universidade brasileira, que faz 90 anos, e fala de seus interesses de pesquisa, como métricas acadêmicas, bioeconomia e pioneirismo empresarial

Diego Padgurschi / FolhapressA Universidade de São Paulo (USP), que completa hoje (25/1) 90 anos de fundação, sempre foi comedida ao conceder títulos de professor emérito: só 21 de seus docentes e pesquisadores até hoje receberam esse reconhecimento do Conselho Universitário. O nome mais recente da lista, laureado em uma cerimônia em 2022, é o de Jacques Marcovitch, pesquisador da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) desde a década de 1970.

Marcovitch tem um extenso currículo de pesquisador e gestor. Foi presidente do complexo energético do estado de São Paulo (Cesp, CPFL, Eletropaulo e Comgás) na década de 1980 e secretário de Economia e Planejamento do estado de São Paulo em 2002.

Na USP, dirigiu a FEA e o Instituto de Estudos Avançados, foi pró-reitor de Cultura e Extensão e reitor (1997-2001). Desde que deixou o cargo executivo mais alto da hierarquia acadêmica, notabilizou-se por renovar e atualizar seus interesses em pesquisa. Hoje, coordena redes que investigam temas tão distintos quanto bioeconomia e métricas de desempenho acadêmico e prepara, para o segundo semestre, o relançamento de uma exposição sobre empreendedores pioneiros que já percorreu estados do Sudeste, Norte e Nordeste.

Nascido em Alexandria, no Egito, há 76 anos, e radicado no Brasil desde a década de 1960, Marcovitch hoje alterna períodos em São Paulo e em Genebra, na Suíça, onde é membro do Conselho Superior do Graduate Institute of International and Development Studies (IHEID). Da cidade rodeada pelos Alpes, ele concedeu a entrevista a seguir por videoconferência.

Idade 76 anos
Especialidade
Administração
Instituição
Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP)
Formação
Graduação em administração na FEA-USP, mestrado na Graduate School of Management da Universidade Vanderbilt (EUA), doutorado em administração na FEA-USP e pós-doutorado no International Management Institute (Suíça)

O senhor ingressou na USP como estudante em 1965, tornou-se reitor no final dos anos 1990 e até hoje trabalha em temas ligados à política universitária. Como compara essa USP que está completando 90 anos com aquela que o senhor conheceu em 1965?
Há várias diferenças. Hoje, existe um convívio muito maior das áreas do conhecimento e houve uma forte evolução da unidisciplinaridade para a multidisciplinaridade e a interdisciplinaridade. Até a década de 1960, com unidades espalhadas pelo interior e em São Paulo e sem os meios de comunicação que temos hoje, vivíamos cada um dentro da sua esfera de conhecimento. Uma segunda mudança tem a ver com a Constituição de 1988. Entre os anos 1960 e 1980, vivíamos em um país onde a universidade era um baluarte da defesa da liberdade e da democracia. A partir da Constituição de 1988, passamos a viver em um outro Brasil, onde, claro, há o desafio contínuo de aperfeiçoar a democracia, mas ela está presente. Viver em um espaço democrático faz uma enorme diferença. Uma terceira dimensão é demográfica. Na Copa do Mundo de 1970, éramos 90 milhões de brasileiros em ação. Hoje, somos 203 milhões. Essa questão mudou profundamente as relações da universidade com a sociedade e houve uma grande pressão para a expansão de vagas. Em 1965, ingressei em um vestibular em que eram oferecidas 100 vagas na FEA, mas o processo seletivo rigoroso só preencheu 33 vagas – era assim que funcionava naquela época. Hoje, a FEA recebe perto de 600 novos alunos por ano.

