
LÉO RAMOSJoão Carlos Martins: “Nasci pianista e quero morrer pianista”LÉO RAMOS
Na Bíblia, Jó perde os filhos, a fortuna e os bens. E aguentou firme. Deus permitiu ainda que Satanás o ferisse de úlceras malignas, desde a planta do pé até o alto da cabeça. Ele continuou em frente. Após suportar tudo, enfim Jó foi premiado pelo Criador. Hoje, porém, ninguém se lembra de que, antes de tudo isso, ele era um homem único pela sua integridade. Só falam da sua superação. O pianista e regente João Carlos Martins, longe da retidão da figura bíblica, é humano, demasiado humano, como todos nós. O seu maior terror é justamente ser conhecido, como Jó, apenas pelas mazelas de sua vida, que são muitas, e não pelas conquistas como artista.
“Eu recebi um talento de Deus e várias vezes não soube dar valor a esse presente. Há, porém, muita gente que fala que eu quero me dar bem com a minha história de superação, com o fato de ter aparecido no final da novela Viver a vida e dar autógrafos nos aeroportos e tirar foto com as pessoas”, conta João, cujo nome, curiosamente, lembra o de Jó. “Na verdade, a história de superação só me serve para eu poder espalhar a música pelos brasileiros. É um crime tocar a Quinta sinfonia, de Beethoven, no Domingão do Faustão se consigo, com isso, alcançar 10 milhões de pessoas ao vivo?”, pergunta o maestro. Martins faz cálculos rápidos das apresentações da sua orquestra, a Bachiana Filarmônica, que fundou em 2004: são 2 milhões de pessoas nos concertos fechados, 3 milhões em apresentações abertas e 5 milhões de espectadores nos megaeventos, como no show do réveillon de São Paulo no final de 2012. “Onde no Brasil há um público desse para música clássica?”
Para além dos números de pessoas que ouvem música, Martins é responsável por um grupo crescente de crianças que aprende a tocar música. “Temos 4 mil crianças que são introduzidas nesse universo pela Fundação Bachiana. Temos núcleos de estudo com o método ‘à la corda’, que trabalha, num primeiro momento, a formação de grupos de cordas, já que, nas orquestras, 60% dos instrumentistas são desse naipe. Quero formar mil orquestras até fazer 80 anos”, fala.

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Com Heitor Villa-LobosArquivo Familiar“Você consegue mudar a vida de toda uma comunidade por meio da música. Um exemplo: se você está vendo um jogo de futebol e o Messi faz um gol pela Argentina, a vontade é de matar os argentinos. Mas, na mesma noite, se você ouvir um tango a sensação é de pura beleza. A música serve, justamente, para reunir as pessoas”, acredita o maestro. Por isso, no dia 24 de dezembro, Martins planeja tocar Jesus, alegria dos homens, da cantata de Bach, com 70 orquestras espalhadas pelo Brasil que seriam reunidas pela internet, com ele regendo de algum monumento, talvez, sonha, o Cristo Redentor. “Sou adepto de uma sabedoria chinesa que diz que para multiplicar você precisa dividir”, observa Martins. “Villa-Lobos queria fechar o Brasil em forma de coração em torno da música. Imagine o que ele faria hoje com a internet e a televisão.”
Esse entusiasmo acompanha o músico desde criança, quando, aos 8 anos, o pai o inscreveu num concurso para tocar Bach e ele venceu seu primeiro desafio. O autor do Cravo bem temperado virou a obsessão de Martins, que já gravou toda a sua obra para teclado, pelo selo americano Concord, em 19 CDs, numa leitura que foi comparada, pela originalidade, às versões radicais do canadense Glenn Gould. “Com Bach, eu procurei ter a relação de um compositor europeu que pegou uma caravela e veio conhecer o Brasil. Respeito o texto original, mas dou a visão de um brasileiro sobre a obra de Bach. E para isso você precisa ter uma coragem danada. A concepção rítmica e melódica de um pianista brasileiro certamente não é a de um europeu”, explica.

