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COVID-19

Linhagens da variante ômicron elevam o total de casos de Covid-19 no final de 2022

Média semanal de novas infecções aumentou 12 vezes de novembro a meados de dezembro e o de mortes, 4,6 vezes

Quando começou a Copa do Mundo em novembro, a pandemia de Covid-19 parecia ter ficado para trás. As máscaras já não eram obrigatórias havia alguns meses e quase ninguém mais as usava nas ruas nem em locais fechados. Também era comum ver grupos de amigos reunidos para assistir aos jogos – e comemorar ou lamentar – sem a preocupação de manter uma distância mínima uns dos outros. Apesar da impressão de retorno à normalidade, o número de casos da doença se encontrava mais uma vez em ascensão no país. A média semanal de infecções pelo vírus Sars-CoV-2 estava em 26.304 casos na primeira semana de novembro (quase 3,8 mil por dia), o menor valor no ano, e chegou a 321.349 na terceira semana de dezembro (cerca de 46 mil por dia), de acordo com dados do Ministério da Saúde. O aumento de 12 vezes no total de casos foi acompanhado de uma elevação mais modesta na média de óbitos, que cresceu 4,6 vezes no período e passou de 251 para 1.116 mortes por semana. Ainda que distantes dos piores momentos da pandemia, os números deixavam claro: quase três anos após seu início, o problema de saúde pública ainda não havia acabado.

“A pandemia tem trazido muitas surpresas”, conta a bióloga Paola Resende, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Rio de Janeiro. “Em vários momentos, pensamos que o fim estava chegando e fomos surpreendidos por uma nova onda de casos”, conclui a pesquisadora, que integra a equipe do Laboratório de Vírus Respiratórios e do Sarampo (LVRS) e participa da Rede Genômica da fundação, responsável pelo monitoramento da evolução do Sars-CoV-2.

Alguns especialistas afirmam que os números oficiais medidos atualmente são apenas a parte visível do iceberg. Com a disseminação dos testes rápidos, vendidos em farmácias, tornou-se mais difícil averiguar o total de casos, uma vez que não existe a obrigatoriedade de relatar às autoridades sanitárias o resultado. Desse modo, tornam-se conhecidos apenas os casos mais graves, que exigem atendimento em hospitais e unidades de saúde. A maior parte das infecções, no entanto, gera quadros leves, em especial nas pessoas com ciclo vacinal completo, nas quais provoca sintomas semelhantes aos de um resfriado, com graus variáveis de fadiga e mal-estar. Os casos graves parecem se restringir a pessoas com outras doenças e idosos que não tomaram todas as doses recomendadas.

Alexandre Affonso

“Há bastante tempo temos um acompanhamento precário da situação”, afirma o virologista Fernando Spilki, da Universidade Feevale, no Rio Grande do Sul, coordenador da Rede Nacional de Ômicas da Covid-19 (Rede Corona-ômica BR), que acompanha a circulação do vírus no país. “Teríamos mais informação se, por exemplo, houvesse um QR code na caixinha dos testes comprados em farmácia com um link para a pessoa inserir se o resultado foi positivo ou negativo e se o sistema de saúde estivesse realizando a busca ativa de casos. É um conhecimento importante para evitar a disseminação da doença”, completa.

A onda atual tomou forma alguns meses após a entrada no Brasil de uma nova linhagem do vírus derivada da variante ômicron: a BQ.1. Essa linhagem, uma das mais de 300 da ômicron, parece escapar mais facilmente dos anticorpos produzidos em resposta à vacina ou a infecções prévias por outras variantes do novo coronavírus e já havia levado ao aumento dos casos de Covid-19 na Europa e na América do Norte. Sequenciando o material genético de amostras do vírus, a Fiocruz constatou que a frequência de casos provocados pela BQ.1 aumentou 3,6 vezes no Brasil em apenas um mês. A linhagem respondia por 15,6% das infecções em outubro e 56,8% em novembro. No mesmo período, a presença da BA.4 e da BA.5, outras duas linhagens da ômicron, que circularam mais intensamente em meados do ano passado, passou, respectivamente, de 8,2% para 5,4% e de 70% para 34,1% (ver gráfico).

Entrevista: Fernando Spilki
00:00 / 61:35

Identificada inicialmente na África do Sul no final de 2021, a ômicron se espalhou pelo mundo e provocou ao menos três surtos importantes de infecção no Brasil. O primeiro ocorreu no início de 2022, com o espalhamento da linhagem BA.1. Apesar de parte da população já estar vacinada à época, essa variedade do vírus causou uma explosão no número de casos. Eles atingiram a marca de 1,3 milhão de novos registros na última semana de janeiro (quase 186 mil por dia), com a média semanal de mortes chegando a 6.246 casos em meados de fevereiro (ver gráfico). Com o avanço da imunização e a substituição da BA.1 pela BA.2 a partir de abril, a média de novos casos baixou para a faixa dos 100 mil. Com o avanço da BA.5, um segundo ciclo de expansão se iniciou em junho, quando a média semanal de infecções voltou para a faixa dos 400 mil, e durou até agosto. A onda mais recente se iniciou em outubro, com a entrada da BQ.1, uma linhagem da ômicron derivada da BA.5, que novamente elevou o número de casos.

