Imprimir PDF Republicar

ENTREVISTA

João Adolfo Hansen: Viagem pelas letras brasileiras

Especialista trouxe importantes colaborações ao estudo da poesia colonial, sem, contudo, deixar de olhar para períodos como o modernismo

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

Na década de 1980, ao mergulhar na obra atribuída ao poeta baiano Gregório de Matos (1636-1696), o paulista João Adolfo Hansen contribuiu para iluminar a produção poética do período colonial, aportando novas formas para sua compreensão. Entre outros expedientes, lançou mão da retórica e da história para tentar entender o que diziam aquelas vozes do passado. Também argumentou contra a ideia de que Matos, conhecido pela alcunha de “Boca do Inferno”, fosse revolucionário e libertário. De acordo com o estudioso, embora provocasse os poderosos da época com suas sátiras obscenas, o poeta não buscava romper com o regime monárquico e a Igreja Católica, pois, como integrante da elite, compartilhava de seus valores.

Essas conclusões estão em A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII, tese de doutorado em literatura brasileira defendida por Hansen em 1988 na Universidade de São Paulo (USP). Publicada no ano seguinte pela Companhia das Letras, a obra homônima foi agraciada com o Prêmio Jabuti, na categoria Estudos Literários, em 1990. Mais tarde, em 2004 foi relançada pela Editora Unicamp.

IDADE 80 anos
ESPECIALIDADE
Literatura brasileira; retórica e poética; teoria da prosa e da poesia
INSTITUIÇÃO
Universidade de São Paulo (USP)
FORMAÇÃO
Graduação (1964) em letras pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, mestrado (1983) e doutorado (1988) em literatura brasileira pela USP
PRODUÇÃO
83 artigos e 22 livros

Graduado em letras, Hansen foi professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP por quase três décadas, entre 1983 e 2012, quando se aposentou. Em 2021, tornou-se professor emérito da FFLCH. Recentemente parte de sua produção foi reunida em Agudezas seiscentistas e outros ensaios (Edusp, 2019), compilação de 14 artigos sobre as letras luso-brasileiras entre os séculos XVI e XVIII. Os estudos de Hansen, porém, não se atêm ao período colonial. Prova disso está no segundo volume da coletânea que vem sendo preparado pelas mesmas organizadoras do primeiro, Cilaine Alves Cunha, da FFLCH, e Mayra Laudanna, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP). Previsto para ser lançado no ano que vem, terão foco em seus escritos sobre a literatura brasileira dos séculos XIX e XX autores como Machado de Assis (1839-1908) e Clarice Lispector (1920-1977).

Com o bom humor que o caracteriza, Hansen recebeu a reportagem de Pesquisa FAPESP no apartamento onde vive no bairro de Pinheiros, em São Paulo, com a mulher, Marta Maria Chagas de Carvalho, professora aposentada da Faculdade de Educação da USP. Hansen tem quatro filhos e cinco netos. Na entrevista a seguir fala, entre outras coisas, do apreço pela sala de aula, pela leitura e pela pesquisa.

Desde quando o senhor leciona?
Na década de 1960 cursei letras na PUC [Pontifícia Universidade Católica] de Campinas, mas morava em Americana. Ia e voltava todos os dias de ônibus. Durante a graduação já era professor particular de língua portuguesa no interior de São Paulo. Com o dinheiro que ganhava das aulas vinha à capital umas duas vezes por mês. Ficava hospedado na “República da Bulgária”, apelido do apartamento onde moravam uns amigos de Americana, localizado na avenida São João. Era uma bagunça. Em São Paulo, adorava ir às livrarias Parthenon e Francesa, na rua Barão de Itapetininga, e costumava voltar para Americana com a mala cheia de livros.