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Com a pianista Guiomar NovaesArquivo FamiliarPara Martins, Bach foi a síntese e a profecia de tudo e ele continua caminhando através dos séculos. Qual seria o Bach de hoje? “Primeiro, ele se encontraria com o Bill Gates e diria: ‘Bill, não adianta você tentar fazer um computador com alma. O único fui eu e Deus guardou essa fórmula para outro sistema planetário, não para a Terra’. Bach foi um computador – e um computador com alma. A música de hoje seria feita com todas as alternativas musicais de hoje, combinando a matemática precisa e a alma”, acredita o pianista e regente. “Quando Bach escrevia nova música, ou quando Beethoven, mesmo surdo, fazia música, no consciente eles se julgavam menores do que eram. No subconsciente, tenho certeza de que eles sabiam estar deixando um legado para a humanidade. Eles sabiam que eram melhores. Mas todo cara que é muito bom tem uma certa timidez.”

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João Carlos Martins, de frente, toca Bach em dueto com o colega jazzista Dave Brubeck no Lincoln Center, em Nova YorkArquivo FamiliarConselho de dalí
Reza a lenda que, há muitos anos, durante um jantar com a atriz Mia Farrow, Martins ouviu um conselho maroto de Salvador Dalí: “Comece a dizer que você é o maior intérprete de Bach, e em 30 anos o mundo vai acreditar em você”. Mas músicos sérios afirmam que ele sabe o que toca. “A identificação, a compreensão e o amor de João por Bach é inquestionável, comovente e autêntico. E ele não parou por aí. Sua exploração do repertório revela inteligência, originalidade e dedicação. A arte dele é consequência direta de sua imensa humanidade”, elogia o colega pianista Jean-Louis Steuerman. “Ele traz uma mensagem muito bonita, em especial para aqueles que enxergam além do óbvio”, concorda o também pianista Nelson Freire. Aos 12 anos, após um concerto, recebeu um bilhete de uma admiradora especial: Guiomar Novaes. “Raramente no curso de um século aparece uma pessoa tão predestinada como você, João Carlos.”
Mas o “talento que ganhou de Deus” foi submetido a muitas provas. Numa partida de futebol feriu-se e, como diz, não teve a maturidade para ficar na música e se afastou. Quando resolveu voltar, o segundo baque: uma lesão por esforço repetitivo o tirou novamente da música e ele, mais uma vez, confessa que lhe faltou a maturidade para ficar. Vendeu todos os pianos e chegou a virar empresário de boxe. Na terceira vez, ao tentar um retorno ao teclado, foi espancado durante um assalto na Bulgária, onde estava gravando um disco, o que tirou dele novamente parte do movimento das mãos. “Aí eu vi que precisava lutar com todas as forças para permanecer na música.” Lutando contra dores fortes, precisou fazer uma reprogramação cerebral e tentou tocar só com a mão esquerda.

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João Carlos quer voltar a tocar com as duas mãos em 2015 num concerto de MozartArquivo FamiliarSonhou uma noite com o maestro Eleazar de Carvalho, seu velho amigo, e decidiu, aos 64 anos, se transformar em regente. Teve apenas poucas aulas e, em oito anos, passou da marca dos mil concertos. “Foi uma mudança na minha vida: procurar a excelência musical com responsabilidade social. Vi que era hora de retribuir o fato de ter conseguido permanecer na música ainda que pela regência”, diz Martins. Apesar de ter penado como Jó, ao contrário do personagem bíblico, o pianista reconhece seus muitos erros. “Nunca deveria ter entrado para a política. Vejo, agora, que um artista não pode se envolver nessas coisas quando recebe um dom divino”, fala.
Por isso também fala sem rodeios que não se arrepende de ter colocado sua orquestra para tocar com sertanejos, para ele uma estratégia para atingir um bem maior. “Eu queria que o público do sertanejo entendesse a força da música clássica. Se tocamos Beethoven com Chitãozinho e Xororó foi para que, hoje, pudéssemos fazer o que bem entendêssemos. A orquestra ficou conhecida e estou radicalizando a programação”, revela.

