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Entrevista

Linamara Rizzo Battistella: Em defesa do movimento

A reabilitação de quem teve Covid-19 é a luta atual da médica que ajudou a criar a política nacional dos direitos das pessoas com deficiência

Léo Ramos Chaves

O primeiro contato de Linamara Rizzo (o Battistella veio com o casamento) com o mundo da deficiência física foi aos 6 anos. Em 1957, ela era uma atriz infantil e, para um programa de televisão, pôs o aparelho usado por pessoas com paralisia infantil para andar. No camarim, quando tirava o equipamento, entrou a apresentadora Hebe Camargo (1929-2012), que então descobriu que a menina não precisava dele e, de tão emocionada, chorou. A pequena atriz não entendeu por que aquilo assustava os adultos.

Depois de se formar em medicina, Battistella participou da elaboração de uma política nacional de reabilitação para pessoas com deficiência e durante 10 anos e 9 meses, de 2008 a 2018, foi secretária estadual nessa área, em São Paulo. Nesse período, ela ajudou a criar a Rede de Reabilitação Lucy Montoro, que se transformou em uma das principais instituições do país no tratamento de pessoas com deficiência física, que implica perda de capacidade motora, sensorial ou cognitiva.

Ela se engajou na gestão e elaboração de políticas públicas sem perder o gosto pelo ensino e pela pesquisa. Desde o início da pandemia, dedica-se à busca dos melhores métodos de reabilitação das pessoas que tiveram Covid-19. A longo prazo, pretende desenvolver exoesqueletos robóticos para ajudar pacientes vítimas de lesão medular e acidente vascular cerebral (AVC) a voltar a andar.

Única brasileira a fazer parte da Academia Nacional de Medicina dos Estados Unidos, é casada, tem três filhos e três netos. Ela concedeu esta entrevista por uma plataforma de vídeo.

Idade 69 anos
Especialidade
Medicina física e reabilitação (fisiatria)
Instituição
Universidade de São Paulo (USP)
Formação
Graduação em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1974) e doutorado pela USP (1990)
Produção
284 artigos e 20 livros (coautora ou organizadora)

Como a pandemia mudou sua vida?
Todos estão padecendo. Adoro minha família, mas devemos manter o distanciamento. Essa tragédia sanitária mostrou nossas mazelas, mas também abriu oportunidades. Hoje converso com meus parceiros de pesquisa nos Estados Unidos e Inglaterra com uma facilidade que não havia antes, não sei por quê. As plataformas de comunicação estavam aí, mas era difícil achar horário. Somos treinados para ter resposta para tudo, mas de repente vi meus colegas assustados; eu estava apavorada. Mas aprendemos a entender a dor do paciente de longe, pela internet. Descobri que esse formato permite trazer o filho ou a filha do paciente para facilitar o tratamento, o que, muitas vezes, era o desejo da família, mas faltava oportunidade.

Quais são os desafios da reabilitação das pessoas que tiveram Covid-19?
Quando a pandemia começou, a primeira coisa que fizemos, em um projeto apoiado pela FAPESP, foi ver as possibilidades de ampliar os cuidados médicos. No final de fevereiro de 2020, uma das discussões no congresso da Sociedade Internacional de Medicina Física e de Reabilitação em Atlanta, nos Estados Unidos, foi exatamente o desafio das epidemias respiratórias. Era claro que a situação poderia piorar, com base nos relatos de colegas da China que já enfrentavam a Covid-19. Em março, quando os casos começaram a se multiplicar no Brasil, os efeitos da Covid-19 já eram um pouco mais conhecidos. Começamos a ver o que seria preciso fazer para atender essa nova demanda nas unidades básicas, de cuidados intermediários e de alta complexidade. Ampliamos os modelos de atendimento, para não deixar ninguém de fora. Hoje [início de abril], temos no HC [Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a USP] 4 mil pacientes atendidos, com cerca de 3 mil sobreviventes, e 823 que acompanhamos depois da alta. Desse total, 60% tinham comorbidades, como hipertensão, diabetes e obesidade, mas apenas as comorbidades não explicam todas as sequelas. A grande maioria dos pacientes que saem com vida dos hospitais não está ainda em condições de voltar às atividades de antes. A reabilitação é fundamental, porque os efeitos da Covid-19 são devastadores.

