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Entrevista

Lorena Barberia: Caçadores de dados

Para subsidiar e avaliar políticas públicas voltadas ao combate da pandemia da Covid-19, pesquisadores estabelecem rede dedicada à busca de informações

Léo Ramos Chaves

Desde o mês de março a economista Lorena Barberia não sabe o que é um fim de semana livre. Professora do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), onde ministra disciplinas de métodos quantitativos, há seis meses ela responde pela coordenação científica da Rede de Pesquisa Solidária, estabelecida para “elevar o padrão e aperfeiçoar a qualidade das políticas públicas” de combate à crise sanitária, social e econômica desencadeada pela pandemia. A rede reúne mais de uma centena de pesquisadores de distintas instituições.

“Porque acreditamos na fusão virtuosa de saberes e técnicas, trabalhamos na intersecção das humanidades com as áreas de exatas e biológicas”, informa. “Na rede temos advogados, antropólogos, cientistas políticos, economistas, engenheiros, epidemiologistas, especialistas em meio ambiente, médicos, psicólogos, sanitaristas e sociólogos.” Cerca de 20% dos pesquisadores são estudantes de graduação, 40% de pós-graduação e o restante professores e pesquisadores em estágio de pós-doutorado. Nesta entrevista, concedida por telefone, Barberia explica como funciona a rede e faz um balanço de sua atuação até aqui. “Parece relevante sinalizar para a sociedade que nós, cientistas de todas as áreas, também somos um recurso de combate à pandemia”, observa ela.

O que é a Rede de Pesquisa Solidária?
Trata-se de uma iniciativa voluntária, constituída por pesquisadores de várias áreas do conhecimento, que normalmente não trabalham juntos, para produzir análises integradas de políticas públicas desenvolvidas ou adotadas em resposta à pandemia da Covid-19. Ela é multidisciplinar porque as políticas públicas se inter-relacionam e entendemos que é preciso discutir essa interação. Quando se avalia uma falha ou se detecta uma mudança em uma política de saúde, por exemplo, é preciso pensar nas implicações em outras áreas e em outras políticas públicas.

Por que se decidiu criar a rede?
A rede surgiu quase espontaneamente. O que me estimulou foi uma aluna da graduação em ciências sociais, integrante do grupo de pesquisa que coordeno. Em março, durante uma reunião virtual, Isabel [Seelaender Costa Rosa] indagou: “Professora, uma pandemia está acontecendo. A gente não vai fazer nada?”. Telefonei para os professores [José Eduardo] Krieger e [Glauco] Arbix, constatei que eles tinham a mesma preocupação e começamos a discutir o que poderia ser feito. Ao longo do mês de março constituímos a rede, definimos como ela atuaria e como divulgaríamos seus resultados. O primeiro boletim foi publicado em abril e apresentava os quatro projetos que integravam a iniciativa. Hoje são sete: monitoramento de políticas públicas; monitoramento de lideranças comunitárias; mercado de trabalho e renda; proteção social e políticas emergenciais para mitigar a crise do mercado de trabalho; uso de indicadores na avaliação do acesso a serviços de saúde no Brasil durante a pandemia da Covid-19; pandemia, cidades e políticas de transporte; e construção da resposta à epidemia de Covid-19 com adolescentes e jovens em vulnerabilidade social.

O principal objetivo da rede é, portanto, acompanhar políticas públicas?
O principal objetivo é mensurar políticas públicas federais, estaduais e municipais e analisar essa informação de forma comparada, para identificar e avaliar seus impactos no enfrentamento da pandemia. Na esfera subnacional, nosso foco tem sido os 26 estados e o Distrito Federal, mais as capitais. Também constitui objetivo da rede produzir dados sistematizados para nortear a avaliação das políticas públicas e buscar compreender como os determinantes sociais influenciam a adesão e eficácia das políticas implementadas. Quando começamos, em março, não havia dados. Nos questionávamos: como vamos conseguir entender o que está acontecendo se estamos em um momento difícil e quase não há informação? Parte importante do que temos feito consiste em levantar informações, de diferentes bancos de dados, sistematizá-las e apontar lacunas que devem ser melhoradas. Infelizmente, passados mais de seis meses do primeiro diagnóstico de infecção pelo vírus Sars-CoV-2 registrado no país, a disponibilidade de dados granulares não mudou muito. Cito um exemplo: uma informação crucial, sobretudo no início da pandemia, envolvia o número de leitos de UTI [Unidade de Terapia Intensiva] disponíveis para atender pacientes da Covid-19. Em levantamento realizado em maio de 2020, mostramos que, dependendo da fonte nacional consultada – os registros da Plataforma Covid-19 versus os do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde –, havia uma diferença de 20 mil leitos no país. A mesma falha foi constatada nos dados dos estados.  Não à toa os pesquisadores da rede acabaram recebendo o apelido de “caçadores de dados”.