Como a USP respondeu a essas transformações? Como ela se abriu nesse período?
A USP fez muito e não é por acaso que hoje é reconhecida como uma das universidades mais importantes da América Latina. Um dos efeitos é ver o grande número de professores que saíram dos seus programas de pós-graduação e estão hoje formando alunos em outras universidades. Na pesquisa, a USP está entre as melhores do mundo em algumas áreas do conhecimento. Não estamos aqui falando de rankings universitários, mas do reconhecimento de excelência: na agronomia, na odontologia, na saúde pública, as publicações de pesquisadores da USP têm um peso importante. Nas atividades de extensão e cultura, a universidade tem um patrimônio extraordinário. Seus quatro museus constituem hoje uma referência em museologia em escala internacional. Na área de medicina, as atividades de extensão estão no DNA da USP. E aí não me refiro somente a São Paulo e Ribeirão Preto, onde estão sediadas as faculdades de medicina, mas em ações realizadas na região Norte do Brasil, como vimos durante a pandemia. Às vezes, isso ocorre de forma isolada, às vezes em parceria, como foi o caso da colaboração com a Escola Politécnica na produção dos respiradores artificiais na pandemia. Tudo isso constitui uma instituição que responde às expectativas da sociedade. Ela se inseriu no quadro internacional, como se vê no número de publicações feitas em coautoria com pesquisadores de outras universidades. Poderia fazer mais? Claro que sim. Há vários temas que estão emergindo, como avaliação responsável, ciência aberta, métricas de impacto na sociedade, em que a universidade está sendo desafiada a fazer mais e melhor.

Desde 2017, o senhor lidera o projeto Métricas, que busca desenvolver formas abrangentes de avaliar o impacto das universidades estaduais paulistas na sociedade. De que tipo de indicadores vocês estão tratando?
De 1960 a 1980, houve uma preocupação forte dos países no sentido de criar seus sistemas nacionais de inovação. O Manual Frascati, que estabeleceu nos anos 1960 a metodologia para a coleta de estatísticas sobre pesquisa e desenvolvimento, perguntava: “Quantos recursos uma sociedade aloca para ciência e tecnologia?”. A medida era essa: um bom sistema de inovação era associado à quantidade de dinheiro disponível. Depois, entre 1980 e 2000, surgiram os bancos de dados e ganharam espaço os indicadores convencionais de pesquisa e os índices de citação que todos conhecemos. A partir daí, vamos utilizar como métrica de desempenho acadêmico o número de publicações e suas citações, o número de downloads. Desde os anos 2010 sentiu-se a necessidade de índices mais complexos. Isto é, não se mede só a citação, mas se procura verificar, por exemplo, como uma pesquisa influencia as políticas públicas, a proposição de uma nova lei ou um novo ordenamento jurídico em uma determinada área, como na questão dos refugiados, da violência, da proteção de biodiversidade ou da segurança alimentar. Ou então o número de empresas criadas por egressos de uma universidade e a reputação da instituição junto aos empregadores. Estamos em uma nova etapa. Temos muitas métricas de insumos e resultados e ainda poucas do impacto, isto é, do efeito das universidades públicas na sociedade.

Em 1965, ingressei em um vestibular em que eram oferecidas 100 vagas na FEA, mas o processo seletivo rigoroso só preencheu 33 vagas

Em outubro de 2023 o programa publicou uma terceira obra coletiva produzida pela equipe do projeto Métricas. Quais foram as principais contribuições do projeto até agora?
Métricas começou em 2017 e teve como fator impulsionador a pesquisa de Justin Axel Berg, cuja dissertação de mestrado sobre o desempenho das universidades estaduais paulistas nos rankings internacionais tinha sido defendida em 2015 no Instituto de Relações Internacionais da USP, sob minha orientação. No início, o projeto esteve orientado para demandas do Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas, o Cruesp, e das próprias universidades. Pouco a pouco, ampliou-se uma discussão conceitual para a criação, por exemplo, de escritórios de gestão de dados nas universidades. São espaços dedicados à coleta, análise e divulgação de dados, que se tornaram unidades de inteligência. Em abril, teremos uma reunião de responsáveis por esses escritórios – esse é um resultado muito tangível do projeto. Outra contribuição foi a criação de uma comunidade dedicada a temas espalhada pelo Brasil. O projeto acaba de dar formação a mais 84 docentes e gestores de mais de 23 instituições do Brasil inteiro. Há as obras coletivas a que você se referiu. A mais recente, o livro Repensar a universidade 3, está focado em saberes e práticas. Trouxemos das três universidades estaduais paulistas práticas que envolvem os temas de impacto social, de ciência aberta, de inclusão social, da governança, da conexão da sociedade, mas na perspectiva das práticas. Já o volume 2 tratou das metodologias de impacto e o volume 1 dos conceitos que têm a ver com desempenho acadêmico e comparações internacionais. A oferta de conhecimentos coletivamente construídos está acessível em um portal que periodicamente publica análises de comparações internacionais que são o meio para conhecer a evolução dos indicadores de resultados e impactos.