Sempre gostou de ler?
Sim. Meu pai, João Alfredo, era um grande leitor, embora tivesse apenas cursado o que hoje seria o ensino fundamental I. Eu nasci em Cosmópolis, interior de São Paulo, em 1942. Quando tinha 2 anos, minha família mudou-se porque meu pai conseguiu trabalho como técnico de tecelagem na fábrica do irmão mais velho, em Americana. Nas horas vagas ele gostava de pescar e comprar livros. Cresci lendo Carlos Drummond de Andrade [1902-1987], Machado de Assis, Clarice Lispector, Graciliano Ramos [1892-1953], Dostoiévski [1821-1881]. Muita coisa era da biblioteca do meu pai. No meu caso, além dos livros, sempre adorei plantas e animais. Tanto que quase cursei agronomia, mas acabei desistindo por causa da biologia e da química, disciplinas que até ia bem na escola, mas não despertavam meu interesse. Achava aquilo muito chato.

Arquivo pessoalCom a historiadora francesa Anne-Marie Chartier em Paris, na década de 1990Arquivo pessoal

Retomando seu início de carreira: como foi o começo de sua trajetória como professor?
Em 1964 terminei o curso de letras anglo-germânicas decidido a trabalhar no ensino público. Achava que havia, e, claro, ainda há, muito a se fazer pela educação pública do país. Na época, minha professora de latim no ensino básico se aposentou. E eu, aos 22 anos, com a cara e a coragem, me candidatei para ser seu substituto no curso clássico no Instituto de Educação Presidente Kennedy, em Americana. Fui aceito e fiquei nessa escola pública entre 1964 e 1966. No fim daquele ano prestei concurso e me tornei professor efetivo de português da rede estadual paulista. A partir de março de 1968, quando assumi o cargo, passei por Pindamonhangaba [1968-69], Poá [1969] e Santo André [1970-1977], cidades do estado de São Paulo. Era o momento pós-AI5, com agentes da polícia infiltrados em sala de aula, disfarçados de alunos. Caso dissesse algo que esses espiões considerassem subversivo, o professor era denunciado e seguia para interrogatório no Dops [Departamento de Ordem Política e Social].

O senhor chegou a ser preso durante a ditadura militar (1964-1985)?
Não, mas sofri ameaça. Havia um aluno do curso noturno do terceiro colegial, em Santo André, que sempre se sentava no fundo da sala e anotava tudo. Um dia ele se apresentou como agente do Dops e disse algo assim: “O senhor ensina muito bem, mas também diz coisas comprometedoras. Por muito menos, já prendi gente. Tenho um parceiro que quer denunciá-lo e o senhor pode ser preso a qualquer momento. Tome cuidado”. Felizmente nada aconteceu comigo, mas colegas e amigos foram presos. Alguns desapareceram.

Quando entrou na pós-graduação?
Em 1968 ingressei no mestrado em linguística na USP sob orientação do professor Isaac Nicolau Salum [1913-1993]. Mas logo abandonei a pesquisa, que estava em uma fase muito embrionária, porque não consegui conciliar trabalho e estudo. Em 1975 retornei à pós-graduação da USP, dessa vez para a área de literatura brasileira. Durante a disciplina do professor José Carlos Garbuglio sobre Grande sertão: Veredas escolhi Guimarães Rosa [1908-1967] como tema de pesquisa. Eu lia o Rosa desde a adolescência e sempre admirei sua generosidade com aqueles que não têm voz. Comecei a escrever a dissertação em 1977, mas a engavetei dois anos depois para trabalhar em cursinhos pré-vestibulares e numa faculdade particular como professor de linguística e literatura brasileira. Por fim, em 1982 retomei a escrita. No ano seguinte defendi o trabalho, por pressão do meu orientador, prestei concurso e me tornei, aos 41 anos, professor de literatura brasileira na USP.