Entrevista: Linamara Rizzo Battistella
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Que efeitos já observaram?
Além dos sintomas já conhecidos, como perda de olfato e de paladar, temos observado com frequência fadiga intensa, dor de cabeça, dor articular, insônia, depressão, dificuldade na deglutição, de comunicação e de movimento. Por ultrassonografia, vimos grandes alterações na estrutura dos músculos das pernas e dos braços. É uma intensa sarcopenia [perda muscular decorrente da idade, de doenças ou de longos períodos de imobilização] como nunca vimos.

Esse quadro é reversível?
Espero que sim. A reabilitação ajuda muito. Publicamos em fevereiro deste ano na revista Clinics uma abordagem inovadora, associando o uso de medicamentos com exercícios robóticos, ultrassom de alta frequência e o FES, estimulação elétrica funcional, que usamos de uma forma completamente nova e que torna o estímulo bastante tolerável pelo paciente. Em nossos hospitais de reabilitação alcançamos uma boa recuperação em 3 a 4 semanas, um ótimo resultado para quem ficou internado por 3 a 5 meses em unidades de tratamento intensivo. Os exercícios têm impacto direto no controle neural e na redução da ansiedade e da depressão.

Como acompanham os pacientes?
O HC criou uma avaliação integrada e multidisciplinar dos pacientes pós-Covid, com as equipes de cardiologia, pneumologia, endocrinologia, pediatria, otorrinolaringologia, psiquiatria e a nossa, de reabilitação. Em uma única visita o paciente passa por vários especialistas, com um tempo ajustado para não se cansar, e um sistema padronizado de registro de informações. Já sabemos que as pessoas que tiveram Covid-19 precisam muito da reabilitação. Estão muito assustadas, com medo.

Na gestão pública às vezes é melhor esperar e estruturar um programa com densidade. Coisa miúda não sobrevive

Quais são os medos?
No primeiro momento, é o de estar com Covid-19. Depois, de morrer. Quando saem do hospital, têm medo de voltar e viver novamente uma história que foi muito difícil. Você telefona e o paciente diz que está ótimo. “Mas o senhor está andando? Dói ainda?” “Um pouco”, ele diz. “Está conseguindo se alimentar?”, insistimos. “Não, estou preferindo uma sopinha.” Quando dizemos que precisa vir ao hospital, ele pergunta: “Mas não vou ficar internado, não é?”. É o medo do futuro, da doença, do desconhecido. Por isso, o time da psiquiatria tem trabalhado de forma brilhante, inclusive por meio de um aplicativo desenvolvido no HC que tem dado uma sustentação muito boa para orientar o paciente a fazer o tratamento em casa.

A Covid-19 pode ser vista como uma doença crônica?
Hoje ela está sendo classificada como uma doença crônica, a chamada Covid de longa duração. A longa duração dos sintomas afeta um subgrupo de pacientes, que vai exigir atenção e cuidados por um longo período. É o que nos assusta: como nosso sistema de saúde vai suportar isso? Se não estamos dando conta agora, como será daqui a quatro ou cinco anos?

Como dizer para uma pessoa que teve um AVC ou uma lesão medular que, apesar dos esforços, não conseguirá recuperar todos os movimentos?
Essa é a minha maior dor. Quem sou eu para dizer para o paciente: “Você vai parar, não adianta mais”. Há o outro lado: quem somos nós, como sistema de saúde, para continuar colocando recursos em um tratamento que não está funcionando? Tenho dois pacientes com o mesmo tipo de AVC, mas um responde a um tratamento e outro não. Nesse segundo caso, isso ocorre por que ele chegou no limite funcional ou por que não é o tratamento certo para ele? Em um projeto de pesquisa com colegas da Universidade Harvard [Estados Unidos] e financiamento da FAPESP, estamos estudando biomarcadores para buscar essas respostas.