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Regendo a BachianaArquivo FamiliarO maestro diz que, dos mil concertos, apenas 30 foram nessa direção mais pop, o que representaria, segundo ele, menos de 2% do total de apresentações. A sua nova solista, numa apresentação em São Paulo, em novembro, também é polêmica: a secretária de Estado do governo Bush, Condoleezza Rice, que tocará o Concerto para piano, de Schumann, com a Bachiana.
Nada mais natural para um grupo que já fez dupla com a bateria da escola de samba paulista Vai-Vai, que, em 2011, homenageou o regente com o enredo A música venceu, levando o estandarte do Carnaval daquele ano com a história de Martins. “Foi a vitória da música clássica, do nome de Bach do Sambódromo. Eu tive uma vida cheia de altos e baixos e é um reconhecimento da seriedade dos meus trabalhos, tanto na música quanto na parte social”, avalia o pianista.
Martins gosta de lembrar que faz concertos para crianças da periferia na “inatingível” Sala São Paulo. “Levei quase 2 mil crianças num concerto outro dia. Quando perguntei quem teve vontade de chorar, quase 80% da garotada levantou a mão. Ter acesso à boa música é um direito de todos os segmentos da sociedade.” Em reconhecimento a essa atenção dispensada às crianças, o cartunista Mauricio de Sousa criou o Maestrinho Joca, personagem inspirado em João Carlos Martins que, até o final do ano, irá incentivar as crianças a ouvir “boa música”. “Quem mexe com música sabe. Criança adora música clássica, os pais é que geralmente não gostam tanto. Se deixar, ela vai embora ouvindo”, afirma Mauricio, seu amigo de longa data.
Além disso, está programado um filme em sua homenagem, em que o ator Marcelo Serrado irá interpretá-lo. Milagre das mãos, com direção de Bruno Barreto, começa a produção em dezembro e está previsto para circular em 82 países. “O Marcelo Serrado irá emagrecer alguns quilos. Ele tem a vantagem de tocar piano. Eu li o roteiro e garanto que, depois de seis minutos de filme, vai ter muita gente com lágrimas nos olhos”, acredita o pianista. Após amargar um ostracismo forçado, Martins está de volta com toda a força. “A pessoa quando nasce é como uma flecha, ela tem que alcançar o seu destino. Ela pode ter desvios, mas ela vai alcançar o seu destino. Na vida você pode ter erros e acertos, os erros você corrige e os acertos você procura aprimorar”, avisa.

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À frente da escola de samba Vai-Vai como enredo vencedor de 2011Arquivo Familiar“Ele é um símbolo de que foi programado para não desistir, como ensinava o nosso pai. Se todos tivessem 10% da visão social que ele tem, talvez o Brasil tivesse menos problemas com seus jovens. Eu sou o irmão mais velho, ele, o caçula, mas sempre vou admirar a grandeza e energia em criar talentos e ajudar as pessoas”, diz o jurista Ives Gandra Martins. Apesar desse entusiasmo, Martins não se conforma em ter parado de tocar piano, uma dor que não o abandona. Suas histórias com o piano são sempre memoráveis, como quando tocava no Alasca, em 1970, as partitas de Bach e alguém lhe avisou que o pianista Dave Brubeck estava na plateia. Em homenagem ao jazzista, Martins tocou como bis Thank you, tributo a Chopin composto por Brubeck, que foi dar o seu “thank you” no camarim do brasileiro. “O seu Bach é tão enérgico que tive de mandar meus filhos pararem de bater os pés no chão para acompanhar você como se fosse jazz”, elogiou o colega americano.
“Não nego que a regência tenha me dado muita coisa boa, mas nasci pianista e quero morrer pianista. Acordo todos os dias pensando nisso”, revela. Em novembro, ele vai tocar o Concerto para mão esquerda, de Ravel, com Roberto Minczuk à frente da Orquestra Sinfônica Brasileira. Se tudo continuar bem, em 2015 quer se submeter a uma nova cirurgia para retirar um tendão da perna e implantar na mão direita e, enfim, tocar novamente um concerto, de Mozart, com as duas mãos. Infelizmente, basta uma busca rápida pela internet para perceber que há poucas referências ao seu nome como grande intérprete de Bach e muitas como um “exemplo de superação”. No passado, era o oposto: além de matéria de muitas críticas elogiosas e entrevistas, Martins foi assunto de três páginas do prestigiado jornal americano The New York Times. Aplaudir apenas a sua força de vontade não é a melhor forma de elogiá-lo, pedindo a ele que tenha uma “paciência de Jó” até que o público volte a falar apenas do talento de João, um artista.
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