Vamos falar de sua trajetória. O senhor nasceu no Egito. Como veio para o Brasil?
Nasci numa família de tradição judaica, de uma mãe originária da Síria, de Alepo, e um pai originário da Ucrânia, de Odessa. Estamos falando de culturas judaicas distintas, reunidas num país islâmico, o Egito, e numa cultura francófona. Meu pai me colocou em uma boa escola francófona de tradição católica, de padres lassalistas que eram franceses ou libaneses. Isso gerou em mim desde logo uma sensibilidade para diferentes culturas e uma compreensão do que há de comum e do que há de distante entre elas no sentido da vida. Em 1956, aconteceu a grande crise gerada pela decisão do Egito de nacionalizar e controlar o canal de Suez, que levou Israel a entrar em guerra com o Egito. Meus pais estavam bem integrados à cultura local e continuaram em Alexandria até 1961, mas com certo antissemitismo já prosperando. Em 1961, as universidades egípcias deixaram de aceitar judeus. Meus pais, preocupados com a educação dos dois filhos, tiveram que então decidir para onde ir. Como acontece com qualquer imigrante, a decisão acaba dependendo de alguém que possa ajudar a entrar em algum país. Um primo distante ajudou meus pais, chamando a família para seguir para Santos.

E por que escolheu estudar na FEA?
Saímos do Egito sem avisar ninguém, pois era preciso ser discreto. Não levamos documentos sobre o meu histórico escolar em Alexandria, o que gerou um problema para que eu pudesse estudar no Brasil. Um dia, passando pelo largo São Francisco, meu pai entrou na Escola Técnica Álvares Penteado, que fica ao lado da Faculdade de Direito, e conversou com um diretor que foi extremamente aberto: “Olha, pode deixar, nós vamos cuidar”. Ele efetivamente cuidou e eu pude fazer um curso de técnico em contabilidade. Assim as coisas começaram. Atrás da Faculdade de Direito, havia o cursinho do Centro Acadêmico Visconde de Cairu, da FEA. Eu morava na praça Roosevelt, perto da FEA, que ficava na rua Dr. Vila Nova, e de vez em quando eu ia lá. Como meus pais não podiam pagar uma escola privada, coloquei na cabeça que entraria na FEA através do cursinho do Centro Acadêmico Visconde de Cairu. Eu mal falava português na época. Fiquei na Escola Técnica de 1962 a 1964 e fiz o vestibular em 1965. O desempenho em francês e em outros exames orais ajudou a superar as falhas que eu tinha no português. Foi assim que comecei a estudar na FEA, em um vestibular do qual entraram 33 alunos das 100 vagas. Depois de algum tempo, em 1968, me tornei presidente do Centro Acadêmico Visconde de Cairu. Logo o professor Sergio Baptista Zacarelli [1932-2013] me convidou para ser professor voluntário. O professor voluntário dava aula, mas assumia o compromisso de não receber. A única esperança é que, quando fosse aberta uma vaga, o fato de ter sido professor voluntário contava pontos no processo seletivo e foi assim que me tornei professor. Depois fui fazer o mestrado nos Estados Unidos.

Temos muitas métricas de resultados e insumos e ainda poucas do impacto,isto é, do efeito das universidades públicas na sociedade

No mestrado, entre 1970 e 1972, na Universidade Vanderbilt, seu tema de pesquisa foi eficácia organizacional e administração em ciência e tecnologia. Por que esses temas eram importantes naquele momento e qual a razão de ter escolhido os Estados Unidos?
Temos que lembrar o que foi a minha graduação no período de 1965 a 1968. Era um período de muita extroversão. Não era possível ficar restrito à esfera da sala de aula. Era preciso se conectar com o mundo externo. Isso teve uma repercussão na escolha do curso de mestrado nos Estados Unidos, que foi realizado em uma escola recém-criada pelo Igor Ansoff [1918-2002], um dos pioneiros em gestão e inovação. Ansoff veio da indústria de transporte aéreo e mobilidade. Ele trouxe para um estado muito conservador, que é o Tennessee, na Universidade Vanderbilt, conceitos avançados para a época de gestão e planejamento estratégico ao criar a Graduate School of Management. Somos da segunda turma dessa escola, eu, o Eduardo Pinheiro Gondim de Vasconcellos e mais alguns professores da FEA que estudaram estratégias de inovação.