Qual é o limite da reabilitação?
Tudo depende da neuroplasticidade [capacidade de o sistema nervoso se readequar a novas situações]. A história pregressa de cada paciente interfere na possibilidade de recuperação funcional. A precocidade do tratamento é outra variável importante. Um de nossos objetivos de pesquisa é identificar o melhor estímulo e a melhor intensidade capaz de realmente repercutir no sistema nervoso central sem gerar fadiga. Como parte das políticas públicas nessa área, estimulamos as academias de ginástica acessíveis e orientamos os grandes centros esportivos da cidade, mas ainda falta muito.

Como estão suas pesquisas?
Temos um NAP [Núcleo de Apoio à Pesquisa], que reúne a medicina e as engenharias de São Carlos e da Poli [Escola Politécnica], ambas da USP também. Buscamos materiais e sistemas de automação que vão permitir novas possibilidades de exoesqueletos. Hoje os exoesqueletos funcionam como uma armadura e servem para treinar os pacientes nos centros de reabilitação, mas precisamos criar um sistema mais amigável e fácil de usar fora dos centros. Algo que possa ser utilizado para ficar em pé e ajude a percorrer pequenas distâncias. Uma pesquisa patrocinada pela FAPESP, coordenada por Arturo Forner Cordero, da Poli, e Adriano Siqueira, da Escola de Engenharia de São Carlos, pretende ampliar as possibilidades de uso e a funcionalidade dos exoesqueletos no processo de reabilitação [ver Pesquisa FAPESP nº 301]. Adriano teve a ideia de desenvolver um meio-exoesqueleto para treinar os hemiplégicos, as pessoas que tiveram AVC. O protótipo está pronto para a fase de testes clínicos. Precisamos envolver a engenharia de materiais, porque os que estão aí não respondem ao que precisamos. Ninguém vai andar com 26 quilos nas costas. O trabalho do Arturo, que vai nessa linha, está indo bem e deve estar pronto até o final do ano, com financiamento também do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Agora é hora de conversar com a indústria nacional sobre as possibilidades de produção desses novos dispositivos.

Alexandre Moreira /A2 FOTOGRAFIA / Wikimedia Commons Na unidade de São José dos Campos da Rede Lucy Montoro, equipamentos de robótica e realidade virtual ajudam na recuperação dos movimentosAlexandre Moreira /A2 FOTOGRAFIA / Wikimedia Commons

Como foi seu trabalho na secretaria?
Meu primeiro embate foi o nome, que inicialmente era Secretaria de Estado de Assistência à Pessoa com Deficiência. Eu falei: “Esse nome nunca”. Disse que só aceitaria se fosse Secretaria de Estado dos Direitos das Pessoas com Deficiência, porque não se trata de assistir, mas de garantir direitos. O [então governador] José Serra insistiu no convite e dizia que precisava de alguém pensando nisso 24 horas. Eu relutei, imaginando que ele desistiria, mas não desistiu. Foi até o [então deputado estadual e ex-prefeito paulistano] Bruno Covas [1980-2021], que fez com que a secretaria fosse aprovada com esse nome na Assembleia Legislativa. Em 10 anos e 9 meses na secretaria, passei por três governos e cinco governadores. Essa experiência abriu minha visão de gestão de políticas públicas e mostrou outras formas de fortalecer os caminhos da inclusão das pessoas com deficiência.