Na dissertação, o senhor defende que Grande sertão: Veredas seria uma espécie de “Macunaíma a sério”. O que quis dizer com isso?
Em Macunaíma, Mário de Andrade [1893-1945] discute de forma irônica, paródica e até mesmo carnavalesca várias teorias sobre a formação do caráter nacional. Obviamente, ele não se referia a “caráter” no sentido de “ética”, como se Macunaíma fosse um herói sem nenhuma moral. Mário está pensando em algo mais profundo, sobre qual seria o ethos cultural do herói brasileiro, que é africano, indígena e europeu. Ele defende a criação de uma literatura moderna e inventiva, mas sem o caráter nacionalista. E Guimarães Rosa radicaliza essa ideia. Seu projeto é dar voz às linguagens que constituem o Brasil desde o século XVI, mas trata de dissolvê-las em um grande vórtex, em um grande redemoinho, que nos sugere veredas, pequenos caminhos, rumo a formas que ainda vão ser produzidas. Grande sertão: Veredas não é um puro exercício metalinguístico pós-moderno, concretista, formalista. É uma coisa muito maior. Rosa tinha um projeto linguístico-literário e também metafísico, que era a ideia de fundar uma literatura, fundar um povo, fundar um Brasil. Mas faz isso sem lançar mão da paródia presente em Macunaíma.

Em seu doutorado o senhor estudou o poeta Gregório de Matos. Quem foi ele?
Gregório de Matos nasceu na primeira metade do século XVII, em Salvador, então centro da vida administrativa e jurídica da Colônia. Era filho de mãe brasileira e de um fidalgo português que se tornou senhor de engenho no Recôncavo Baiano. Sua família era influente e próxima da família do padre Antônio Vieira [1608-1697]. Por volta dos 14 anos ele foi enviado para Portugal e, como todo menino rico da época, se formou em direito canônico na Universidade de Coimbra, em 1661. Por sinal, o único local em que se pode ver sua assinatura é no livro de matrículas dessa instituição. Embora não se saiba muito sobre sua vida, acredita-se que ele tenha chegado a se casar e trabalhar como juiz de direito em Portugal. Há quem diga que ditava as sentenças dos processos em versos.

Fui ser professor da rede estadual paulista no momento pós-AI5, com agentes da polícia infiltrados em sala de aula

Quando voltou ao Brasil?
Em 1682 Gregório foi nomeado pelo rei português para ocupar um cargo eclesiástico em uma igreja de Salvador, mas, ao descobrir que precisaria fazer voto de castidade, desistiu. Abriu uma banca de advocacia em Salvador, casou-se pela segunda vez e teve um filho, Gonçalo. Não se sabe por que, em 1684, ele se despiu das roupas de fidalgo, vestiu um camisolão e passou a andar pelo Recôncavo Baiano acompanhado de um grupo de saltimbancos e prostitutas. Tocando uma viola de cabaça, passou a apresentar nos engenhos poesia satírica, muito obscena, pornográfica, o que lhe rendeu o apelido Boca do Inferno. Em 1694 ele foi degredado para Angola. Dois anos depois, de volta ao Brasil, fixou-se em Recife, onde morreu em 26 de novembro de 1696, sendo enterrado em um convento que foi demolido no século XVIII. Nada sobrou dele, além de sua poesia.

E como era sua poesia? Sobre o que ele escreveu?
É atribuído a Gregório um conjunto muito grande de manuscritos de poesia, tanto lírica, com temática amorosa ou religiosa, quanto cômica na variante da sátira. A sátira é um gênero nascido na Roma Antiga que se caracteriza pelo vitupério, pelo xingamento, pela desqualificação do tipo que se ataca. Para tanto, lança mão de uma linguagem obscena, mas é extremamente moralista. Como dizia o próprio Gregório de Matos, ela fere para curar. Essa vertente da produção dele, que é, por sinal, muito sarcástica, foi o foco da minha pesquisa. Como um todo, a obra atribuída a Gregório dá conta de temas do estado da Bahia. Simultaneamente, ele põe em circulação várias referências culturais europeias contemporâneas do século XVII, que cita o tempo todo, bem como utiliza padrões poéticos antigos, tanto líricos quanto cômicos.