Que outros dados seguem desconhecidos?
A taxa de positividade por tipo de teste, em cada estado, ao longo da pandemia. Até agosto, quando fizemos nossa última pesquisa, na maioria dos estados e no governo federal, não havia informação sobre os indivíduos testados, com os dados necessários para identificar surtos localizados e grupos mais vulneráveis. Como desconhecemos quantos testes moleculares RT-PCR resultam positivo por dia e quanto tempo demora a notificação do diagnóstico ao indivíduo, não conseguimos avaliar quais governos têm programas com maior capacidade de identificar, isolar e diminuir a transmissão. Também desconhecemos as características dos indivíduos que realizaram testes, por tipo de teste. Por isso, entre outros motivos, permanece pouco clara a relação entre casos confirmados e testes realizados. Recentemente, o estado de São Paulo publicou, pela primeira vez, dados por idade, gênero e município de residência de testes moleculares RT-PCR feitos em laboratórios públicos. Porém seguimos sem um dado que nos permita calcular a taxa de positividade dos testes. É importante ter essa informação desagregada e granular para poder enfrentar a pandemia de forma eficaz. A OMS [Organização Mundial da Saúde] considera que a taxa de positividade deveria ser de 5% ou menos. Ou seja, do total de testes moleculares RT-PCR realizados em um dia, no máximo 5% da população deveria testar positivo para o Sars-CoV-2. Quando isso acontece, sabemos que os testes estão sendo aplicados em número suficiente e que os infectados estão sendo detectados a tempo de serem isolados e tratados. Abaixo de 5%, a taxa indica controle efetivo da pandemia.

Entrevista: Lorena Barberia
     

E como estamos no Brasil?
No Brasil, nenhum estado está perto disso. Com os dados disponíveis, somente das secretarias estaduais, a taxa de positividade no país girava em torno de 33% em agosto. Fica claro que só estamos conseguindo testar quem apresenta sintomas. Há evidências de que continuamos com uma insuficiência na estratégia de testagem de casos ativos. Sem essa informação, não contamos com o necessário para avaliar o que está realmente acontecendo com a pandemia. Um teste sorológico informa se tive Covid no passado, mas não se estou infectada hoje e posso estar transmitindo o vírus. Quando faço um teste RT-PCR, deveria conhecer seu resultado um ou dois dias depois. Sabemos, de relatos pessoais, que muitas vezes se passam 10 dias até que ocorra a notificação. Sem terem sido alertadas para a gravidade do caso, pessoas infectadas seguem circulando pelas cidades e continuamos com um número elevado de casos que poderiam ser evitados.

A dificuldade em obter os dados surpreendeu?
Embora seja nosso principal desafio, a falta de informação para fazer análises mais aprofundadas não me surpreendeu nos primeiros meses. O que eu não imaginava é que em setembro ainda estaríamos nessa situação, de escassez de dados, uma vez que contamos com um sistema de saúde público universal, recurso que poucos países dispõem para combater a pandemia. Desde o início, estava claro que tínhamos de nos preparar para algo difícil e longo, pelo menos até novembro. A literatura científica e a maioria dos modelos epidemiológicos mostravam isso. Essa situação permanece. Ninguém projeta uma situação estável para o Brasil este ano. Os modelos não mostram que o país será capaz de zerar os casos de contágio e mortes em 2020. Aqui, medidas relativamente moderadas, para aumentar o distanciamento físico, têm sido adotadas, mas as decisões permanecem sendo tomadas com dados muito imprecisos e de forma fragmentada no território nacional. A consequência de tudo isso é que as políticas públicas estão sendo deliberadas em um cenário de elevado nível de incerteza.