O que aprendeu?
Aprendi que às vezes é melhor esperar o próximo momento para estruturar um programa com densidade. Coisa pequenininha, miúda, não sobrevive. É melhor ter um, dois ou três projetos grandes para estruturar, sempre com as áreas afins. Se estamos falando de saúde, então vamos conversar com a Secretaria da Saúde. Quando estava na secretaria, era a época de Olimpíadas, o Brasil paralímpico brilhava, existiam recursos e o [então ministro dos Esportes] Aldo Rabelo veio falar comigo: “Vamos fazer um centro de treinamento paralímpico”. Chamamos a Secretaria de Esportes e criamos um centro de treinamento paralímpico inacreditável, uma vila com capacidade para alojar 150 atletas com uma pista de atletismo certificada e seis piscinas olímpicas. Para montar bibliotecas acessíveis, falamos com a Secretaria de Educação. Conversávamos com as áreas interessadas não para que aportassem recursos, mas para mostrar que não era um programa solto no espaço. Não existe um mundo para as pessoas e um mundo para as pessoas com deficiência; é o mesmo mundo, até porque você transita entre esses dois momentos quando está vivendo a deficiência. Sempre me perguntavam se a questão da deficiência deveria ser tratada na Secretaria da Saúde e eu dizia que não. “Eles são pessoas, a deficiência vem depois. Pessoas precisam do quê? De educação, de cultura, de esporte… Ah, precisam de saúde também, verdade. Elas vão fazer tudo o que nós fazemos, apenas de um jeito diferente.” Foi uma época áurea, criamos prêmios para as melhores empresas para trabalhadores com deficiência. No último ano, em 2018, entregamos o prêmio na sede da ONU [Organização das Nações Unidas], em Nova York, foi a primeira versão global.

Como gestora, quais as grandes lições aprendidas?
A primeira foi que nossos órgãos de controle têm muito apreço ao processo e pouco ao resultado. A segunda foi que os processos são muito variados, é diferente o que você olha na saúde e no esporte para tomar decisões. Outra coisa: qualquer coisa que saia da zona de conforto causa muita polêmica. Para fazer algo diferente, você fica o tempo todo explicando e se defendendo. Por sorte, tínhamos uma Procuradoria-geral do Estado muito ativa e disponível. Eu não fazia nada sem conversar primeiro com eles e entender o que eu podia e não podia fazer. Colegas da USP e do Palácio dos Bandeirantes também foram parceiros incansáveis.

Como foi a criação da Rede de Reabilitação Lucy Montoro?
Já tínhamos um Centro de Reabilitação do HC no bairro paulistano da Vila Mariana, construído em um terreno doado pela família Klabin [controladora de uma das maiores fábricas de papel e celulose do país]. O metrô já estava na avenida Paulista e não ia demorar para chegar lá. Mas quando comecei a dirigir o centro, no finalzinho de 1979, o responsável pela área de tecnologia da informação do InCor [Instituto do Coração da USP], o engenheiro Cândido Pinto de Melo, paraplégico e militante pelos direitos das pessoas com deficiência, me chamou e perguntou: “Como os pacientes vão chegar à unidade?”. Eu pensava que minha responsabilidade era somente da porta para dentro, mas ele mostrou que não, eu deveria estar atenta a todas as necessidades, para além da saúde. Nesse sentido a eliminação de barreiras no transporte era fundamental. Algumas estações já estavam prontas e nada do elevador. Um dia pusemos todas as cadeiras de rodas no meio da estação: “Ninguém passa, nem nós nem vocês”. Ninguém pediu para tirar. Depois que fizemos isso quatro ou cinco vezes, o Metrô resolveu conversar e o problema de acessibilidade foi resolvido.

O centro foi a gênese da rede?
Sim. Ampliar o centro de reabilitação não passava pela minha cabeça. Mas um dia, em 2008, Serra falou: “Tenho o desejo de criar uma rede de reabilitação, seguindo esse modelo do Hospital das Clínicas. Quantas unidades você imagina, usando o centro como modelo?”. Respondi: “Três, no interior paulista”. Ele revidou: “Como assim? Não, eu quero 10!”. Aloysio Nunes, secretário da Casa Civil, e eu começamos a olhar as regiões e a procurar os parceiros, em lugares onde houvesse recursos humanos, para garantir a formação de equipes. Tínhamos três unidades em São Paulo e ampliamos para cinco. Temos dois institutos na cidade de São Paulo, o Instituto de Medicina Física e Reabilitação do HC e o Instituto de Reabilitação no Morumbi. Todas as unidades foram concebidas com a mesma lógica e filosofia, equipes multidisciplinares e apoio tecnológico de ponta. Nesse projeto, além das cinco unidades da Rede Lucy Montoro gerenciadas pelo HC da USP na cidade de São Paulo, criaram-se as outras, em Campinas, Ribeirão Preto, São José do Rio Preto, São José dos Campos, Mogi Mirim, Fernandópolis, Presidente Prudente, Pariquera-Açu, Botucatu, Sorocaba e Santos. Todas têm as mesmas características do ponto de vista arquitetônico, ambientação, recursos humanos e tecnologias.