E o que fez quando retornou ao Brasil?
Quando voltei, em 1973, o governo de São Paulo, na figura do secretário do Planejamento, o professor Miguel Colasuonno [1939-2013], tinha celebrado um acordo com os Estados Unidos que estabeleceu o Projeto Ciência e Tecnologia, o Procet, com a finalidade de dinamizar o potencial de pesquisa científica e tecnológica do estado. O programa era dirigido pelo professor José Pastore, que tinha na época a responsabilidade de investir algo em torno de US$ 15 milhões na modernização de instituições como os institutos de Pesquisas Tecnológicas [IPT], de Tecnologia de Alimentos [Ital], entre outros. Originalmente, faziam parte do Procet seis programas de cooperação internacional, em cada um dos quais estavam engajadas uma organização brasileira e uma do exterior. A esses programas originais agregou-se mais um, que tinha a missão de capacitar gerencial e administrativamente as organizações brasileiras. Esse sétimo programa ‒ o Programa de Administração em Ciência e Tecnologia [PACTo] ‒ foi coordenado pelo Eduardo Vasconcellos, da FEA, tendo por organização de contrapartida, nos Estados Unidos, justamente a Graduate School of Management da Universidade Vanderbilt. O software desse Procet era a questão gerencial e a partir daí que nós desenvolvemos o PACTo com conteúdos relacionados com estratégia e inovação. Estratégia, no sentido da leitura do contexto tecnológico, de olhar a evolução das tecnologias, e inovação, relacionada à gestão de projetos. A questão da gestão de laboratórios de pesquisa e desenvolvimento e de inovação surgiu na FEA e depois passou a ter vida própria com a formação da Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Industrial [Anpei] e da Associação Latino-americana de Gestão Tecnológica. Estive na origem dessas instituições, junto com vários outros colegas do PACTo.

Nessa época também houve um crescimento do investimento federal em infraestrutura de pesquisa e nos programas de pós-graduação, por meio de figuras como o ministro do Planejamento João Paulo dos Reis Velloso [1931-2019] e do presidente da Financiadora de Estudos e Projetos, a Finep, José Pelúcio Ferreira [1928-2002]. Isso também fez parte desse contexto?
Você lembrou bem as figuras do Velloso e do Pelúcio, porque na Finep nasceu um projeto que é o Protap, o Programa de Treinamento em Administração de Pesquisa, com a ajuda da consultoria Arthur D. Little, e, pouco tempo depois, nós fomos contratados para executá-lo. Vamos lembrar que, na área econômica, se falava que exportar era a solução, porque o Brasil precisava de divisas e isso reforçava a necessidade da inovação como forma de incorporar valor às exportações brasileiras. Nesse quadro é que no estado de São Paulo brotou essa ideia da importância de uma modernização da estrutura de ciência e tecnologia. Assim surgiu o Procet. Acho que havia esses dois movimentos, uma visão de planejamento de longo prazo, mas do outro lado a questão da exportação que demandava mais tecnologia e inovação. É mais ou menos nesse período que foi criada a Embraer. A Embrapa também é dessa época em que o Brasil assume a consciência que, sem tecnologia, não haverá evolução.

Estamos aprendendo que não há uma Amazônia. Há diferentes Amazônias, com demandas muito próprias de suas comunidades.

