Os historiadores podem cumprir um papel importante ao acompanharem de perto os fatos em torno do novo coronavírus. A compreensão que têm de epidemias do passado pode fornecer alertas importantes sobre como encarar o presente. A avaliação é da historiadora Liane Maria Bertucci, professora do Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pesquisadora de história social da saúde, Bertucci dedicou as últimas duas décadas a investigar práticas de cura e políticas de saúde pública implementadas no Brasil entre o final do século XIX e o começo do XX.
Lembrada com frequência nas últimas semanas por guardar semelhanças com a pandemia do novo coronavírus, a epidemia de gripe espanhola de 1918 permaneceu esquecida por muitas décadas. Segundo estimativas, 500 milhões de pessoas foram infectadas, um terço da população mundial da época, causando a morte entre 25 milhões e 50 milhões de indivíduos, diz Bertucci, que estuda o contexto histórico da doença desde o doutorado. A pesquisa resultou na publicação do livro Influenza, a medicina enferma (Editora Unicamp, 2004), que trata como a epidemia foi enfrentada na cidade de São Paulo. Na entrevista a seguir, Bertucci apresenta hipóteses que explicam esse esquecimento e fala da importância dos estudos históricos na organização do conhecimento sobre epidemias.
Qual a contribuição da história no enfrentamento do novo coronavírus?
Nas últimas décadas, historiadores estudaram as grandes epidemias que se abateram sobre a humanidade em momentos diferentes. Especificamente ao analisar como governos e populações reagiram à pandemia da chamada gripe espanhola, de 1918, é possível identificar medidas que são colocadas em prática hoje, comprovando a eficiência de medidas, como o isolamento social, quando não existem prevenção e tratamento específicos para a doença. O resultado do que fazemos agora para conter o coronavírus pode influenciar a maneira como lidaremos com novas epidemias no futuro.
Como os historiadores investigam epidemias?
São várias as fontes, dos jornais diários aos prontuários médicos. Um material particularmente interessante são relatos feitos por pessoas que vivenciaram as epidemias. Tais memórias individuais trazem indícios de como surtos de doenças infecciosas impactaram o cotidiano dessas pessoas e como foram lembrados décadas depois. A epidemia de gripe de 1918 é um caso curioso. Embora tenha matado milhões de pessoas, a doença foi pouco lembrada por décadas.
Como assim?
São poucos os relatos sobre a gripe espanhola e isso intriga os historiadores. Chama a atenção o fato de as lembranças serem pontuais, esparsas. Há memórias publicadas nas décadas de 1940 e 1950 que relembram a gripe de maneira evasiva, sem dar muitos detalhes. Ao mesmo tempo, poucos artigos e livros trataram do assunto nos anos seguintes à epidemia. Na década de 1970, o livro pioneiro do historiador Alfred Crowsby [1931-2018] referia-se à doença como a “pandemia esquecida”.
O que explica isso?
Uma hipótese é que o surto da gripe espanhola coincidiu com o final da Primeira Guerra Mundial [1914-1918]. Embora tenha ceifado menos vidas do que a gripe de 1918, o impacto da guerra se estendeu por mais tempo, alterando o cotidiano das pessoas de maneira mais prolongada do que a epidemia. É como se a gripe tivesse sido apenas mais um episódio trágico dentro do contexto da guerra.
O impacto econômico da Primeira Guerra teve peso importante, portanto?
Sim, e pouco tempo depois – em termos históricos – veio a crise econômica de 1929. Tanto a guerra quanto a crise de 1929 contribuíram para desorganizar de forma prolongada a vida de muitas famílias em todo o mundo. Os relatos da época, portanto, dão menos ênfase à gripe. Além disso, nas décadas seguintes, a memória da pandemia foi novamente ofuscada pela eclosão da Segunda Guerra Mundial [1939-1945].
De que maneira a epidemia de 1918 passou a ser estudada mais recentemente?