Poderia ter sido diferente?
Acredito que sim. Parte do problema é que as ações que precisam ser adotadas dependem de vontade política. Os dados refletem isso. Um exemplo: reduzir o tempo de divulgação do resultado de testes RT-PCR para os cidadãos. Se determinada administração pública não tem uma estratégia de rastreamento de contatos ou de isolamento social desses casos, e de combate aos surtos, dificilmente estará preocupada em tornar público esse tipo de dado. Os dados que buscamos são aqueles que sabemos úteis para a formulação de políticas públicas. Solicitamos os dados porque eles são a única forma de avaliar o impacto dessas políticas e de identificar recomendações de mudanças a serem adotadas.  Não é possível combater a pandemia pensando apenas em uma determinada estratégia. As intervenções para aumentar o distanciamento físico, outro exemplo, deveriam ter sido desenhadas de forma a contemplar os grupos vulneráveis.

Qual o impacto de tudo isso?
O fato de não conhecermos o grau de eficiência do diagnóstico por intermédio da testagem de casos ativos impacta todas as políticas públicas relacionadas à pandemia. Os dados oficiais demoram muito para ser atualizados nos bancos de dados que estamos analisando e isso também sugere que a informação não chega a tempo de permitir o tratamento de pessoas infectadas ou de evitar novas transmissões. A informação não está sendo produzida com rapidez suficiente. Esse é um problema anterior à pandemia. Para os governos, é difícil produzir informação atualizada. Dados levam tempo para ser coletados, coligidos, sistematizados. No Brasil não conseguimos identificar, por exemplo, se eventualmente não estamos analisando os mesmos indivíduos mais de uma vez. Nos dois bancos de dados para casos positivos de Covid-19, constatamos que um elevado número de casos não foi testado para confirmação do diagnóstico da doença. Tampouco sabemos por que razão leitos de UTI em uma determinada região aparecem com maior número de ocupação em um banco de dados do que em outro. Mas, em uma situação como a que estamos vivendo, com mais de 4 milhões e 500 mil casos registrados no país, a velocidade de resposta dos governos pode significar vida ou morte. Um governante não pode ficar preso à ideia de lotação de UTIs e colapso do sistema como o indicador mais importante para enfrentar a pandemia. Os testes de casos ativos e casos passados, e consequentemente os dados que eles produzem, são importantes tanto para prevenir e tratar os doentes quanto para definir as políticas públicas que serão adotadas. É preciso reagir no mesmo tempo da pandemia. Países como Colômbia e Argentina dispõem de sistemas de informação mais dinâmicos do que os nossos. Eles foram desenvolvidos especificamente para a pandemia. A cidade de Buenos Aires publica a taxa de positividade por bairro e isso ajuda as pessoas a calcular riscos e a fazer escolhas.

Por que a rede optou por divulgar seus resultados em boletins semanais?
Desde o início nossa preocupação girou em torno da ideia de como seria possível contribuir para salvar o maior número de vidas. Queríamos que a informação circulasse para a sociedade, para os gestores, para o governo. Que contribuísse para o debate público sobre a pandemia e subsidiasse discussões baseadas em evidências. Sabemos que informação é algo extremamente relevante para a formulação de políticas públicas, ainda mais em um contexto como o que estamos vivendo. Chegamos à conclusão de que o formato boletim seria capaz de atender a essa necessidade. A rede está funcionando como um processo de revisão de pares. Antes de ser divulgada, toda informação é discutida e revisada pelo comitê de coordenação. Em alguns casos, fazemos consultas a especialistas. Fora do Brasil, temos parceiros nas universidades de Chicago, Texas A&M e Tulane, todas nos Estados Unidos.

Seis meses depois de iniciado esse esforço, que avaliação você faz dos resultados?
Sabemos que a comunidade acadêmica pode ser uma aliada importante para produzir e melhorar a qualidade das políticas públicas por sua capacidade de produzir informação para os gestores e para a sociedade. Produzimos um índice de rigidez das políticas de distanciamento social mostrando que, a partir de março, todos os estados adotaram medidas moderadas de distanciamento físico. Destacamos a falta de coordenação dessas medidas, no território nacional, como um fator que impediu que fossem mais eficazes no combate à pandemia. Mais recentemente, temos documentado que a flexibilização dessas medidas foi implementada quando o número de casos era considerável. Por essa razão, as medidas de obrigatoriedade do uso de máscaras, parte da estratégia dos governos para permitir o regresso de atividades comerciais e de serviços, não resultaram em diminuição no nível de infecções. Esses dados integram o primeiro banco sobre políticas subnacionais do Oxford Covid-19 Government Response Tracker [OxCGRT, espécie de banco mundial de indicadores sobre a resposta de governos à pandemia]. Mensurar a abrangência do esforço de governantes em conter a pandemia evidencia o impacto positivo que a adoção de políticas públicas voltadas para o bem comum pode ter.

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