Em 2008, o senhor assumiu a coordenação do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas. Como se interessou por temas de pesquisa relacionados ao clima e à bioeconomia?
Isso surgiu quando eu assumi, em meados dos anos 1980, a presidência do Complexo Energético do Estado de São Paulo, composto pelas empresas Cesp, Eletropaulo, Paulista de Força e Luz e Comgás, no governo Franco Montoro [1983-1987]. José Goldemberg tornou-se reitor da USP e fui solicitado a sucedê-lo na presidência do complexo. Durante essa gestão aconteceu um período dramático de seca no Brasil. Tivemos que criar uma proposta de racionalização de energia para reduzir em torno de 15% o consumo. Nesse período, olhando para o que estava acontecendo, não houve como evitar esse mergulho na questão climática. Poucos anos depois, na direção do Instituto de Estudos Avançados da USP, fui convidado a participar do núcleo de apoio à preparação da Rio 92 pelo canadense Maurice Strong, que era o secretário da conferência. Passei a conviver com o pessoal do secretariado da Rio 92. Tivemos que discutir o pós-Rio 92 e a partir de então eu acompanho tanto a implementação da Convenção do Clima como da Convenção da Biodiversidade. No momento, estou coordenando um projeto de bioeconomia na Amazônia, apoiado tanto pelo CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] como pela FAPESP.

Qual é o desafio da bioeconomia para ganhar escala e se firmar como algo que garanta a exploração sustentável da Amazônia?
Vejo dois desafios: o das Amazônias e o das temporalidades. Há quase quatro anos, por meio de um projeto selecionado por um edital conjunto da FAPESP e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas [Fapeam], começamos a trabalhar com o professor Adalberto Val, que foi diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, o Inpa. Apresentamos uma proposta, juntamente com pesquisadores da USP, da Universidade Federal do Pará e do Instituto Peabiru, e começamos a estudar as cadeias do cacau, do pirarucu, do açaí e do mel. Estamos aprendendo, em primeiro lugar, que não há uma Amazônia. Há diferentes Amazônias, com demandas muito próprias de suas comunidades. O Índice de Desenvolvimento Humano [IDH] não serve para definir as expectativas dessas comunidades. No IDH, não existe a palavra segurança, e nós sabemos que hoje a região Norte é uma das áreas mais violentas do Brasil. Temos que descobrir o que são essas Amazônias pelos olhos de seus moradores. Por isso temos a figura da pesquisa comunitária ou do pesquisador comunitário. O nosso pesquisador, quando vai para lá, procura identificar pessoas que vão ajudá-lo a coletar dados respeitando a cultura daquela comunidade. Temos que reconhecer as especificidades das regiões e ver quais são as cadeias de valor que se ajustam a cada uma, sempre partindo das expectativas das comunidades locais, as comunidades ribeirinhas, os povos tradicionais. O que eles querem? Como eles pretendem viabilizar seus sonhos? O que é segurança para eles? E o bem-estar da comunidade local tem que ser conectado com a questão da conservação da natureza.

E o que são as temporalidades?
Nenhuma ação na Amazônia vai gerar resultados em dois, quatro ou cinco anos. Precisamos ter uma perspectiva de longo prazo em relação às cadeias da bioeconomia. Elas devem ser estudadas em períodos de 15, 20, 30 anos. Faz parte da cultura do governo querer ver resultados de dois em dois anos. Também as empresas, por mais sustentáveis e preocupadas com o meio ambiente que elas sejam, não conseguem enxergar mais do que três anos pela frente, no máximo quatro anos – é isso que os acionistas esperam. O tempo da natureza é outro e, quando falamos em bioeconomia, estamos falando de uma atividade econômica associada à natureza. Uma castanheira leva pelo menos 12 anos para produzir. Queremos desenvolver comunidades como a de Tomé-Açu, que fica no Pará e é exportadora para o Japão de cacau transformado em chocolate. Veja que existe um rigor bastante sofisticado para se conseguir entrar no mercado japonês. Estamos falando de projetos de 20 anos que foram pouco a pouco evoluindo até se tornarem exportadores. Temos também o caso do açaí, que levou um longo período de tempo. Mas o açaí continua sendo um problema porque utiliza mão de obra infantil e as condições de segurança no trabalho são limitadas. Daí a importância de estudar a cultura do açaí do ponto de vista da dimensão humana.

Não basta fazer a coisa certa, é preciso revelar para a nossa comunidade e para a sociedade que estamos cumprindo com as nossas obrigações.