Na escola, aprendemos o valor da inclusão de forma natural. Se separamos os alunos, perdemos o cerne da inclusão

Aos 6 anos, a senhora estrelou um programa em rede de televisão chamado Um lírio na TV. Como foi?
Em um feriadão perto de Finados, em 1957, minha tia professora, sempre entusiasmada, convidou os sobrinhos: “Vamos a um canal de televisão para vocês verem como é”. Eu ia fazer 6 anos. Ela achou que chegaria lá, alguém abriria a porta e entraríamos. Chegamos às Organizações Victor Costa [comprada nos anos 1960 por Roberto Marinho, que a transformou na Rede Globo] e o porteiro perguntou: “A senhora veio para o concurso?”. Estavam selecionando crianças para novelas infantis e minha tia, para entrar, disse que sim. O teste era simples: ler e interpretar um texto, com especialistas avaliando. Depois viajamos para Cruzeiro, cidade do interior paulista, porque era aniversário de minha vó. Era muito raro ter televisão em 1957. Quando voltamos para casa os vizinhos falaram que tinham visto meu nome na televisão. Meu pai ficou uma fera, pois ele nem sabia que tínhamos ido ao estúdio. O produtor Libero Miguel [1932-1989] e a esposa Enia Petri foram em casa falar com meu pai, que estava irredutível: “Imagina, filha minha artista!”. Foi meu avô quem o convenceu: “É um bom exercício para a menina, deixa ela ir”. Enquanto corriam os preparativos para a novela, o canal de TV produziu um programa chamado Um lírio na TV.

Como era o programa?
Era o final de uma grande epidemia da pólio e estavam surgindo as organizações de pessoas com deficiência e os centros de reabilitação. Coincidiu com a fundação do Instituto de Reabilitação no HC e a criação da AACD [Associação de Assistência à Criança Deficiente]. Já existiam algumas associações para crianças com deficiência intelectual. No programa, que incentivava a doação para a reabilitação de pessoas com deficiência, eu usava os aparelhos das crianças que tiveram pólio, mas era fake. Depois do programa, a apresentadora Hebe Camargo, já à época bastante conhecida, entrou no camarim e me viu tirando o aparelho: “Mas você não precisa disso para andar?”. Eu falei que não e ela chorou, ficou toda emocionada. Como eu tinha 6 anos, andar com aquele aparelho era uma coisa divertida, eu não entendia por que assustava tanto as pessoas. Trabalhei vários anos na televisão, participei, como estrela mirim, de alguns programas – Almoço com as estrelas – e fiz novelas e programas em outras emissoras, como o Sino de ouro na TV Cultura, numa série chamada Ouro para o bem do Brasil.

Por que não seguiu a carreira de atriz?
O diretor Sérgio Cardoso [1925-1972] me chamou para fazer teatro, quando eu tinha 16 anos. A peça seria Jornada comum. Olhei para o texto, mas aquilo não cabia mais no meu coração. Eu queria fazer medicina. Durante um ano estudei muito, muito mesmo. Aos 17 anos iniciei a faculdade de medicina na PUC [Pontifícia Universidade Católica, campus de Sorocaba] e gostei muito, o curso valorizava o humanismo na assistência. É uma escola onde a ciência é a favor do paciente, não apenas a favor da saúde. Fiz teatro na faculdade, era mais divertido.