Os estudos historiográficos sobre a pandemia de 1918 cresceram a partir dos anos 1980 – o livro de Crosby foi inclusive reeditado – e ganharam grande impulso depois da epidemia causada pelo vírus influenza A (H1N1), a gripe suína de 2009. Talvez seja bom lembrar que a gripe, epidêmica ou não, é causada por um vírus mutante que tem três subtipos, ou cepas, identificados como A, B e C. O tipo A é o potencialmente mais virulento. Em 2009, o surto, de alta patogenicidade e muito perigoso, da gripe H1N1 se replicou rapidamente, causando gravíssimas complicações pulmonares e comprometendo outros órgãos dos gripados, de forma muito semelhante ao que ocorreu em 1918. A epidemia de 2009, portanto, imediatamente resgatou a memória da gripe espanhola. Havia o medo de que a crise observada no início do século XX se repetisse em 2009. O movimento de olhar para o passado serviu de alerta, inclusive sobre as medidas tomadas em situação semelhante. Acredito que o que vivenciamos em 2009 e a lembrança da gripe espanhola podem também ser um alerta hoje, durante a epidemia do coronavírus, mesmo que o vírus seja outro.
Há um paralelo entre as medidas adotadas em 1918 e agora?
O isolamento social foi a principal medida adotada em 1918, e, até agora, é a melhor estratégia implementada para frear o avanço do novo coronavírus. Naquela época, vários países, incluindo o Brasil, resolveram fechar escolas, teatros, parques públicos e outros locais que reuniam muitas pessoas; em poucos dias os bondes deixaram de circular e os carros desapareceram das ruas. No Brasil, diferentemente de hoje, não houve uma campanha para o isolamento como vemos agora. Foram as medidas tomadas pelos governos estaduais proibindo acesso a locais de reunião e o crescimento vertiginoso de doentes e depois de mortos que concorreram para que as pessoas ficassem em casa. É interessante observar, por exemplo, como o número de páginas dos jornais que circulavam no país naquela época foi diminuindo conforme os jornalistas também adoeciam e ficavam em casa.
Hoje podemos comprar quase tudo pela internet. Como isso foi tratado em 1918?
Em geral os mercados fixos, como o Mercado Velho de São Paulo, permaneceram abertos durante o surto, mas com restrições. As famílias geralmente tinham um de seus membros encarregado de fazer compras essenciais. Paralelamente, ainda tomando a cidade de São Paulo como exemplo, foram montados os chamados Postos de Socorro, com médicos, distribuição de remédios e, em alguns casos, alimentos. Esses postos foram instalados nas delegacias de saúde, em escolas, sinagogas, lojas maçônicas, fábricas, entre outros espaços. O Serviço Sanitário da cidade organizou uma rede de atendimento aos gripados, contando com a colaboração da Cruz Vermelha, do arcebispo de São Paulo, de médicos e de entidades civis e filantrópicas. Os jornais se uniram nessa campanha, divulgando informações de prevenção, entre elas evitar aglomerações e adotar medidas de higiene. Isso não significou que governantes e médicos não fossem alvo de críticas dos periódicos – principalmente na questão da organização do atendimento aos doentes. A população ajudou fazendo doações de dinheiro e alimentos. Quando foram criados os hospitais provisórios, na tentativa de atender de maneira mais eficaz os muitos doentes, algumas linhas de bonde voltaram a circular em São Paulo, apenas para levar doentes aos hospitais.
Nada disso ficou na memória das pessoas?
Acredito que algo ficou, mas é preciso ter em mente que uma epidemia que matou milhões também causa grande impacto no inconsciente das pessoas. O esquecimento e a incapacidade de falar sobre eventos traumáticos são uma hipótese que pode ajudar a explicar a falta de relatos mais detalhados sobre a gripe espanhola. Procurei resgatar memórias escritas por indivíduos que eram jovens durante a epidemia e, em geral, as pessoas se recordam usando termos genéricos, como “uma grande epidemia” em que “morreu muita gente”.
Assim como em 1918, o conhecimento científico está novamente sendo desafiado. O que isso significa?