O senhor usou o termo “atribuído”. Por quê?
Gregório de Matos não publicou nada em vida, de forma impressa. No século XVII, além de a circulação de material impresso ser proibida na Colônia, a maior parte da população era analfabeta. A sátira era escrita em folhas avulsas de papel de tamanhos diversos, que costumavam ser pregadas de madrugada, com cola de mandioca, na porta das igrejas. Depois, alguém que sabia ler declamava os versos em voz alta para um público iletrado e, como eram facilmente memorizáveis, acabavam inspirando outros poemas de terceiros. Na época, essa prática produziu uma grande quantidade de poemas que circulava de forma anônima. Havia quem colecionasse esses manuscritos, que eram então costurados e formavam cadernos, chamados de códices. Vale dizer que essa produção, reunida sem critérios normativos, inclui textos de autoria duvidosa, e, no caso de Gregório, não se encontra nenhum poema que seja idêntico nos diferentes códices existentes produzidos entre os séculos XVII e XVIII. Esses códices estão no Brasil, mas também nos Estados Unidos, Espanha, França, Portugal. Em razão da grande quantidade de poemas, mais de 700, é difícil supor que todos foram escritos por ele.

Essa incerteza em relação à autoria não o incomodou na hora de fazer a pesquisa?
Acredito que podemos ler esses resíduos como documentos de práticas simbólicas de uma sociedade colonial e não apenas de um indivíduo. Ou seja, meu foco sempre foi a produção e não a pessoa Gregório de Matos. Quando comecei a pesquisa deixei de lado tudo o que se falava sobre ele, que era tarado, alcoólatra, doente mental, revolucionário, libertário, por exemplo. Essas histórias começaram a ser contadas no século XVIII e ao longo desse tempo chegou-se, inclusive, a criar uma relação entre a biografia e a obra, o que é uma bobagem.

Arquivo pessoalAo lado do historiador britânico Peter Burke, de quem se tornou amigo nos anos 1980Arquivo pessoal

Quais desafios enfrentou durante a pesquisa?
Quando comecei o trabalho, também orientado pelo professor Garbuglio, sabia muito pouco sobre a produção atribuída a Gregório de Matos. Na tese, investigo basicamente a relação entre sua poesia satírica e a sociedade baiana e portuguesa no mundo colonial da cana-de-açúcar. E busquei fazer isso ao cotejar essa produção poética com tratados de retórica da época e documentos históricos. Entre eles, estão as delações de pecados e heresias ao Santo Ofício, braço da Inquisição que atuou na Bahia nos séculos XVI e XVII. Como mostro na tese, a sátira seiscentista tem muita afinidade com as técnicas inquisitoriais católicas, sobretudo ao acusar pecados. A sátira pressupõe um sistema de virtudes que estão sendo corrompidas por práticas viciosas. No caso, a ideia é censurar o vício para reafirmar a virtude. Outros documentos decisivos para a análise da sátira foram as atas da Câmara e Cartas do Senado, que localizei no Arquivo Municipal de Salvador, pois tratam de personagens e eventos que, em geral, aparecem nos poemas. Levantar essa documentação foi um desafio, bem como encontrar no Brasil bibliografia que desse conta do escopo da pesquisa. Não podemos esquecer que fiz a pesquisa em um mundo analógico. Hoje, textos de época sobre retórica como Arte dello stile, ove nel cercarsi l’idea dello scrivere insegnativo [1647], de Sforza Pallavicino [1607-1667], estão disponíveis na internet, mas na década de 1980 consegui ter acesso a apenas alguns trechos numa antologia italiana.