Outro projeto a que o senhor se dedicou, a partir de 2001, foi o do pioneirismo empresarial no Brasil. Por que levantar os perfis de empreendedores pioneiros?
Em 1970, quando eu dava aula de Introdução à Administração, procurava exemplos de pessoas que eram referência na área da gestão de empresas e os sobrenomes que vinham eram de outros países: Taylor, Fayol, Pirelli, Rockefeller. Nós não tínhamos exemplos significativos, com exceção do barão de Mauá, e sempre quis preencher essa lacuna. A ideia germinou 30 anos depois. Durante meu período como reitor, não pensei em outra coisa senão na gestão. Quando meu mandato terminou, não tinha ideia do que fazer. Foi aí que ressurgiu a ideia de trazer para a sala de aula essas figuras que fizeram a diferença. O Projeto Pioneiros é uma tentativa de reunir primeiro aqueles empresários construtores de legados, essencialmente de São Paulo, que formam o primeiro dos três volumes da série de livros. O segundo volume abrange as regiões Sul e Centro-Sul e depois as regiões Norte e Nordeste. Isso levou quase seis anos de pesquisa. Descobrimos coisas absolutamente inovadoras. Uma delas foi o papel da Ermelinda de Souza Queiroz, esposa do Luiz de Queiroz, na criação da Esalq-USP. Ela vinha de uma família do Rio de Janeiro, com uma irmã morando em Paris, casou-se com o Luiz de Queiroz, que era um grande proprietário de terras e industrial. Ele morreu em 1898, aos 48 anos, e ela é que inaugurou a escola em 1901. A descoberta foi feita em um manuscrito mencionado em uma discreta nota de pé de página no livro de Joseph Love, A locomotiva – São Paulo na federação brasileira. O documento era uma autobiografia escrita à mão pelo professor de agricultura do Michigan Agricultural College, Eugéne Davenport [1856-1941], que mais tarde chegaria a reitor da Universidade de Illinois. Ele passou um ano em Piracicaba e explicou então o papel que o casal desempenhou na concepção da escola. A professora Maria Cristina de Oliveira Bruno teve a ideia de transformar essa trilogia em uma exposição itinerante que começou no Rio, depois seguiu para Fortaleza e Recife. A família do Samuel Benchimol [1923-2002], economista que era um estudioso da Amazônia e foi um dos pioneiros do projeto, pediu para que a exposição fosse até Manaus. Depois ficou três meses no Palácio dos Campos Elíseos, em São Paulo. Tudo isso está no Portal Pioneiros Empreendedores, que é a memória desse projeto. Estamos para inaugurar no segundo semestre de 2024 uma exposição sobre os pioneiros na entrada da biblioteca da FEA.

O senhor disse que, no período em que foi reitor da USP, só pensou em gestão. E ocupou outras funções de gestor, na Cesp e na Secretaria de Economia e Planejamento do estado. De que forma a experiência o marcou?
No caso da administração, nós temos uma vantagem: podemos aplicar em governança o que ensinamos e o que aprendemos. Mas algo que aprendi com os Pioneiros, e que foi muito útil nas várias responsabilidades que eu assumi, é que você constrói o próprio futuro, mas você precisa amar o seu destino. Quer dizer, é preciso ter clareza de para onde quer levar a instituição que você tem a responsabilidade de dirigir. Construir o futuro significa olhar para o contexto externo e identificar onde é possível fazer a diferença. E amar o destino significa que, quando as coisas não acontecem do jeito como planejamos, não adianta se rebelar. Precisamos repensar e assegurar que os objetivos sejam alcançados. Também aprendi que é sempre preciso ter ao nosso lado, especialmente nas instituições públicas, o nosso financiador, que é o contribuinte. Toda vez que tomamos uma decisão, é preciso ter em mente que o contribuinte poderia usar esses recursos para fazer outra coisa e assegurar que o uso do recurso seja o melhor possível, formando novas gerações, avançando no conhecimento e assegurando uma boa atividade de extensão à sociedade. A terceira e última tem a ver com o Projeto Métricas, é a questão da prestação de contas. Não basta fazer a coisa certa, é preciso revelar para a nossa comunidade e para a sociedade que estamos cumprindo com as nossas obrigações. Talvez tão importante quanto isso seja a prática dos valores que constam do Código de Ética da USP. É preciso conhecer bem a nossa instituição e saber expressar seus valores e sua missão.

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