Na década de 1910 havia aspectos da gripe que permaneciam desconhecidos pela medicina. Entretanto, pelas observações e pesquisas dos sintomas da doença todos classificavam a gripe como doença microbiana, endêmica e mundial, e como uma moléstia sem tratamento específico ou meio de prevenção. A comunidade científica internacional discutia o agente causador da doença. No final do século XIX, o bacteriologista alemão Richard Pfeiffer [1858-1945] havia defendido a tese de que se tratava de um bacilo. Vários cientistas discordaram, apresentando pesquisas que indicavam a possibilidade de a gripe ser causada por um vírus. Foi nesse contexto que ocorreu a epidemia da gripe espanhola. No caso do coronavírus, trata-se de um vírus conhecido desde a década de 1960, mas o surgimento de uma nova cepa [o Sars-CoV-2, causador da doença Covid-19] impõe um desafio completamente inédito aos cientistas do mundo todo. Ou seja, o conhecimento médico-científico é testado mais uma vez. A pressão é grande sobre os pesquisadores, que precisam buscar respostas rapidamente. No caso da gripe, somente na década de 1930 se comprovou que o responsável pela doença era um vírus. Mas até hoje, e mesmo com as várias descobertas sobre esse microrganismo, a gripe continua sendo uma doença que desafia os pesquisadores, porque não existe tratamento específico para a doença e a vacina da gripe hoje disponível protege de forma relativa e deve ser refeita anualmente.
O fato de a ciência não ter todas as respostas em situações emergenciais abre brecha para tratamentos “milagrosos”?
Eu defendia essa hipótese quando comecei minhas pesquisas, mas depois vi que não é bem assim. A perspectiva que eu tinha era de que a medicina ancorada no conhecimento científico – a partir das descobertas do químico francês Louis Pasteur [1822-1895] e da microbiologia a partir da segunda metade de século XIX – teria sido colocada em xeque assim que estourou a epidemia de gripe em 1918. A lacuna de conhecimento científico teria dado margem para práticas de cura não científicas. Essa hipótese se mostrou equivocada depois que comecei a investigar os jornais da época, especialmente aqueles publicados em São Paulo. Mesmo antes da epidemia, era uma prática comum na imprensa publicar, por exemplo, anúncios de benzedeiras e de “aparelhos” ou produtos que proporcionavam curas extraordinárias, além de textos que discutiam as atividades de curandeiros – o que indicava a atuação desses indivíduos na sociedade. Analisando exemplares publicados durante a epidemia, vi que não houve aumento na quantidade de propagandas e artigos desse tipo. Pelo contrário, antes da gripe havia até mais gente anunciando tratamentos milagrosos.
As comunidades médicas não rechaçavam a publicação desses anúncios em jornais?
O combate ao que era denominado charlatanismo e curandeirismo acontecia sim. Entretanto, até o começo do século XX, era comum um jornal publicar, na mesma página, propagandas de uma benzedeira, de uma clínica médica e de um novo medicamento validado pelo Serviço Sanitário. Podemos ver essa prática em grandes jornais como O Estado de S.Paulo. Mas observei que, naquela época, ao mesmo tempo em que a medicina popularizava alguns termos científicos, como “micróbio”, ela foi, pouco a pouco, deixando de utilizar o espaço dos jornais diários para publicações “especializadas” – inclusive as propagandas de remédios e anúncios de serviços médicos foram sumindo desses periódicos. Por outro lado, no período da epidemia de gripe de 1918, o Serviço Sanitário precisava chamar a atenção das pessoas para que não confiassem cegamente nos remédios que prometiam curar a gripe e, portanto, aprovou a publicação nos jornais dos “Conselhos ao Povo”, com considerações sobre prevenção, como lavar as mãos e evitar aglomeração, e tratamento dos sintomas da gripe, por meio da ingestão de doses de quinino, por exemplo. Nesse contexto, vários médicos passaram a ser convidados a dar entrevistas ou publicar artigos em jornais de grande circulação. Havia uma tentativa de mostrar que, embora a medicina desconhecesse a cura da doença, os médicos e cientistas estavam empenhados em buscar tratamentos eficientes.
As autoridades eram aconselhadas a seguir orientações técnicas?
Durante a epidemia de 1918, as políticas de saúde, saneamento e higiene estavam principalmente nas mãos dos governos estaduais. A responsabilidade maior do governo federal eram os portos, que poderiam ser locais de entrada de doenças – e no caso da gripe espanhola eles foram mesmo, apesar da quarentena de navios e outras medidas. Quanto ao aconselhamento, não encontrei relatos de governantes que não seguiam orientações do pessoal da área da saúde. Isso não significa que não ocorreram divergências entre médicos, relacionadas à forma de conduzir o combate à gripe espanhola, mas essas situações foram rapidamente resolvidas. Apesar do tamanho e das peculiaridades do país, as medidas tomadas pelas autoridades estaduais foram muito semelhantes de norte a sul do Brasil, com participação efetiva dos médicos e outros profissionais da saúde.