Alexandre Affonso

As linhagens que começaram a circular nos últimos meses – em especial a BA.4, a BA.5 e as derivadas desta última, como a BQ.1 – trazem mutações importantes no gene da proteína spike, usada pelo vírus para invadir as células. Essas mutações alteram o formato de certas regiões da proteína e dificultam o reconhecimento por anticorpos – seja por aqueles gerados pela vacinação, seja pelos produzidos por infecções anteriores. “Essas linhagens estão levando pessoas que já tiveram Covid a se infectar novamente”, conta Resende, da Fiocruz. É o chamado escape de resposta imune, observado até mesmo em pessoas com esquema completo de imunização.

“Achou-se inicialmente que seria possível obter a imunidade coletiva com a vacinação e a ocorrência de infecções, mas a evolução do vírus vem sendo tão rápida que essas estratégias não protegem totalmente das variantes em circulação hoje”, relata o infectologista Julio Croda, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e da Fiocruz.

Por sorte, o escape à resposta imune é apenas parcial. As novas linhagens do Sars-CoV-2 conseguem driblar os chamados anticorpos neutralizantes, responsáveis por impedir a entrada do vírus nas células e proteger até mesmo das infecções assintomáticas e leves. Como o sistema de defesa dispõe de outras ferramentas, as linhagens atuais ainda enfrentam a ação dos anticorpos não neutralizantes, que aderem ao vírus ou à superfície de células infectadas e sinalizam a presença do invasor para células do sistema imunológico, desencadeando a chamada resposta celular. Com poder de ação mais abrangente do que os anticorpos neutralizantes, a imunidade celular consegue eliminar boa parte dos vírus, até mesmo aqueles que acumularam mutações e se tornaram um tanto diferentes da cepa que surgiu no final de 2019 em Wuhan, na China.

PfizerVacina da Pfizer / BioNTech contra a cepa original do coronavírus e as linhagens BA.4 e BA.5 da ômicron, aprovada para uso no BrasilPfizer

“É por causa da imunidade celular que as pessoas vacinadas ou que sobreviveram a uma infecção prévia causada pelo novo coronavírus continuam protegidas das formas mais graves da doença, que causam internação e óbito”, explica Croda. Até 16 de dezembro, 80,2% da população brasileira estava imunizada com duas doses (ou dose única) de alguma das vacinas contra a Covid-19 e 49,8% tinham recebido ao menos uma dose de reforço, segundo dados das secretarias estaduais da Saúde obtidos pelo consórcio de veículos de imprensa. “À medida que melhore a cobertura vacinal com o número de doses recomendado, vai aumentar a imunidade da população por resposta celular”, afirma o pesquisador da UFMS.

No Brasil, o exemplo mais eloquente da proteção oferecida pela vacina vem de Serrana, cidade de 46 mil habitantes, vizinha de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Em um projeto apoiado pela FAPESP, pesquisadores do Instituto Butantan e da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto vacinaram 97,3% dos 28 mil adultos da cidade com duas doses de Coronavac entre fevereiro e abril de 2021. Meses mais tarde, o número de infecções sintomáticas havia diminuído 80%, o de hospitalizações 86% e o de mortes 95%. A análise do genoma de 4.375 amostras do coronavírus coletadas entre junho de 2020 e abril de 2022 indicou que a cidade passou pelas ondas provocadas pelas diferentes variantes no resto do país. Como resultado da vacinação, 89% das infecções provocadas pela variante delta, 91% das causadas pela gama e 99% das decorrentes da ômicron resultaram em quadros leves, segundo artigo publicado em 29 de setembro de 2022 na revista Viruses. “O estudo mostrou os efeitos benéficos da vacinação, que, quando aplicada ampla e precocemente, pode reduzir de forma significativa as taxas de mortalidade e morbidade desse agente viral”, declarou a bioquímica Simone Kashima, pesquisadora da USP em Ribeirão Preto e autora principal do artigo, à Agência FAPESP.

Alexandre Affonso

A expectativa dos pesquisadores é de que o escape vacinal diminua com o início da aplicação dos imunizantes dito bivalentes, que protegem contra a cepa de Wuhan e contra algumas linhagens da ômicron. No final de novembro, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o uso temporário e emergencial de duas vacinas bivalentes produzidas pela Pfizer/BioNTech: uma contra o vírus de Wuhan e a linhagem BA.1 e outra contra o vírus original e as linhagens BA.4 e BA.5. Até meados de dezembro, o Ministério da Saúde havia recebido 8,9 milhões de doses dos 36 milhões previstos para serem entregues até fevereiro. Não havia, no entanto, definição de quando esses imunizantes começariam a ser aplicados nem de quem os receberia. “As vacinas bivalentes podem oferecer uma proteção melhor contra a transmissão porque são baseadas em linhagens do vírus mais próximas às que se disseminam atualmente no país”, conta Spilki.

Enquanto isso, as estratégias mais eficientes para evitar a infecção continuam sendo o uso de máscaras – que voltou a ser obrigatório em aeroportos, aviões e, em algumas cidades, no transporte público – e o distanciamento físico, mesmo em ambientes abertos.

Projeto
Desenvolvimento de vacina contra a Covid-19 (nº 20/10127-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa em Políticas Públicas; Pesquisador responsável Dimas Tadeu Covas (Instituto Butantan); Investimento R$ 32.180.547,03.

Artigo científico
SLAVOV, S. N. et al. Dynamics of Sars-CoV-2 variants of concern in vaccination modelcity in thestate of São Paulo, Brazil. Viruses. 29 set. 2022.

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