Como driblou o problema?
Foi um trabalho minucioso. Garimpei livros em sebos e bibliotecas públicas de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife. Encomendei a amigos que viajavam ao exterior os principais tratados de retórica antiga escritos por preceptistas como Lodovico Castelvetro [c. 1505-1571], Baltasar Gracián [1601-1658] e Francisco Leitão Ferreira [1667-1735] que circularam na península Ibérica e nas colônias portuguesas e espanholas nos séculos XVII e XVIII. Essa produção já havia sido editada e estava disponível em livrarias na Europa. Em 1987, quando começava a redação da tese, localizei na seção de livros raros da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, uma edição de Il cannocchiale aristotelico, ou, em livre tradução, Telescópio aristotélico, escrito em 1654 pelo jesuíta e conde Emanuele Tesauro [1592-1675]. O exemplar que pesquisei era de 1685 e pertenceu ao acadêmico português Francisco Leitão Ferreira [1667-1735] e também integrou o acervo da biblioteca de dom João VI [1767-1826]. Essa obra, que sistematizou conceitos retóricos, foi fundamental para que eu entendesse a sátira daquele período. Lembro que os funcionários da biblioteca me emprestaram uma lupa para que pudesse ler aquele catatau com mais de 900 páginas. Se não bastasse a dificuldade de decifrar o italiano arcaico, parte do miolo havia sido comido por traças. Como o estado precário do livro impedia a reprodução mecânica, copiei à mão todo o 12° capítulo, “Trattato de’ ridicoli”, ou “Tratado dos ridículos”, que era o que mais interessava à minha pesquisa.

O senhor trabalhou com um grande volume de informação. De que forma o organizou?
Para obter uma visão espacial e sistêmica da estrutura da mitologia narrada por indígenas sul-americanos, o antropólogo Claude Lévi-Strauss [1908-2009] anotou tudo em cartolinas e as pendurou em dois varais paralelos em uma grande sala do Museu do Homem, em Paris. Como eu não tinha computador na época, resolvi fazer algo parecido. Comprei folhas avulsas e montei 12 cadernos. Cada um deles ficou com cerca de 300 páginas. Neles escrevi à mão uma espécie de glossário com termos recorrentes na obra atribuída a Gregório e na sátira da época. Começava com Abaeté, a lagoa em Salvador, e chegava a zoilo, que significa louco, estúpido. Visualizar esses elementos me ajudou a entender aquele universo que estava pesquisando. Eu me sentia uma espécie de arqueólogo.

O trabalho deve ter sido imenso.
Nem me fale. Entre outras coisas fichei as Obras completas de Gregório de Matos [1968], edição em sete volumes organizada pelo sociólogo James Amado [1922-2013]. Na década de 1960, James, que era irmão do escritor Jorge Amado [1912-2001], e a poeta Maria da Conceição da Cruz Paranhos foram até a Biblioteca Nacional e fizeram esse levantamento no códice de Manuel Pereira Rabelo, do século XVIII, apontado como o primeiro biógrafo de Gregório. Mais tarde, em 2013, eu e Marcello Moreira, que foi meu aluno na USP, editamos e analisamos poemas atribuídos a Gregório reunidos no códice Asensio-Cunha. Trata-se de um documento do século XVIII, que hoje pertence à Universidade Federal do Rio de Janeiro. A obra em cinco volumes foi lançada pela editora Autêntica, em 2014. Marcello, hoje professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, é, e em minha opinião também, um dos maiores especialistas em codicologia no mundo.

O que sua pesquisa de doutorado apontou quanto à sátira atribuída a Gregório de Matos?
A imagem do Gregório de Matos libertário, subversivo, foi criada por críticos e historiadores do século XIX, e, de certa forma, se mantém até hoje. Na tese mostro que, ao contrário do que algumas interpretações contemporâneas propunham, a sátira atribuída a Gregório não se opunha aos poderes constituídos. Embora faça uma crítica de costumes, que não poupa os poderosos da época, sua meta é apontar excessos e desvios, mas sem, contudo, criticar as normas e hierarquias sociais. O eu-lírico é de um homem branco, nobre, letrado, católico, que compartilha dos valores da elite da época – que, entre outras coisas, escravizava negros e assassinava indígenas para ocupar suas terras. Trata-se de uma sociedade aristocrática extremamente desigual e com profundo desprezo pelo trabalho manual. Também mostro na tese que a poesia de Gregório seguia um modelo que no século XVII era ensinado e sistematizado nos colégios da Companhia de Jesus, onde, inclusive, ele foi aluno.