Não lidamos apenas com problemas dos outros, porque todos nós, em algum momento, podemos ter alguma limitação

A senhora participou da elaboração da portaria de 2002 do Ministério da Saúde, que instituiu a Política Nacional de Saúde da Pessoa Portadora de Deficiência. Como foi esse processo?
No início da década de 1990, havia uma luta grande para definir a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência. Como eu dirigia o centro de reabilitação do HC, a partir de 1995 participei das reuniões de elaboração da tabela de procedimentos do SUS [Sistema Único de Saúde]. Até essa época, só se conseguia cadeira de rodas por doação. O Ministério da Saúde criou um grupo de trabalho em 1996 e aprovou a primeira lista de procedimentos de órtese e prótese e meios auxiliares de locomoção em 1999. Íamos ao ministério a Arlete Salimeni, como assistente social, a Vera Lúcia Rodrigues Alves, como psicóloga, e eu, como médica, todas voluntariamente, para discutir os modelos de atendimento com os técnicos da área. Com o então ministro Serra consolidou-se a Política Nacional de Saúde da Pessoa Portadora de Deficiência. Quando o documento chegou ao Conselho Nacional de Saúde, pensávamos que seria difícil, mas estava lá a [pediatra] Zilda Arns [1934-2010], que nos apoiou integralmente. A Política Nacional foi assinada em 2002, depois de quatro anos de tramitação.

Segundo o Censo de 2010, 25% da população brasileira, o que daria hoje cerca de 52 milhões de pessoas, tem algum tipo de deficiência. Como avalia o amparo e o tratamento que recebem?
Estamos no meio do caminho. O Brasil oferece um suporte ajustado, não vou dizer 100% adequado, nas questões educacionais. Tanto o município quanto o estado de São Paulo são bons exemplos de como a educação pode ser realmente inclusiva. Os professores, em geral, estão preparados para receber alunos com deficiência. A saúde está cada vez mais acolhedora para essas pessoas, entendendo a dimensão dos direitos de todos. Tivemos um grande ganho com o acesso à cultura, que é sempre uma experiência emocionante. Na Inglaterra a inclusão se materializa na vida da família e das pessoas com uma facilidade impressionante. Quando estamos juntos na escola, no parque, no cinema, no hospital e em outros espaços, aprendemos o valor da inclusão de forma natural. Quando separamos pessoas e projetos, perdemos de vista o cerne da inclusão e é possível que alguns direitos também sejam perdidos.

O preconceito contra as pessoas com deficiência está aumentando ou diminuindo?
O preconceito aumenta toda vez que você coloca uma pessoa em situação de vulnerabilidade lutando pelos direitos de inclusão plena. O preconceito também é uma reação ao movimento de “eu quero participar”. Como se faz no Facebook? Tira o indivíduo indesejado e fica conversando com os iguais. Não tenho Facebook, mas escuto os netos e recomendo a eles ouvir o contraditório. Não podemos criar uma sociedade em que se olha apenas no espelho.

Como aceitar quem é diferente?
São dois movimentos. Um é o da sociedade, pela legislação, escolas e comunicação. Melhorou muito, mas, claro, a mudança não é igual em todos os lugares o tempo todo, porque a sociedade foi construída de forma sectária. A escola ajuda muito, porque as crianças são afáveis, amigáveis, elas acolhem. O outro movimento é o do próprio indivíduo que deve estar empoderado para lutar por seus direitos. A família não pode ser a primeira barreira. Em qualquer nível social, a mãe de um bebê com deficiência precisa ter acolhimento desde o primeiro momento. Você sabe o que é pegar um álbum de família, virar as páginas e não encontrar a foto daquela criança com deficiência? Aquela história de o médico pôr a mão no ombro e dizer: “Mãe, daqui para frente…” é um diagnóstico ou uma sentença? Em nossa disciplina essa é uma preocupação permanente e estamos sempre preparando melhor o aluno e as equipes de saúde. Meus alunos do primeiro ano vão para a enfermaria de reabilitação entrevistar os pacientes com limitações decorrentes de doenças ou acidentes e voltam entusiasmados, com muitas ideias. Não estamos lidando apenas com os problemas dos outros, porque todos nós, em algum momento, como agora, na pandemia, podemos ter alguma limitação.

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