Durante a pesquisa de doutorado sobre o poeta Gregório de Matos eu me senti uma espécie de arqueólogo

Como chegou a essa conclusão?
Quem me chamou a atenção para esse ponto foi o historiador inglês Peter Burke, de quem me tornei muito amigo. Na década de 1980 ele veio ministrar um curso na USP e fui convocado para fazer a tradução simultânea. Uma das aulas foi sobre insultos na Itália do século XVII, gênero comum naquele período, que eram extremamente obscenos e me remeteram aos escritos de Gregório de Matos. Peter não conhecia a obra de Gregório, mas levantou a hipótese de que essa produção poderia estar inserida em um circuito internacional de modelos culturais. Na época, ele havia levantado uma grande documentação sobre a Companhia de Jesus. Como se sabe, os jesuítas formaram uma espécie de agência cultural transnacional, estavam em vários lugares do mundo. Então, letrados na França, Espanha, Portugal e Itália, e depois no México, Argentina e Brasil, por exemplo, compartilhavam das mesmas referências, do mesmo repertório.

Por que ler Gregório de Matos?
Trata-se de um poeta extremamente culto, com amplo domínio de todos os códigos. E sua produção sinaliza que não precisamos esperar pelos autores do século XVIII e XIX, como preconizam obras como Formação da literatura brasileira [1959], de Antonio Candido [1918-2017], para começar a pensar sobre práticas culturais no Brasil. Candido afirma que não existia na Colônia condições materiais para a disseminação literária, mas hoje sabemos que havia sim um sistema cultural absolutamente consistente no século XVII, que não pode ser ignorado. Ou seja, existiam outras formas de ler e escrever no Brasil da época.

Essa temática ainda o interessa?
Sim. Há três anos desenvolvo o projeto “Técnicas do gênero retrato nos séculos XVI, XVII e XVIII”, com apoio do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], em que busco mostrar por meio de tratados de retórica a relação entre escultura, pintura e poesia daquele período. Venho escrevendo bastante a respeito e pretendo publicar essa produção após o término do projeto, no ano que vem. Mas, claro, tenho outros interesses. Acabei de entregar a tradução de “Eólo”, sétimo capítulo de Ulisses, de James Joyce, que vai integrar o livro Ulisses – A dezoito vozes, organizado por Henrique Piccinato Xavier. Sem contar que no momento, apesar de aposentado, oriento trabalhos na pós-graduação da USP. Os temas são diversos, vão das cartas do padre Antônio Vieira à literatura de Clarice Lispector e Hilda Hilst [1930-2004]. Gosto dessa multiplicidade, o que pode parecer exótico em um mundo cada vez mais especializado.

No livro A arte da aula, o senhor relata: “Na USP, me aconteceu algo raríssimo: a conversão de um homem pela poesia”. Como foi essa história?
Foi no final dos anos 1990, quando ministrei uma disciplina sobre modernismo na graduação de letras. Tratei sobretudo de Drummond, mas também de Murilo Mendes [1901-1975], João Cabral de Melo Neto [1920-1999], Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector. Desde 1983, ano em que me tornei docente da USP, até 2012, quando me aposentei, fui professor do curso noturno. Grande parte dos alunos trabalhava o dia inteiro, como era o caso desse aluno, sempre de terno e gravata, todo certinho. No final do curso apareceu de calça jeans, camiseta, tênis. De yuppie virou hippie. Me contou que era executivo de uma grande empresa e que a poesia de Drummond tinha mexido de tal forma com ele que havia decidido mudar de vida. Por causa disso, pedira demissão para ser professor na periferia. E recitou um trecho do poema “Elegias”: “Trabalhas sem alegria para um mundo caduco”. Na época, eu lhe disse que estava maluco. Reencontrei esse aluno cerca de dois anos depois e ele estava firme em sua decisão. É por isso que adoro sala de aula. Essa troca com os alunos é muito rica. Como diz Riobaldo, em Grande sertão: Veredas, mestre não é o que ensina, mas o que aprende.

Qual é o papel da literatura hoje?
Infelizmente, é cada vez menor. Desde o início da década de 1990 ela não tem mais o caráter de formação que teve, por exemplo, para minha geração. Aprendi muito com a literatura, acho que muito mais do que no ginásio, no curso clássico e na universidade.

Republicar